segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Milícia planeja matar deputado

Milícia planeja matar deputado, dizem documentos
31 Out 2011

Marcelo Freixo, presidente de CPI que investigou criminosos em 2008, deixará país a convite da Anistia Internacional

Cássio Bruno


A Coordenadoria de Inteligência da Polícia Militar, o Ministério Público e o Disque-Denúncia registraram, em pouco mais de um mês, sete denúncias de que várias milícias estão preparando o assassinato do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). Presidente da CPI das Milícias, que, em 2008, provocou o indiciamento de 225 pessoas, entre políticos, policiais militares e civis e bombeiros - boa parte do grupo está presa -, Freixo vai deixar o Brasil amanhã, com a família, a convite da Anistia Internacional.
O parlamentar vai para a Europa, mas o país de destino e o tempo de permanência no exterior estão sendo mantidos sob sigilo. Em reportagem publicada ontem, O GLOBO revelou a atuação de milicianos em pelo menos 11 estados, segundo dados fornecidos por Ministérios Públicos e Ouvidorias de Polícia.
Em alguns casos, como o da Bahia, as milícias agem com as mesmas características das do Rio em bairros de Salvador. Elas exploram o transporte alternativo e a distribuição de serviços de internet, de TV a cabo e de gás. Há suspeita também da participação de políticos.
Em entrevista ao GLOBO, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, admitiu o problema das milícias. Já a corregedora Nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon, afirmou à reportagem que milicianos estão por trás da maioria dos casos de violência contra os magistrados brasileiros. Por isso, ela iniciou uma força-tarefa nos 27 estados para tentar identificar e punir grupos paramilitares.
- A Anistia ficou preocupada com a minha segurança devido ao acirramento das denúncias feitas contra mim. A Patrícia foi ameaçada e, na época, todos diziam que ninguém iria matá-la. Mesmo assim, mataram - disse Freixo referindo-se à juíza Patrícia Accioli, executada a tiros por milicianos na porta de casa, em Niterói, na Região Metropolitana, mês passado.

Maioria das denúncias é de milícias de Zona Oeste e Ilha

As informações sobre os planos de execução de Freixo envolvem, na sua maioria, milicianos da Zona Oeste do Rio e da Ilha do Governador. Em uma delas, do último dia 13, enviado à Coordenadoria Institucional de Segurança da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), um grupo de 50 milicianos fortemente armados se reuniu em um conjunto habitacional de Campo Grande para planejar o assassinato de Freixo. No mesmo dia, um outro bando do bairro de Cosmos chegou a fazer churrasco para tramar a morte do deputado.
No dia 3 deste mês, outro caso envolveu um policial do 18 ª Batalhão da Polícia Militar, em Jacarepaguá, acusado de pertencer a uma milícia. O PM atuaria no bairro Gardênia Azul, até então dominada pelo ex-vereador do Rio Cristiano Girão, denunciado pela CPI das Milícias, condenado e preso. O GLOBO mostrou, no último dia 10, a articulação para assassinar Freixo. Um ex-policial foragido do presídio da PM receberia cerca de R$400 mil para matar o parlamentar.
Parlamentar entregará dossiê ao governo do estado
Em 28 de setembro, mais um relato sobre a intenção de praticar um atentado contra Freixo. Um grupo paramilitar, liderado por um policial lotado na unidade do Grupamento de Policiamento em Áreas Ambientais (Gpae), se reuniu na Cidade de Deus com o objetivo de acertar os detalhes.
- Vou deixar o país, mas não é um recuo. Não é um arrependimento por ter denunciado as milícias. Vou voltar e continuar a luta contra os milicianos - ressalta Freixo, pré-candidato a prefeito nas eleições de 2012.
Atualmente, o deputado só anda escoltado por seguranças. A quantidade, porém, não é revelada por ele. Freixo utiliza ainda um carro blindado para os seus deslocamentos na cidade. Hoje, o parlamentar pretende entregar um dossiê detalhando todas ameaças sofridas à Secretaria Estadual de Segurança Pública e ao Ministério Público, além de pedir providências.
- O emocional da minha família está abalado. A milícia é um problema de todo o país. Trata-se de uma máfia que já matou uma juíza e não medirá esforços para matar um deputado. Até agora não recebi qualquer informação sobre as investigações da Secretaria de Segurança - afirmou Freixo.
Procurada pelo GLOBO, a Secretaria estadual de Segurança Pública não quis comentar as denúncias contra Freixo e a saída dele do país.
Concluída em dezembro de 2008, o trabalho da CPI das Milícias revelou o domínio territorial de grupos paramilitares. Um dos focos das investigações foi em Campo Grande, onde os irmãos Natalino e Gerônimo Guimarães, respectivamente, ex-deputado estadual e ex-vereador, chefiavam a maior milícia da região.
A CPI, associada aos inquéritos abertos pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), resultaram nas prisões dos políticos e dos milicianos.

domingo, 30 de outubro de 2011

Milícias se alastram pelo país

Milícias se alastram pelo país
30 Out 2011
Paramilitares atuam em, pelo menos, 11 estados; na Bahia, políticos são investigados
Cássio Bruno

A população do Rio de Janeiro não é a única refém das milícias. Em pelo menos 11 estados brasileiros, há ações de grupos paramilitares armados e chefiados por agentes públicos da área de segurança, de acordo com levantamento feito pelo GLOBO, nas duas últimas semanas, com base em dados fornecidos por Ministérios Públicos e Ouvidorias de Polícia. Os milicianos atuam em territórios urbanos e rurais, onde impõem lei própria e serviços econômicos, além de se envolverem em assassinatos. Em alguns casos, como na Bahia, há suspeita de envolvimento de políticos.
As milícias estão organizadas na Paraíba, no Espírito Santo, no Ceará, em Mato Grosso do Sul, no Pará, em Pernambuco, em Alagoas, no Piauí, em Minas Gerais e em São Paulo, além da Bahia e do Rio. Os grupos agem com características diferentes em cada estado. O discurso para controlar as comunidades é parecido: eles extorquem dinheiro de moradores e comerciantes para oferecer segurança privada ilegal. Em troca da proteção, os milicianos prometem expulsar ou matar traficantes.
Um dos casos mais graves está em Salvador. Investigações do Ministério Público apontam que milicianos têm controle de 12 bairros do subúrbio da capital, entre eles Águas Claras, Fazenda Grande do Retiro e Cosme de Faria. Eles exploram o transporte alternativo e a distribuição de serviços de internet, de TV a cabo e de gás. O modo de operar é semelhante ao de grupos paramilitares do Rio. Vereadores, com base eleitoral na região, estão na mira dos promotores. Segundo o MP, os parlamentares estariam se beneficiando das milícias em eleições.
No Rio, após conclusão da CPI das Milícias, em dezembro de 2008, presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), a maioria das 225 pessoas denunciadas e indiciadas pelo Ministério Público e pela polícia, entre elas deputados e vereadores, está presa.
- Esses milicianos estão envolvidos, principalmente, com políticos, traficantes e com a agiotagem - diz a promotora Ediene Lousado, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas do MP, que prefere manter sob sigilo os nomes dos policiais investigados até a conclusão do inquérito.
Na Paraíba, policiais militares e agentes penitenciários fazem a segurança particular irregular de moradores e comerciantes na Região Metropolitana de João Pessoa. Apenas em outubro deste ano, foram registradas quatro denúncias sobre o assunto na Ouvidoria de Polícia. Fardados e com carros da corporação, os PMs escoltam supermercados, postos de gasolina, boates e casas de show mediante pagamento de propina. Segundo a própria ouvidoria, a maioria dos policiais é lotada no 5º Batalhão.
- Eles são organizados. Têm, inclusive, troca de plantão nestas escoltas. Vamos encaminhar as denúncias para o Ministério Público e para o Conselho Nacional de Justiça - revela a ouvidora de polícia, Vaudênia Paulino Lanfranchi.
Em SP, 20 policiais são investigados
Em São Paulo, promotores estão preocupados com a atuação das milícias. Eles investigam um grupo de cerca de 30 pessoas, entre elas 20 policiais militares, civis e federais, além de guardas civis metropolitanos, que estariam atuando na área central da capital. Eles são suspeitos de explorar comercialmente uma área do governo federal em que foram instalados boxes para a venda de produtos contrabandeados e falsificados. Além de cobrar ilegalmente pela locação do espaço, os acusados estariam cobrando uma taxa mensal dos comerciantes para manter a segurança do local. Quem se nega a pagar a taxa ou discorda das regras é ameaçado e até agredido.
O Ministério Público afirma que muitas vítimas não querem denunciar o problema, pois são imigrantes chineses ou coreanos ilegais. Os promotores ainda estão colhendo provas sobre o caso e ninguém foi preso, por enquanto. Há também uma outra investigação que indica que comerciantes da Rua 25 de Março - famosa pelo comércio popular - estão tendo que pagar propina a policiais e fiscais do município para que possam funcionar.
Corregedora nacional de Justiça, a ministra Eliana Calmon conta que as milícias estão por trás da maioria dos casos de violência contra magistrados brasileiros. Por isso, ela iniciou uma força-tarefa nos 27 estados para identificar e punir as ações de grupos paramilitares.
- A punição é a forma ideal de começar a erradicar isso. As milícias se fortalecem com a impunidade - lembra a ministra.
Eliana Calmon iniciou um mapeamento para tentar acelerar o andamento de processos envolvendo policiais militares e civis. Segundo ela, boa parte dos crimes envolvendo milicianos está parada na Justiça.
- A minha maior preocupação é com o Poder Judiciário. Temos reclamações de processos envolvendo policiais que estão parados com o objetivo de serem prescritos - afirma a ministra.
Ministro admite problema
Eliana Calmon alerta para casos ocorridos na Bahia, em Goiás e no Ceará. Neste último estado, pelo menos 30 policiais são réus acusados de venderem segurança privada ilegal:
- Queremos acabar com esse derramamento de sangue. Uma das milícias do Ceará é comandada por um major da polícia.
A promotora de Justiça Joseana França, membro-auxiliar da Corregedoria do Conselho Nacional do Ministério Público, faz um alerta:
- Em um primeiro momento, os milicianos dão proteção a moradores e comerciantes angariando simpatia. Eles matam ou expulsam os bandidos das comunidades com aquele discurso de levar a tranquilidade. Os legisladores precisam rever essa discussão.
Na Câmara, ainda tramita, desde 2007, um projeto de lei, de autoria do deputado federal Luiz Couto (PT-PB), que torna as milícias e os grupos de extermínio crimes federais, com até oito anos de prisão. Um dos artigos também pede punição de até dois anos de detenção para a oferta ilegal de serviço de segurança pública ou patrimonial, podendo a pena ser agravada em um terço caso seja cometido por servidores públicos, civis ou militares.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, admite o problema, mas lembra que a Polícia Federal está dando apoio aos governos estaduais para combater as ações de milicianos. Cardozo cita o caso do Rio, onde existe uma parceria entre o governo federal e a Secretaria Estadual de Segurança Pública.
- Infelizmente, é uma realidade no país. Estamos trabalhando com os governos para combater estas milícias ou organizações criminosas. Este é um grande desafio. Temos que agir com rigor, coragem, competência e eficácia - ressalta o ministro.
Para Paulo Baía, sociólogo e cientista político da Universidade Federal do Rio (UFRJ), as milícias são uma reconfiguração da pistolagem e dos esquadrões da morte comandados por policiais:
- As milícias funcionam como a máfia italiana. O poder público vende a autoridade.
Violência contra índios em MS
Os números confirmam a violência no campo e a atuação de milicianos em Mato Grosso do Sul: nos últimos oito anos, dos 456 índios assassinados no país, 250 eram do sul do estado. O levantamento, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), aponta como motivo das mortes os conflitos entre pistoleiros contratados por fazendeiros e índios expulsos de suas reservas. O crescimento da violência em áreas indígenas motivou a abertura de inquérito pelo Ministério Público Federal.
As mortes se concentram em reservas na fronteira com o Paraguai. Dourados é uma das regiões mais violentas. Segundo o coordenador do Cimi, Flávio Vicente Machado, as milícias são formadas por pistoleiros paraguaios contratados por fazendeiros. Os grupos expulsam os índios e fazem segurança ilegal para fazendas.
Quando não matam, os pistoleiros queimam aldeias e plantações, e derrubam barracas. Expulsos das reservas, índios moram em acampamentos.
— A violência só será combatida com a demarcação das reservas — afirmou Flávio Machado.
No estado do Pará, os grupos de pistoleiros agem contra colonos em assentamentos.
— Os conflitos ocorrem por interesses de madeireiros, fazendeiros e mineradoras — disse a senadora Marinor Brito (PSOL).
 

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Senado derruba siglo eterno de documentos


Folha de S. Paulo 26 de outubro de 2011
Senado derruba sigilo eterno de documentos

Senadores aprovam lei que regula o acesso a papéis públicos e rejeitam proposta de manter segredo indefinidamente
Parlamentares da base governista e da oposição se uniram para derrubar relatório preparado por Collor
MÁRCIO FALCÃO
FERNANDO RODRIGUES
O Senado aprovou ontem à noite o projeto de lei que garante e facilita o acesso a documentos públicos nos três Poderes da República e em todos os níveis de governo: municípios, Estados e União.
O texto havia sido aprovado pela Câmara e agora vai à sanção presidencial. Entrará em vigor 180 dias após a assinatura de Dilma Rousseff.
O aspecto mais conhecido da lei é a fixação do prazo máximo de 50 anos para que os documentos ultrassecretos fiquem com acesso restrito.
Hoje esses documentos são considerados sigilosos por até 30 anos, mas esse prazo pode ser renovado indefinidamente. A política foi adotada pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
Por essa proposta, todo documento oficial sigiloso pode receber graus de classificação: reservado (por cinco anos), secreto (15 anos) e ultrassecreto (25 anos).
Só no caso de documentos ultrassecretos será permitida uma renovação de prazo. Esses dados no grau máximo de sigilo podem ser classificados apenas pelo presidente da República, vice-presidente, ministros, comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e chefes de missões diplomáticas no exterior.
O governo federal, no passado, chegou a considerar como sigilosos telegramas diplomáticos, documentos do período da ditadura militar e da Guerra do Paraguai.
O projeto prevê ainda a criação de uma Comissão Mista de Reavaliação de Informações composta por integrantes dos três Poderes.
Esse grupo terá mandato de dois anos e poder para reavaliar casos de documentos tidos como ultrassecretos.
Com a lei, todos os órgãos e entidades públicas terão prazo de até dois anos para fazer "reavaliação das informações classificadas como ultrassecretas e secretas".
Não está claro se será facultado aos agentes zerar a contagem dos prazos de sigilo de todo o acervo público.
Mas todos os órgãos terão de publicar anualmente um "rol de documentos classificados em cada grau de sigilo, com identificação para referência futura". Ou seja, será possível a qualquer cidadão saber quais informações não estão sendo liberadas.
Hoje isso é impossível, o que dificulta a transparência.
A nova lei não trata apenas de documentos sigilosos, mas também de tudo que for produzido pelos governos.
A ideia é garantir que a sociedade possa controlar as atividades governamentais.
O projeto estabelece que qualquer cidadão poderá requerer informações sem precisar justificar o pedido. Há previsão ainda para que os documentos sejam disponibilizados em formato digital para facilitar análises.
A votação impôs uma derrota ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), e ao senador Fernando Collor (PTB-AL). Ex-presidentes, eles defendiam a previsão de sigilo eterno para alguns documentos ultrassecretos.
A discussão sobre os documentos ultrassecretos dominou a votação. Collor apresentou voto em separado propondo o sigilo eterno e disse que o país precisa de salvaguardas: "O Brasil será o primeiro país a abrir todas as suas informações. Não podemos hipotecar o futuro".
O relatório de Collor foi derrubado por votos de governistas e oposicionistas. O líder do PT, Humberto Costa (PE), disse que "não há como um documento produzir embaraço depois de 50 anos".
 

domingo, 23 de outubro de 2011

O pêndulo, a centralização e a República


O ESP 22 out 2011
O pêndulo, a centralização e a República

Luiz Werneck Vianna, Professor-pesquisador da PUC-Rio


Seria de supor que algumas correntes liberais brasileiras, ao menos as de "casco duro" - para se utilizar de uma expressão jocosa introduzida pelo ex-presidente Lula em nosso vocabulário político -, manifestassem alguma relação de empatia com a posição firmada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), uma vez que no cerne da controvérsia sobre que papel deve desempenhar o Conselho Nacional de Justiça no controle do exercício da magistratura está a antinomia centralização/descentralização, que, desde o Império, acompanha a nossa História.
No caso, uma vetusta tradição liberal, cuja mais incisiva formulação se tornou clássica com a publicação de A Província, em 1870, de Tavares Bastos, uma denúncia dos males da centralização administrativa, que ainda ecoa no não menos clássico da nossa bibliografia liberal Os Donos do Poder (1958), de Raimundo Faoro, denúncia que, a partir de outros porta-vozes, vai ressurgir nas lutas contra o autoritarismo político do regime militar e encontrar tradução nas demandas municipalistas dos movimentos políticos e sociais apresentadas ao legislador constituinte de 1988.
A Carta de 1988, redigida num tempo em que ainda se ouviam as vozes de Tancredo Neves e de Ulysses Guimarães - "as pessoas vivem nos municípios e não na União" -, além de fazer girar o pêndulo em favor da descentralização, combinava a democracia representativa com a de participação e abrigava, em nome da justiça social, postulações de direito material, protegidas constitucionalmente por alguns instrumentos criados com essa finalidade. A igualdade, pela primeira vez em nossa História, encontrava estatuto próprio como um ideal coletivo a ser perseguido por políticas de Estado.
A igualdade tem suas urgências e os recursos para atendê-las eram e são escassos. Nada de surpreendente, portanto, que os tempos subsequentes à promulgação da Carta de 88, que nos trouxe de volta a descentralização, depois de décadas de vigência do princípio que lhe era oposto, comecem a assistir, agora num cenário de democracia política institucionalizada, ao movimento do pêndulo em direção à centralização administrativa, diante de uma sociedade cada vez mais enredada nas agências estatais e dependente delas.
Tais efeitos perversos da afirmação da agenda da igualdade não são incomuns, constatados por dois dos maiores fundadores da teoria social moderna, Tocqueville e Marx, que, malgrado a radical diferença existente entre eles, convergiram no diagnóstico - o primeiro, em O Antigo Regime e a Revolução, o segundo, em O 18 Brumário de Luis Bonaparte - de que a asfixiante centralização que tomou conta da sociedade francesa após a Revolução de 1789 - a revolução da igualdade - era um dos seus frutos negativos. Para ambos, porém, a centralização não é filha, em linha direta, da igualdade, mas da falta de República e da livre vida associativa que lhe é própria. Sem ela as postulações por igualdade são interpretadas pelo Estado que as concede à sua discrição e a partir de um cálculo em que suas conveniências são levadas em alta conta, entre as quais a de sua política de legitimação.
A revolução democrática brasileira, que tomou forma na Carta de 88, resultou da articulação de uma ampla coalizão política, que, em suas lutas por liberdades civis e públicas, abriu passagem para a emergência de uma vigorosa movimentação dos setores subalternos em torno dos seus interesses, logo que começaram a se emancipar dos controles coercitivos a que estavam sujeitos. Tal movimentação persistiu ao longo do processo de transição para a democracia e da sua subsequente institucionalização, mantendo a esfera pública sob pressão, inclusive em suas manifestações eleitorais, no sentido de reforçar as postulações por direito material que procediam de várias regiões da vida social.
Com a escora dos fundamentos constitucionais igualitários, essas pressões se fizeram irresistíveis. Diante da escassez de recursos da Federação e dos imperativos de urgência reclamados pela sociedade, mesmo que na ausência de um plano definido, inicia-se, então, um novo giro em favor das tendências centralizadoras. Seu carro-chefe será o das agências públicas de âmbito nacional, como o Sistema Único de Saúde (SUS), decididamente uma política igualitária de largo alcance, que se torna um paradigma dominante em termos de outras políticas sociais, como no caso das políticas de educação e de segurança, para não falar das políticas assistenciais do tipo do programa Bolsa-Família, todas com baixa ou nenhuma participação ativa da sociedade.
De modo quase invisível à percepção imediata, tem-se instalado uma estatolatria doce, justificada e legitimada por sua destinação social. Nessa batida, sem sequer se mencionarem os graves problemas tributários, a Federação cede espaços à União e a sociedade abdica de sua autonomia em favor do Estado. A tendência à centralização torna-se universal e não poupa nenhuma região da vida social: há problemas de segurança, chamem-se as Forças Armadas, embora o Haiti não seja aqui; há corrupção no Judiciário, apele-se ao Conselho Nacional de Justiça, passando por cima das Corregedorias dos tribunais, tidas de antemão como suspicazes, e sem que sequer se esbocem tentativas de mobilização das corporações profissionais dos operadores do Direito e de setores da sociedade a fim de exigirem exemplar correição.
A República democrática tem seus custos sociais e políticos e um dos mais elementares deles é o de criar e preservar as condições para a auto-organização do social, com a sociedade e suas instituições empenhadas na solução dos seus problemas e desafios, forma com que nem sempre se chega mais rapidamente ao objetivo, mas, como o demonstra sobejamente a nossa já longa experiência republicana, é muito melhor e mais segura.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Forças Armadas são a instituição mais bem avaliada



9/10/2011 –

Forças Armadas são a instituição mais bem avaliada, aponta pesquisa 

NÁDIA GUERLENDA
DE BRASÍLIA
As Forças Armadas são a instituição mais bem avaliada pelos brasileiros quando perguntados sobre segurança pública, aponta pesquisa Ibope encomendada pela CNI (Confederação Nacional das Indústrias) e divulgada nesta quarta-feira.
A pesquisa foi feita entre 28 e 31 de julho deste ano com 2.002 pessoas acima de 16 anos, em 141 municípios. Dos entrevistados que avaliaram as instituições quanto ao serviço à comunidade em assuntos de segurança pública, 63% deram às Forças Armadas o conceito de ótima/boa.
Em segundo lugar foi apontada a Polícia Federal, com 60% de ótima/boa. Em último lugar ficou o Congresso Nacional (23% de ótimo/bom e 45% de ruim/péssimo), seguido de perto pelo Poder Judiciário (30% de ótimo/bom e 34% de ruim/péssimo).
A situação da segurança pública no país é vista como ruim ou péssima por 51% dos entrevistados, e 37% acreditam que a situação piorou nos últimos três anos --15% dos pesquisados afirmaram que a situação melhorou, e 47% afirmou que está igual desde 2008.
Entre as medidas apontadas pelos entrevistados para melhorar a atuação policial, estão o aumento do salário e melhora na formação e treinamento dos policiais, além de punição exemplar aos maus profissionais e melhor infraestrutura.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Comissão da Verdade está sob fogo amigo

Valor 18 de outubro de 2011.

Comissão da Verdade está sob fogo amigo

Raymundo Costa

O projeto de lei que cria a Comissão Nacional da Verdade está pronto para ser aprovado no Senado, mas curiosamente é a esquerda que tem proporcionado as principais dificuldades à votação. Ainda hoje, por exemplo, o senador Paulo Paim (PT-RS) deve presidir audiência sobre a proposta do governo. Sem nenhuma razão prática. Afinal, já existe acordo entre os partidos para a votação do texto do relator, o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP).
"Muito tem se falado sobre a Comissão Nacional da Verdade, mas pouco tem se discutido sobre o conteúdo da proposta", diz o assessor especial do Ministério da Defesa, José Genoino. Ex-deputado pelo PT de São Paulo, ex-guerrilheiro do PCdoB na selva do Araguaia, Genoino atualmente defende o projeto em tramitação em nome do Ministério da Defesa e dos comandantes militares das três forças armadas.
Na contra-mão de alguns deputados, entidades de direitos humanos e familiares de desaparecidos, Genoino diz que a anistia foi recíproca e que mais importante que julgar eventuais torturadores é saber o que de fato aconteceu nos porões. O ex-guerrilheiro Genoino refere-se a uma das principais críticas à proposta: a comissão não terá o poder de propor ação penal nem criminal contra responsáveis identificados por violação dos direitos humanos.
Genoino lamenta desconhecimento sobre projeto
De fato, a comissão não terá "caráter jurisdicional ou persecutório", pois seu objetivo, como está descrito no texto do projeto é "promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos graves de violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas".
Para José Genoino, mais importante que o julgamento jurídico, hoje, é o político: "A memória é um processo permanente de discussão, avaliação e transformação da sociedade", diz, "enquanto o julgamento se encerra com a aplicação da pena". Para o ex-deputado "julgamento jurídico é olhar pelo retrovisor, o julgamento político é ver pelo para-brisa, olhar para o futuro".
Com uma caneta marca texto Genoino destaca, no projeto, que a comissão terá poderes para "promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior". Entre os objetivos também está o de "identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violação de direitos humanos" e suas "eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade".
A comissão não poderá propor ações criminais contra réus eventuais, mas nada impede que outros órgãos o façam. O Ministério Público Federal do Distrito Federal já manifestou intenção de promover ações por ocultação de cadáver e sequestro, por serem crimes continuados. Genoino acha que manifestações desse tipo apenas afasta pessoas que eventualmente poderiam contribuir com esclarecimentos do que ocorreu de verdade, além de dispersar energia que deveria estar concentrada na preparação dos trabalhos da comissão.
O texto do projeto que cria a Comissão da Verdade não está solto no ar, mas equilibrado em outros diplomas legais, desde a Constituição de 1988 à lei que reconhece como mortas "pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979". A Assembleia Constituinte de 1988 votou e derrotou emenda de Genoino e do então senador Mario Covas que tornava imprescritível o crime de tortura.
"O racismo passou, a tortura não", lembra-se Genoino. "Fomos derrotados pelo Centrão", diz, referindo-se ao grupo de centro-direita majoritário na Assembleia. O fato é que a Constituição de 88 recepcionou integralmente a Lei de anistia, conforme entendimento recente do Supremo Tribunal Federal.
"Se vamos apurar a história da ditadura, precisamos de um marco e esse marco é a Carta de 88", diz Genoino. O período a ser investigado pela comissão também é aquele circunscrito pela Constituição no artigo oitavo das suas disposições transitórias: "É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção".
Outra crítica rebatida por Genoino é a de que a comissão, com sete integrantes a serem designados pela presidente Dilma Rousseff, não terá a infraestrutura necessária para a extensão do empreendimento.
Em primeiro lugar, diz o ex-deputado, a comissão será vinculada a uma unidade orçamentária, a Casa Civil da Presidência da República, a quem caberá dar "suporte técnico, administrativo e financeiro". Essa vinculação impedirá que a comissão cresça a ponto de se transformar quase num ministério, a exemplo do que aconteceu em alguns países.
O projeto de lei estabelece que os membros da Comissão da Verdade "perceberão o valor mensal de R$ 11.179,36 pelos serviços prestados". E os servidores "ocupante de cargo efetivo, militar ou o empregado permanente de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, dos Municípios ou do Distrito Federal, "manterão a remuneração que percebem no órgão ou entidade de origem acrescida da diferença entre esta, se de menor valor", e os R$ 11,1 mil da remuneração prevista.
O servidor - militar ou civil - designado para a comissão será dispensado de suas atribuições no cargo de origem. Seus integrantes também receberão "passagens e diárias, para atender os deslocamentos, em razão do serviço, que exijam viagem para fora do local de domicílio". Serão criados 14 cargos de assessoramento superior.
"Esses são os dois objetivos da comissão: apurar a violação dos direitos humanos e promover a reconciliação nacional", diz Genoino. Segundo o ex-guerrilheiro, o projeto brasileiro "é um dos mais avançados segundo os padrões internacionais".
São mais de 30 experiências no planeta, em contextos de transição política, e todos tendo como objetivo a reconciliação e o registro da verdade sobre o passado de violações dos direitos humanos. "Mais radical que um julgamento é a memória, que tem papel educativo permanente", afirma Genoino.
Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Paradoxos da corrupção

Folha de S. Paulo, 14 de outubro de 2011.

Paradoxos da corrupção

São Paulo - Hélio Schwartsman


SÃO PAULO - Sucesso na internet, as manifestações contra a corrupção não vão tão bem no mundo extrassilício. A pergunta é: por quê?
O que não falta são hipóteses. Entre os suspeitos por nossa tolerância com a corrupção figuram desde a herança ibérica até o jeitinho brasileiro.
Se formos aos dados, porém, vamos descobrir que o buraco é mais embaixo. Pesquisa Datafolha de 2009 mostrou que 94% dos brasileiros concordam que é errado vender o voto. Apesar disso, 12% dizem que trocariam o sufrágio por dinheiro.
Pior, 74% declaram sempre obedecer às leis; não obstante, 83% admitem já ter cometido uma ação ilegítima, de um cardápio que traz de sonegação a estacionar em fila dupla.
O problema está na clivagem entre a ética pública (que segue um modelo deontológico, de normas absolutas) e a ética privada (que vai na linha consequencialista, na qual as ações são consideradas boas ou más em virtude dos resultados que produzem).
Embora essas duas matrizes sejam mutuamente excludentes, nós estamos sempre pulando de uma para a outra.
E por boas razões. Levados até o fim, tanto a ética deontológica quanto o consequencialismo produzem paradoxos que não queremos aceitar. Uma regra absoluta de jamais mentir levaria a sociedade ao colapso: você teria de dizer para sua sogra que a comida dela é horrível.
Já um consequencialismo sem freios sanciona o ato do médico que mata o sujeito saudável para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pacientes na fila de transplantes.
Para que o Estado funcione em padrões de Primeiro Mundo, a balança deve pender mais para o lado das normas absolutas e menos para o do pragmatismo "self-service".
Revela-se aí um novo paradoxo: nós recorremos à ética privada justamente porque as instituições são ineficientes, e elas são ineficientes, entre outras razões, porque toleramos a corrupção. Para sair dessa armadilha, não basta exigir ética. É preciso também fazer o Estado funcionar.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

A Lei de Anistia nao deve ser alterada


O Globo  12 out 2011.
'A Lei da Anistia não deve ser alterada'
PERFIL - Aloysio Nunes Ferreira, relator da Comissão da Verdade
Ex-integrante da luta armada, senador tucano é contra punição para agentes do Estado envolvidos em torturas
Evandro Éboli

BRASÍLIA. Escolhido relator da Comissão da Verdade, o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) participou da luta armada contra o regime militar. Foi um dos braços-direitos do líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), Carlos Marighella, na segunda metade dos anos 60. Atuou em assalto a banco, foi preso e viveu no exílio. Hoje, o senador acredita que a comissão vai trazer à luz fatos desconhecidos daquele período, mas não tem a ilusão de que todas as circunstâncias serão esclarecidas.
- Para os familiares de desaparecidos, é uma história que nunca vai se fechar. Em alguns casos, jamais saberão o que ocorreu com seus parentes que sumiram da face da Terra sem deixar vestígios. Nestes casos, não há reconciliação celebrada em documentos - disse Aloysio Nunes, em entrevista ao GLOBO.
Motorista de Marighella
Na ALN, "Mateus", codinome de Aloysio Nunes na organização, era do Grupo Tático Armado (GTA). Por várias vezes, esteve ao lado de Marighella, para quem atuava também como motorista.
- Participei de ações armadas. Mas não quero bancar o herói - disse o senador tucano, que, hoje, condena aquelas ações e admite erros.
- Estávamos profundamente equivocados. O que derrubou a ditadura foi a luta de massas, a luta democrática. Mas o que está feito, está feito. Não me arrependo - disse Aloysio, que evita detalhar suas ações.
- No GTA, era operário mesmo - diz, em referência ao trabalho pesado que executava.
Apesar do passado de luta armada, Aloysio não acredita em resistências militares à sua indicação para relator do texto da Comissão da Verdade. Para ele, os tempos e o pensamento militar são outros:
- Essa geração de militares não tem nada a ver com aquela, marcada pelo golpe de 64. O contexto é outro. As Forças Armadas estão plenamente inseridas na vida democrática.
- E, entre os que se opunham ao regime, não há mais quem se afaste da democracia como valor permanente.
Aloysio faz uma severa autocrítica do grupo que integrou.
- A ALN não era democrática. Era autoritária na prática e na organização política.
Aloysio embarcou para um autoexílio na França, em outubro de 1968. O cerco fechou. Àquela altura, era procurado pelos agentes do Estado. Seu nome estava espalhado em cartazes pela cidade: "Terroristas assassinos".
- Se tivesse ficado, teriam me matado. Era muito visado - contou.
Antes da viagem, foi preso algumas vezes. Nunca foi torturado.
- Ainda não existia o AI-5 e o habeas corpus estava em vigência.
Nos processos e IPMs era indiciado por atividades subversivas. Lembra que uma das prisões se deu quando seguia para um encontro da União Estadual dos Estudantes (SP), da qual era dirigente, em São Bernardo do Campo. Foi parado numa barreira policial e argumentou:
- Estou procurando aquele famoso frango com polenta que tem por aqui - disse, sem convencer o agente.
- É. Vou te dar o frango com polenta que tem lá no Dops, seu comuna desgraçado - respondeu o policial, que o prendeu em seguida.
Em 1975, foi julgado e condenado à revelia a três anos de cadeia e dez anos de suspensão dos direitos políticos. Aloysio só retornou ao Brasil com a Lei da Anistia, em 1979. Foi defendido por José Carlos Dias, que foi ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso, cargo que Aloysio também ocupou.
Sobre a Comissão da Verdade, Aloysio diz que manterá o texto aprovado na Câmara, que considera bom, e defende a manutenção da Lei da Anistia. Não defende punições para antigos agentes do Estado que cometeram torturas.
- Para punir, tem que mudar a Lei da Anistia ou acionar o Poder Judiciário. Não deve ser alterada a Lei da Anistia. Ela foi base do processo de redemocratização, referendada e ampliada na convocação da Constituição. Dizia-se que foi aprovada num Congresso manietado e não representativo. Não foi. Por ela, pude voltar ao país. Tenho outra visão.
Na década de 80, já reeleito deputado federal pelo PMDB, respondeu a um processo no Superior Tribunal Militar por ter, em 82, num comício em São Paulo, "incitado a subversão da ordem, a animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis e ofender a honra do sr. presidente da República (João Figueiredo)". Foi absolvido em abril de 86.
- Devo ter sido o último civil julgado com base na Lei de Segurança Nacional.
A certidão da Abin, com seu histórico político, relata que Aloysio, em Paris, "cooperou com a propaganda anti-Brasil no exterior".
Aloysio Nunes foi anistiado pelo Ministério do Trabalho em novembro de 1994, quando recuperou sua inscrição na OAB. Em 2003, entrou com pedido de reparação pela perseguição política, e, em novembro de 2006, a Comissão de Anistia aprovou o pagamento de R$100 mil, em prestação única, referente a 15 anos, 7 meses e 22 dias de perseguição, entre 1966 e 1979.

domingo, 9 de outubro de 2011

Capital social

O Estado de S. Paulo, 9 de outubro de 2011.

O espírito do nosso tempo

09 de outubro de 2011 | 3h 05

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor itular da USP, consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato - O Estado de S.Paulo
 
Que significado se pode extrair da constatação de que a família e os partidos políticos habitam as duas extremidades do território da confiança social? A resposta é exatamente o que a pergunta denota: o núcleo familiar (com 90 pontos) é a instituição que mais merece respeito da sociedade, enquanto os atores políticos (com apenas 28) são os mais desacreditados, conclusão que ganha peso com o apêndice de que o Congresso Nacional está em penúltimo lugar (um pouco acima dos partidos) no ranking da confiança nacional.
Essa radiografia, tirada pelo Ibope Inteligência de um conjunto de 18 organizações e 4 grupos sociais, deixa o universo político-partidário no fundo do buraco. Para piorar, anote-se o detalhe: o índice de confiança apurado na pesquisa refere-se às pessoas jurídicas, e não à pessoa física dos representantes. Ou seja, uma crise de confiança corrói a imagem das instituições brasileiras. O retrato fica mais borrado ao se verificar que, além de partidos e Congresso, outras esferas, como os governos federal e municipais, e até o Poder Judiciário, vêm registrando acentuada queda em sua pontuação. É inescapável a conclusão de que a comunidade nacional atinge, na atual quadra, a maior distância que já manteve da esfera política. Pior é saber que essa mancha não entra na lupa dos membros das instituições avaliadas.
O que aciona o sistema cognitivo das pessoas para aumentar ou diminuir sua confiança nas instituições? Simples: o que elas veem, ouvem e sentem. Donde se deduz que sua percepção sobre a classe política e os abrigos que a envolvem é a pior possível. Vale lembrar que os níveis de compreensão obedecem a um continuum na escala social, abrigando desde a exacerbação de conjuntos médios e superiores da pirâmide ao estado impermeável da base, mais propensa a reclamar de serviços públicos fundamentais. Exemplo é o sistema público de saúde, que teve a maior queda no ranking da confiança. Inegável, porém, é que as instâncias políticas - em todos os níveis e territórios - pouco têm contribuído para motivar a sociedade. Eleições, de dois em dois anos, são fenômenos previsíveis e com perda gradativa de impacto. Os índices de renovação no Congresso até são expressivos (cerca de 50%), o que não redunda em mudança nos padrões políticos, eis que a radiografia continua a acusar as velhas mazelas: cooptação eleitoral nos moldes antigos, partidos pasteurizados, remota chance de o representante ter projetos aprovados nas Casas congressuais, presidencialismo imperial levando de reboque o Legislativo, trocas no balcão de interesses, manutenção do status quo no plano da reforma política.
O pano de fundo é tétrico. A via política tem sido pavimentada por baterias de escândalos, alguns de alto teor explosivo - mensalão, flagrantes de pacotes de dinheiro entregues a políticos e, ultimamente (caso que agita a Assembleia de São Paulo), denúncias de "venda de emendas parlamentares" -, tudo isso sob os holofotes da mídia e com repiques que acabam se infiltrando nos espaços do centro e das margens sociais. Ao fim dos bombardeios, nuvens cinzentas baixam sobre o edifício da política, sujando a imagem de seus habitantes. O efeito se faz sentir na desafeição pela política tradicional. E na substituição por outra modelagem que contempla novos circuitos de representação (associações, movimentos) e fontes diferentes de mobilização (categorias profissionais nas ruas, caravanas nos corredores congressuais), na esteira do que se chama democracia supletiva. Questões abrangentes dão vez a ações pontuais em defesa de algumas comunidades.
A micropolítica, da ação localizada e imediata, passa a ser a munição dos grupos de pressão. E assim a instituição política vai descendo degraus na escada da confiança social, enquanto outras entidades ascendem a posições mais elevadas. Não por acaso, os bombeiros, as igrejas e as Forças Armadas lideram o ranking da confiança social. A primeira constrói uma imagem de instituição atrelada ao dever de proteger a sociedade e debelar tragédias cotidianas; por falta de perfis admiráveis, os bombeiros entram na escala heroica. As Forças Armadas, em tempos de harmonia social, exprimem o ideário da autoridade e da hierarquia, valores que ganham proeminência no meio dos sinais de desordem e improvisação que permeiam a vida social e política. Já as igrejas encarnam a fé, arregimentando em seus templos multidões que descreem dos poderes terrenos e das vãs promessas da política. Desse novo diagrama institucional emerge uma nova arquitetura, com destaque para a multiplicação de novos polos de poder e força.
A leitura final mostra que a confiança é um produto em queda no balcão dos valores nacionais. Ao lado do painel construído pelo Ibope, há outro, desenhado pela Fundação Getúlio Vargas, que também aponta para queda na confiança de empresários e consumidores, afetados pela deterioração do cenário internacional e seus reflexos na economia. O refluxo se dá ultimamente nos Índices de Confiança do Consumidor (o menor índice desde março do ano passado), da Indústria (o menor desde agosto de 2009) e de Serviços (o menor desde janeiro). Apesar de tratarem de objetos diferentes, pois a cena institucional incorpora elementos diferentes dos fatores que influem nos mercados de produção e consumo, os índices de confiança em queda apontam para um ambiente circundado por devastação, desolação e medo. A falta de oxigênio nos pulmões políticos reduz as chances de aparecerem perfis capazes de reanimar as veias sociais. A política é uma seara seca. A precariedade de serviços públicos essenciais, por sua vez, multiplica feridas, abrindo fossos nas margens. E quando poderosas nações do planeta não conseguem apagar as fogueiras que devastam suas economias, o sopro do pânico adentra todos os espaços.
É o espírito do nosso tempo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Violencia na América do Sul

Correio Braziliense, 6 de outubro de 2011.

Um povo atado pelos homicídios


Apesar dos planos de segurança, taxa de assassinato de brasileiros é praticamente a mesma entre 1998 e 2008, segundo relatório da ONU. País ocupa o terceiro lugar na lista das nações mais violentas da América do Sul
Larissa Leite
Renata Mariz
Seis anos não foram suficientes para a redução da taxa de homicídios no Brasil. É o que aponta o Estudo Global sobre Homicídios, divulgado hoje pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc). Em 2004, a taxa era de 22,5 homicídios para cada 100 mil habitantes, enquanto, em 2009, ficou em 22,7. O escritório utiliza dados fornecidos pelo Ministério da Justiça, mas também cita os compilados pela Organização Pan-Americana da Saúde, que agrega dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Levando em conta as informações só da organização, o problema é mais antigo: em 10 anos, de 1998 a 2008, a taxa se mantém em torno de 30 homicídios para cada 100 mil habitantes. Os números brasileiros são superiores à média mundial — contabilizada em 6,9 homicídios — e posicionam o país como o terceiro com o maior índice da América do Sul, ficando atrás apenas da Venezuela e da Colômbia (veja quadro).
O estudo estabelece uma relação entre crime e desenvolvimento e afirma que países com grandes disparidades nos níveis de renda estão quatro vezes mais sujeitos a serem atingidos por crimes violentos do que em sociedades mais equitativas. "As políticas de prevenção ao crime devem ser combinadas com o desenvolvimento econômico e social, e a governabilidade democrática, baseada no estado de direito", defende em nota Yury Fedotov, diretor executivo do Unodc. Ao contrário do Brasil, a Colômbia reduziu pela metade o seu índice no período de 10 anos, em função dos crescentes esforços das autoridades em enfrentar os grupos de crime organizado envolvidos na produção e no tráfico de drogas, segundo o estudo. A Venezuela, por outro lado, teve acréscimo no número de homicídios, números que não são disponibilizados pela autoridade estatal.
No Brasil, o estudo destaca o decréscimo do índice em São Paulo e cita o "significante número de homicídios que ocorrem em cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Brasília". Para o relatório, o cenário paulista demonstra a possibilidade de prevenção e de redução de crimes violentos no contexto urbano. Em São Paulo, a taxa, em 2008, é de 14,8 para cada 100 mil habitantes. Em Brasília, de 34,1, de acordo com o Mapa da Violência 2011. Sociólogo do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Ignácio Cano afirma que as causas da queda de mortes violentas em São Paulo ainda precisam ser mais pesquisadas. Segundo ele, há especulações de todo tipo. "Alguns estudiosos dizem que é um reflexo do domínio do PCC (organização criminosa), que teria monopolizado a venda de drogas, evitando, assim, mortes entre as facções. A facção teria compreendido, pelo que apontam alguns levantamentos etnográficos, que não vale a pena trocar tiro com a polícia, de forma que muitas bocas de fumo nem teriam mais armas", afirma Cano.
O sociólogo ressalta que os dados nacionais, apontando índice de 24 mortes violentas por 100 mil habitantes, portanto maior que as medições da ONU, são mais confiáveis. "Nossa estatística aponta uma queda moderada da taxa de homicídios nos últimos anos, puxada basicamente pelos números de São Paulo. Entretanto, esse número não cai muito porque a violência no Nordeste, especialmente em locais como Bahia e Alagoas, subiu muito", explica.
De acordo com o Unodc, foram cometidos 468 mil homicídios no mundo em 2010 — dos quais 31% ocorreram nas Américas. Segundo o estudo, o crime organizado, especialmente o tráfico de drogas, é responsável por um quarto das mortes causadas por armas de fogo nas Américas, enquanto que, na Ásia e na Europa, é responsável por apenas 5%. Ainda de acordo com o estudo, os homens enfrentam mais riscos de sofrer uma morte violenta do que as mulheres (11,9 e 2,6, respectivamente). A organização cita a América Central e o Caribe como locais "próximos a um ponto de crise". Na América Central, 1 a cada 50 homens com mais de 20 anos será morto antes de chegar aos 31 anos.
Ranking
País - Mortes por 100 mil habitantes
Venezuela - 49
Colômbia - 33,4
Brasil - 22,7
Equador - 18,2
Guiana - 18,4
Guiana Francesa - 14,6
Suriname - 13,7
Paraguai - 11,5
Bolívia - 8,9
Uruguai - 6,1
Argentina - 5,5
Peru - 5,2
Chile - 3,7
 

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Camelódromo?

Folha de S. Paulo, 5 de outubro de 2011.

Pivô de escândalo compara Assembleia a camelódromo

Deputado que acusa colegas de vender emendas diz que 'cada um tem um preço'

Barbiere diz que não apontará nomes e afirma ter alertado autoridades do governo estadual em audiências

SILVIO NAVARRO

DE SÃO PAULO

O deputado estadual Roque Barbiere (PTB) comparou ontem a Assembleia Legislativa de São Paulo a um camelódromo e afirmou ter alertado o governo do Estado para a existência de um esquema em que seus colegas negociariam emendas ao Orçamento com prefeitos e empreiteiras.
"Isso é igual camelô, cada um vende de um jeito", disse Barbiere, numa entrevista em seu gabinete na Assembleia. "Cada um tem uma maneira, cada um tem um preço".
Os deputados paulistas têm o direito de apresentar ao governo do Estado todos os anos indicações para o repasse de até R$ 2 milhões em verbas para obras, hospitais e outros projetos de interesse dos seus redutos eleitorais.
Barbiere diz que alguns de seus colegas negociam essas emendas com os prefeitos das cidades beneficiadas e as empresas interessadas nas obras e reafirmou a acusação ontem, mas sem apontar nomes.
O deputado afirmou que discutiu o assunto neste ano com o secretário estadual de Planejamento, Emanuel Fernandes, e a subsecretária de assuntos parlamentares da Casa Civil, Rosmary Corrêa.
Barbiere diz ter sugerido que eles examinassem com atenção casos em que deputados pediram ao governo estadual verbas para cidades em que nunca tiveram votos, onde supostamente não teriam interesse legítimo que justificasse suas emendas.
"Tive essa conversa com Emanuel, com a delegada Rose, sobre esse teor", disse Barbiere. "O deputado não pode destinar emenda para lugar que nem sabe onde fica. Tem algo de estranho nisso."
Barbiere apontou como exemplo São José dos Campos, reduto político do secretário Emanuel Fernandes . "O dia que eu, Roquinho, destinar R$ 1 milhão para para São José dos Campos... Eu nunca fui a São José, nem sei ir. Viu como é fácil controlar? Não precisa eu dar nome."
Em nota, o governo do Estado negou ter recebido de Barbiere qualquer comunicação de irregularidade no uso das emendas. "O deputado tem o dever de apontar casos concretos que sustentem suas graves denúncias. Até agora não o fez", afirma a nota.
Barbiere prometeu apresentar amanhã um depoimento por escrito ao Conselho de Ética da Assembleia, mas insistiu que não dará nomes de colegas. "Nem com revólver na cabeça. Meu objetivo não é dedurar ninguém, é acabar com a prática."
Ele afirmou que, "dependendo de como for tratado", entregará "um caso concreto" somente quando for ouvido pelo Ministério Público, que abriu inquérito para investigar suas acusações.
Barbiere falou pela primeira vez sobre o caso em agosto, numa entrevista ao jornal "Folha da Região", de Araçatuba, seu reduto eleitoral. O deputado disse ontem que a imprensa deveria "ajudar" as investigações. "Não é buscar nome que nem vampiro, vocês gostam de foder alguém".
Ele sugeriu que a venda de emendas seria uma prática de parlamentares mais antigos e não dos novatos que que chegaram à Assembleia neste ano. "Para os mais antigos, não é nenhuma surpresa o que eu falei. Se fingir surpresa, é por hipocrisia."

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Congresso em baixa

Correio Braziliense, 4 de outubro de 2011.

Congresso em baixa



Levantamento aponta que diminuiu a confiança dos brasileiros no Legislativo federal. Partidos políticos foram os piores avaliados
O Congresso Nacional e os partidos políticos são as instituições em que o brasileiro mais desconfia, de acordo com pesquisa do Ibope publicada ontem. Um ano depois de a Ficha Limpa ser aprovada pelo parlamento, mas barrada pela Justiça, além da série de denúncias de corrupção na Esplanada dos Ministérios, apenas 35% da população disse que confiava na Casa, e 28%, nos partidos políticos. As instituições mais bem avaliadas são os bombeiros, com 86% de confiança.
A pesquisa é publicada desde 2009, de forma a acompanhar a evolução das relações de confiança do brasileiro nas instituições públicas. Nesse cenário, a avaliação do Congresso piorou em relação a 2010, quando foi de 39%, e a dos partidos políticos caiu cinco pontos. Governo federal, com 52%, Judiciário, com 49%, e prefeituras, com 47%, também foram mal avaliados e caíram em relação a 2010. O Ibope ouviu 2.002 pessoas, 18 instituições e quatro grupos sociais. Embora tenha obtido um índice razoável, de 60%, a confiança do brasileiro em relação à Presidência da República também caiu — no ano passado, o índice era de 69%.
O perfil traçado pelo Ibope mostra que a população brasileira deposita mais confiança nas instituições tradicionais, como o Exército e a Igreja, ambos com 72% de aprovação. A família, com 98%, lidera o ranking, seguido da confiança nos amigos (68%). De acordo com a pesquisa, os entrevistados também estão menos confiantes no sistema público de saúde (41%), nas escolas públicas (55%) e nos meios de comunicação (65%). No ano passado, 47% diziam confiar na Saúde, 60% nos colégios, e 67% na imprensa.
Outros países
Além do Brasil, o Ibope promoveu a pesquisa em mais três países: Argentina, Chile e Porto Rico. No país da América Central, a maior queda foi registrada no sistema público de saúde. Em 2009, 59% dos porto-riquenhos confiavam na área, contra 46% neste ano. Na Argentina, as instituições públicas foram mais acreditadas em relação aos dois anos passados. Já no Chile, os protestos estudantis colaboraram para que as escolas públicas apresentassem o menor índice entre todos os países analisados, de apenas 47%.

Para além dos partidos

Folha de S. Paulo, 04 de outubro de 2011.

VLADIMIR SAFATLE 

Para além dos partidos

Costuma-se dizer que a democracia depende de partidos políticos fortes. No entanto talvez fosse mais correto dizer que ela depende da possibilidade de mobilizações populares para além dos partidos.
É importante lembrar isso em um momento histórico como o nosso, onde a força transformadora da forma-partido se esgotou.
Desde o início do ano, o mundo assistiu a uma sucessão impressionante de mobilizações populares. Tunísia, Egito, Israel, Chile, Espanha, Grécia, Síria, Bahrein, Reino Unido e, agora, os EUA -com as ocupações de Wall Street por "indignados". Raros foram os momentos históricos em que mobilizações ocorreram de forma tão global.
Olhando mais calmamente para elas, notam-se dois importantes pontos em comum: a presença maciça de jovens e uma organização feita a despeito dos partidos.
É bastante clara aqui a consciência de que a forma-partido, como a conhecemos, parece bloquear o campo do político e embotar a criatividade social exigida pelo confronto com novas situações. Os partidos não estão na vanguarda, mas a reboque dos processos.
São os jovens que, sabiamente, sentem mais claramente essa realidade. Por isso, eles não parecem dispostos a se engajar em partidos que submetem a inventividade do político ao raciocínio estratégico do dia. Na verdade, eles estão à procura de outra forma de organização política.
Muitas vezes, alternativas dessa natureza foram conjugadas no interior da lógica "mudar o mundo sem conquistar o poder". Bem, o que se pode dizer a respeito desse raciocínio é: os detentores do poder agradecem.
Ao contrário, espera-se de novas formas de organização política que elas apresentem modelos mais eficientes de governo, que elas nos ensinem, inclusive, a avaliar de outra forma ideias como "eficiência". Ou seja, não se deve temer o poder.
Há de se reconhecer a complexidade da equação: não aceitar o modelo de gestão do poder baseado na forma-partido sem cair em alguma forma de crença no espontaneísmo redentor da "vontade política".
Pensando nisso, talvez vejamos em alguns anos o aparecimento de algo como agremiações eleitorais compostas por vários pequenos grupos políticos que se unem para disputar eleições e modificar, por dentro, a lógica restrita da democracia parlamentar.
Modificação que permita a abertura da vida social para uma democracia com mais densidade de participação popular e com menos medo de uma soberania que se manifeste sem a necessidade de representações.
Certo é que, no mundo inteiro, os partidos não encantam mais.

VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.

sábado, 1 de outubro de 2011

O partido da janela

O Estado de S. Paulo, 1 de outubro de 2011.

O partido da janela

01 de outubro de 2011 | 3h 07

Se a infidelidade partidária continuasse a existir, o PSD criado pelo prefeito paulistano, Gilberto Kassab, não existiria. Tampouco existiria se pelo menos tivesse vingado a ideia da chamada "janela" para permitir que os políticos trocassem impunemente de legenda durante um período a cada quatro anos. À falta disso, o PSD vem para fazer o papel de partido da janela. Afinal, a legislação autoriza a migração, sem risco de perda de mandato, para siglas novas. O difícil é encontrar algo verdadeiramente novo na nova agremiação, cujo registro foi concedido na terça-feira pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Até o nome é plágio do velho PSD concebido pelo astuto Getúlio Vargas para fazer par com o PTB no seu esquema de sustentação à direita e à esquerda. Já Kassab anunciou, com a maior candura, que a sua futura legenda não seria nem de esquerda, nem de centro, nem de direita.
Se tivesse a pretensão de ser qualquer dessas coisas - só se declarou de centro depois de registrados o partido e as adesões a ele -, entraria em colisão com a causa que o inspirou, com o perdão das palavras: ser o porto de abrigo de todos os políticos que se sentiam desconfortáveis onde estavam, por não enxergarem ali futuro para as suas ambições - caso do estiolado DEM, de onde virá uma vintena dos 48 deputados federais que já fizeram as malas para o PSD, dando substância à previsão de que os adesistas poderão somar cerca de 60. Com isso, a social-democracia kassabista se tornará a terceira força na Câmara, depois do PT (86 deputados) e do PMDB (80). Outra razão de desconforto, ligada à anterior, é a impossibilidade de dar vazão, nas siglas em que os insatisfeitos se alojam, ao insopitável desejo de se achegar ao governo da presidente Dilma Rousseff, sem integrar formalmente a base parlamentar do Planalto. Ou, como diz o prefeito, "não fazer oposição por oposição".
O kassabismo, desse modo, põe de ponta-cabeça um clássico dito anarquista espanhol. Na versão pessedista, si hay gobierno, soy favorable. É também o mote do PMDB, entre outros, mas este pelo menos teve uma trajetória respeitável, antes de decair, lenta, gradual e seguramente no suprassumo do fisiologismo. Além disso, avantajou-se o bastante, nos últimos anos, para sonhar em ser, ele próprio, governo. As ambições de curto prazo do PSD são, em geral, menores. Exceto, talvez, no seu lugar de nascimento, onde o vice-governador paulista, Guilherme Afif Domingos, dá sinais de pretender suceder a Kassab. A ordem é apoiar nos Estados seja lá qual for o político no poder, com vistas a conquistar posições já a partir das eleições municipais do próximo ano. O partido fará alianças com "qualquer um", disse o prefeito, "norteadas por nossos princípios e nossa conduta" - a perfeita contradição em termos.
A conduta, por sinal, é no mínimo matéria controversa, diante das pencas de irregularidades de que o País tomou conhecimento no processo de coleta das 490 mil assinaturas necessárias à inclusão do PSD no balofo sistema partidário nacional, com as suas 27 siglas. Firmas falsificadas, compra de signatários, petições circulando em repartições públicas e o uso dos nomes de eleitores mortos para cumprir as exigências da lei. Ainda assim e apesar do zelo da procuradora-geral eleitoral Sandra Cureau para impedir que o vale-tudo compensasse, o TSE legitimou a agremiação. Cumprida a etapa processual e enquanto correm os conchavos para o transbordo partidário dos insatisfeitos nas suas embarcações, Kassab descobre que a sociedade também existe e quer saber a que vem o seu partido.
Daí ele anunciar a sua primeira proposta: a convocação, mediante emenda constitucional, de uma Assembleia exclusiva para revisar em dois anos a Carta de 1988, à margem do Congresso. Como se a ordem institucional tivesse vindo abaixo e um novo regime tivesse sido implantado no País. A vida política tem problemas de sobra, e os brasileiros, motivos de sobra para deplorar as suas deformações, para levar a sério essa tentativa de tapar com a peneira a indigência programática de um partido que, pretendendo ser tudo para todos, nada de novo tem a oferecer à população.