Folha de S. Paulo, 7 de julho de 2013.
Análise Egito
Washington evita falar em 'golpe' no Cairo
Obama não usa o termo porque teria de cortar ajuda de US$ 1,5 bi por ano e daria apoio aos 'maus' da Irmandade
GIDEON RACHMAN
DO "FINANCIAL TIMES"
Se parece um golpe militar e tem o efeito de um golpe militar --bem,
provavelmente é um golpe militar. O fato de que o presidente dos Estados
Unidos, Barack Obama, não possa usar a palavra "golpe" para definir o
ocorrido no Egito não quer dizer que ele tenha dificuldade para
compreender o que houve.
Mas, tão logo os EUA declarassem que o governo egípcio foi vítima de golpe, teriam obrigação legal de cortar a assistência econômica e militar ao Egito, da ordem de US$ 1,5 bilhão por ano.
Os governos ocidentais gostam de operar com categorias morais claras: lutadores da liberdade versus ditadores, democratas versus autocratas, mocinhos contra bandidos. Isso torna a política externa mais fácil de entender e de explicar ao pessoal lá em casa.
Nesse universo moral simples, um golpe militar é obviamente "mau" --e um presidente eleito é obviamente "bom". Mas muita gente nos EUA e na Europa prefere o jeito dos manifestantes que se opõem a Mohammed Mursi na praça Tahrir ao jeito da Irmandade Muçulmana.
São os liberais laicos do Egito que defendem os valores de aparência ocidental, tais como os direitos das minorias e a liberdade de expressão. É a Irmandade que deseja uma Constituição inspirada na sharia, a lei islâmica tradicional.
O fato desconfortável é que a Irmandade venceu a eleição presidencial e é o maior partido no Legislativo. Ainda pior, o segundo maior grupo do Legislativo não é composto pelos liberais, mas pelos salafistas, que defendem uma abordagem islâmica ainda mais fundamentalista.
A confusão moral do Ocidente quanto ao Egito se reproduz em outras partes do Oriente Médio. A Síria inicialmente parecia um caso claro: uma ditadura cruel contra um levante popular --e por isso o Ocidente respondeu apoiando os rebeldes e pedindo a derrubada do presidente Bashar al-Assad. Essa política continua, mas há inquietação sobre o caráter da oposição. Afinal, lutadores pela liberdade não deveriam comer o coração dos inimigos
Alguns comentaristas ocidentais estão começando a discutir a ideia de que talvez a democracia não seja assim tão boa ideia para o Egito. Talvez o país não esteja pronto para ela? Talvez ela resulte em caos econômico e conflitos civis? Mas nenhum governo ocidental poderia expressar essa ideia publicamente.
Com os acontecimentos no Egito surge uma inquietante sensação de que o Ocidente está recuando ao caos moral da Guerra Fria. Durante a longa luta contra a União Soviética, os EUA e seus aliados rotineiramente se alinhavam com regimes militares, porque lhes pareciam melhores que qualquer outra opção. Eram "os nossos bastardos".
Imaginávamos que a queda soviética tivesse nos libertado dessas escolhas desagradáveis. Poderíamos apoiar a democracia e só a democracia, sem hesitação. O Egito mostra que complexidade, confusão e aceitar comprometimentos morais são coisas inevitáveis nos assuntos internacionais.
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