terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Insegurança jurídica/cipoal legislativo

Cipoal legislativo

28 de fevereiro de 2012 | 3h 06

O Estado de S.Paulo
 
As várias mudanças parciais de códigos anacrônicos que o Congresso tem aprovado, por meio de leis especiais, adensam o cipoal legislativo reinante no País, disseminam a incerteza jurídica na sociedade, sobrecarregam o Supremo Tribunal Federal (STF) e obrigam o Senado a editar resoluções para adaptar as decisões da Corte ao ordenamento jurídico.
Há duas semanas, o Senado editou uma resolução para suprimir da Lei 11.343 - que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad)- uma expressão que o STF considerou inconstitucional. Essa lei foi aprovada em 2006 para atualizar a parte relativa ao tráfico de drogas do Código Penal, em vigor desde 1940, quando eram outras as condições sociais, econômicas e culturais do País. Entre outras inovações, a Lei 11.343 tipifica de forma mais precisa os crimes associados ao tráfico de drogas e aumenta as penas para os narcotraficantes.
Mas, a Lei 11.343 está redigida em termos vagos e imprecisos, que dão margem às mais variadas interpretações. O inciso IV do artigo 4.º, por exemplo, recomenda "a promoção de consensos nacionais, de ampla participação social, para o estabelecimento das estratégias do Sisnad". O inciso VI recomenda à administração pública "o reconhecimento da intersetorialidade dos fatores correlacionados com o uso indevido de drogas". E o inciso X define como princípio do Sisnad "a observância do equilíbrio entre as atividades de prevenção do uso indevido, atenção a reinserção social de usuários e de repressão à sua produção não autorizada e ao seu tráfico ilícito, visando a garantir a estabilidade e o bem-estar social".
Em outro artigo, a Lei 11.343 trata das penas aplicáveis a quem for condenado por crime de tráfico. O artigo 44 do Código Penal prevê a conversão da pena de prisão em penas alternativas, quando a condenação não for superior a 4 anos e o crime não tenha sido cometido com violência. Contudo, a aplicação dessa regra a narcotraficantes foi vedada pelo artigo 33 da Lei 11.343. Em setembro de 2010, ao julgar um pedido de habeas corpus impetrado por um traficante condenado a 1 ano e 8 meses de reclusão, que havia sido preso em flagrante com 13,4 gramas de cocaína, o Supremo considerou a proibição inconstitucional.
O julgamento durou sete meses e a Corte entendeu que o Congresso, ao votar a Lei 11.343, tirou dos juízes criminais o poder de individualizar as punições, o que lhes permitia optar pela pena de prisão ou por penas alternativas, conforme as peculiaridades de cada caso. "O princípio da individualização da pena significa o reconhecimento de que cada ser humano é um microcosmo. Ninguém mais do que o juiz da causa pode saber a melhor pena para castigar e ressocializar o apenado", disse o relator Ayres Britto. "Vislumbro um abuso do poder de legislar por parte do Congresso, que culmina por substituir-se ao magistrado no desempenho da atividade jurisdicional", afirmou o decano do STF, ministro José Celso de Mello Filho.
Foi por causa dessa decisão que no dia 15 de fevereiro o Senado editou a Resolução n.º 5, adequando o texto da Lei 11.343 à decisão tomada pelo STF em 2010. A resolução tem dois efeitos práticos e polêmicos. A partir de agora, traficantes de pequeno porte poderão ter a pena de prisão substituída por prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviços a comunidades ou a entidades públicas, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana. Além disso, a resolução colocará em liberdade inúmeros condenados por tráfico - um dos crimes responsáveis pela superlotação do sistema prisional,
Advogados criminalistas elogiam a medida. Já os juízes criminais a criticam, alegando que não faz sentido mandar narcotraficantes prestar serviços em escolas, creches e hospitais.
E os juristas lembram que tanto a decisão do STF quanto a resolução do Senado colidem com outros dispositivos da legislação, que consideram o tráfico um crime hediondo e inafiançável, motivo pelo qual não pode comportar penas alternativas. Esse quadro é mais uma amostra do caos jurídico reinante no País.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

"Contrabandos"

Por que parou?
27 Fev 2012

Está parado na câmara dos Deputados o projeto de lei que impede os parlamentares de inserir “contrabandos”, muitos de interesse pessoal, nas medidas provisórias enviadas pelo governo

Gustavo Ribeiro


Em 2010, o governo federal editou uma medida provisória (MP) que alterava regras de financiamento habitacional. Encaminhada ao Congresso para análise, o texto foi deformado. Parlamentes aprovaram emendas que nada tinham a ver com a proposta original. Enxertaram “contrabandos” ou “jabutis”, jargões parlamentares para um hábito danoso, cujos maiores beneficiários são os lobbies privados. Ao sair do Congresso, a MP sobre financiamento habitacional passou a tratar da emissão de títulos da dívida pública brasileira ao Banco do Nordeste e da doação, pela Casa dão Moeda, de 100 milhões de cédulas ao Haiti. Essa aberração legislativa resulta da nefasta combinação entre o domínio que o Executivo exerce sobre a pauta do Legislativo - apesar de os dois poderes serem, em teoria, autônomos e independentes - e a falta de disposição dos congressistas para honrar duas de suas principais tarefas: ser protagonista do ato de legislar e servir de contrapeso a manifestações imperiais do governo de turno.
Criadas pela Constituição de 1988, as medidas provisórias são um instrumento concedido ao presidente da República para baixar leis excepcionalmente, em casos emergenciais, como em resposta a tragédias naturais ou graves crises financeiras. Só deveriam ser editadas em casos de "urgência" e "relevância". Ao contrário dos projetos de lei, as MPs entram em vigor tão logo publicadas no Diário Oficial. É justamente nesse ponto que os interesses dos presidentes da República e de parlamentares mais preocupados em atender a determinados lobbies se encontram. Os presidentes perceberam que demandava menos tempo e custo político implantar mudanças legais via MP. Por isso, abusaram do uso do instrumento. Já os parlamentares, que não conseguem por projetos de sua autoria na pauta, completamente dominada pelo Executivo, passaram a conviver gostosamente com as MPs, apesar de vindas do Palácio do Planalto. Por que aceitaram essa submissão? Porque as MPs têm prioridade na fila de votação. Deputados e senadores sabem que elas terão de ser votadas. Por isso, promovem um festival de emendas - os "contrabandos".
O quadro é de hipocrisia institucional. No Congresso, enquanto um pequeno grupo reclama da enxurrada de MPs do Executivo, que estaria usurpando a prerrogativa de legislar, a maioria dos parlamentares quer mesmo é cada vez mais a edição desses textos. A situação é tão constrangedora que líderes governistas, em diversas ocasiões, chegaram a pedir ao presidente que baixasse medidas provisórias para resolver determinados assuntos - e, claro, abrir brecha para o acolhimento de certas demandas privadas. "Existem políticos especializados em introduzir itens sem nenhum interesse público. É assim que são feitas as grandes negociatas", diz o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). Entre os ardis para favorecer setores está a apresentação do relatório às vésperas da votação da MP. Isso impossibilita aos parlamentares analisar com cuidado o conteúdo de todos os artigos e emendas apresentados antes de votá-los. A votação-relâmpago não é nova, mas se intensificou na gestão do presidente da Câmara, o petista Marco Maia, um incentivador e beneficiário dos "contrabandos".
Como cabe ao presidente da Casa a escolha dos relatores das MPs, Maia confia a tarefa a deputados que não oferecem resistência à inclusão no texto das mais estapafúrdias emendas (veja quadro). O próprio Maia defendeu recentemente, embutido em uma MP sobre incentivos fiscais para a indústria de automóveis, um "contrabando" que beneficiava a indústria tabagista. Na última década, diferentes presidentes do Congresso reclamaram do excesso de MPs. Nada foi feito. Com a aprovação de uma proposta de emenda constitucional, relatada pelo senador Aécio Neves, vem agora do Senado o primeiro passo para racionalizar o processo. A emenda proíbe a inclusão de assuntos sem relação com o objeto original da MP. A Câmara, entretanto, não parece interessada em aprovar a mudança. Depois de deixar o projeto hibernando na Comissão de Constituição e Justiça, Marco Maia passou a relatoria ao companheiro Ricardo Berzoini (PT-SP), que vem tratando a matéria com proposital descaso. "Muitos parlamentares nem apresentam projetos e se limitam a pegar carona nas medidas provisórias para atender aos próprios interesses", afirma Aécio. Como esses interesses menores servem de combustível para animar boa parte do Parlamento, a iniciativa de Aécio só terá futuro se a sociedade brasileira pressionar os deputados.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Só 3% dos inquéritos acham culpados para assassinatos

Folha de S. Paulo, 23 de fevereiro de 2012.

Só 3% dos inquéritos acham culpados para assassinatos
Meta de mutirão era concluir 143 mil investigações que estavam sem solução
20% dos inquéritos abertos de 2007 para trás foram concluídos, mas a maioria sem apontar autor de crime
LUIZA BANDEIRA
DE SÃO PAULO
ESTELITA HASS CARAZZAI
DE CURITIBA
Mutirão nacional lançado com o objetivo de retomar investigações de assassinatos ou tentativas de assassinatos que estavam abandonadas teve pouco efeito prático.
A meta estabelecida por governo federal, Justiça e Ministério Público era concluir até o fim do ano passado 143 mil inquéritos abertos antes de dezembro de 2007 e que estavam sem solução.
Até dezembro de 2011, apenas 28 mil, 20% do total, tiveram um fim. E esse fim não resultou em apontar culpados. Cerca de 80% desses 28 mil inquéritos só foram concluídos porque os casos foram arquivados, sem qualquer solução.
O número de casos remetidos para o Ministério Público para que uma denúncia formal fosse oferecida à Justiça é de 4.652. Ou seja, pouco mais de 3% dos 143 mil casos que eram alvo do mutirão tiveram um culpado apontado.
Para um inquérito policial ser arquivado é preciso um parecer do Ministério Público e a concordância da Justiça.
O número de arquivamentos em todo o país só não foi maior porque 69 mil casos que a polícia queria arquivar foram mandados de volta às delegacias pelo Ministério Público sob o argumento de que as investigações eram insuficientes para que culpados não fossem apontados.
O Estado que mais arquivou inquéritos foi o Rio de Janeiro: cerca de 96% das investigações foram encerradas sem a descoberta do criminoso.
A promotora fluminense Renata Bressan nega que tenha havido arquivamento em massa de casos no Estado.
A conselheira do Enasp Taís Ferraz afirma que os inquéritos policiais arquivados podem, no futuro, ser reabertos caso apareçam novas provas que ajudem a encontrar culpados pelos casos de homicídio ou tentativa de homicídio.
Com o fracasso do mutirão, o Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública), que reúne o Ministério da Justiça e os conselhos de Justiça e do Ministério Público, resolveu adiar o prazo de conclusão dos inquéritos para abril deste ano -não são previstas punições para o não cumprimento da meta.
FALHAS
Delegados e promotores atribuem o volume de arquivamentos a falhas de investigação. Há inquéritos sem autores ou testemunhas e suspeitos identificados como "Yara de Tal" ou "Zé Gordo". Também há crimes prescritos ou em que o autor já morreu.
"Não é só falha na investigação, mas ausência de investigação por falta de estrutura", diz o promotor Paulo Panaro, do Espírito Santo.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

A omissão do Congresso

Folha de S. Paulo, 19 de fevereiro de 2012.

Paulo Paim
TENDÊNCIAS/DEBATES
A omissão em tempos de democracia

Há 20 anos, o Congresso tem atuado por interesses pessoais, corporativos ou via negociatas; projetos esperam a boa vontade dos políticos, constrangendo-nos
O Congresso Nacional precisa assumir, de fato, as suas atribuições e prerrogativas. Precisa ser, cada vez mais, a caixa de ressonância de indignação da sociedade.
Creio eu que, na verdade, o Congresso vem atuando, nos últimos 20 anos, apenas de forma pontual, baseado em interesses pessoais, corporativos ou mediante negociatas com os governantes e com o poder econômico. Isso deixa um refém do outro.
O Congresso tem se omitido, na maioria das vezes, em relação aos grandes temas nacionais, como segurança, saúde, educação, trabalho e previdência.
Essa falta de ação contribui de maneira decisiva para as sucessivas crises que temos vivenciado nessas áreas. Por que até hoje não se enfrentou as questões do fator previdenciário e do reajuste das aposentadorias e pensões?
A responsabilidade do Congresso se refere a vários temas. Quantos projetos de lei e propostas de emendas à Constituição tramitam há anos, esperando a boa vontade de deputados e senadores para que sejam votados?
Infelizmente, isso leva muitas vezes a situações constrangedoras e desmoralizantes.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tomou decisões sobre a aposentadoria especial para pessoas com deficiência, bem como sobre a fidelidade partidária. O Supremo ainda ameaçou o Congresso de regulamentar o aviso prévio proporcional se o mesmo não o fizesse. Só por isso a matéria foi votada.
Com relação à questão da Bahia, e depois do Rio de Janeiro, alguém parou para pensar e tem dúvidas de que ela foi, lembrando o escritor Gabriel Garcia Marques, uma "crônica de uma greve anunciada"?
E isso vale para todo o país, pois sabemos que a qualquer momento outras greves podem estourar. Se existem culpados, eles estão em ambos os lados. Mas há um terceiro culpado, que eu acrescento: até hoje o Congresso não regulamentou o direito de greve. E não foi por falta de propostas ou oportunidades. Todos nós sabemos disso!
O Brasil não pode, sobremaneira, proibir o direito de greve para os servidores públicos. A categoria não pode simplesmente ser impedida de fazer paralisações. Seria um erro grosseiro da nossa parte.
Agora, sejamos honestos, é preciso, sim, que exista regulamentação para que esses brasileiros, trabalhadores que prestam serviços essenciais, sejam capazes de manter as suas atividades, para não prejudicar a sociedade como um todo.
Após um longo debate, iniciado lá no começo do nosso primeiro mandato, chegamos a um texto: o projeto de lei do Senado 84/2007.
Pela proposta, serão considerados essenciais: os serviços caracterizados como de urgência médica, necessários à manutenção da vida; os serviços de distribuição de medicamentos; as atividades de necropsia, liberação de cadáver e exame de corpo de delito; as atividades policiais relacionadas à segurança pública e penitenciária, assim como as perícias; e o tráfego aéreo.
A ideia é que, em caso de greve nessas áreas, os responsáveis pelo movimento também se responsabilizem pela manutenção dos serviços, organizando escalas especiais, os chamados plantões de emergência. Ou seja, eles terão direitos, mas também terão limites, como diz a a nossa Carta Magna.
O Congresso é o palco das vozes das ruas, dos movimentos sociais e empresariais. É palco daqueles que buscam a verdadeira igualdade de escolhas e de oportunidades.
Nós, muito mais do que uma obrigação, temos a missão de estar em sintonia com os direitos humanos. Isso deve acontecer não só em tempos esparsos, mas na luta diária, pois é aí que se desenvolvem os debates e os pensamentos, aparando as arestas e abrindo os caminhos para o entendimento coletivo. É preciso que cada um assuma as suas responsabilidades.
PAULO PAIM, 61, é senador pelo PT-RS e presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado

Insegurança estrutural

Folha de S. Paulo, 19 de fevereiro de 2012.

liane Cantanhêde
Insegurança estrutural

BRASÍLIA - A (falta de) segurança pública entrou e saiu da pauta nacional como um soluço.
A greve da PM na Bahia, a tentativa no Rio e a ameaça de um apagão nacional das polícias mobilizaram o governo federal, os governos estaduais, o Congresso, a mídia.
Mas, com o fim da greve baiana, o insucesso no Rio e o recuo nacional, não se fala mais nisso. Chegou o Carnaval e todo mundo caiu na folia. Inclusive, claro, os bandidos dos mais diferentes matizes e naturalidades.
Há no governo, porém, quem provoque o Planalto, a Justiça e a Defesa para não perderem totalmente o embalo e retomarem a discussão sobre segurança pública já. De preferência, na Quarta-Feira de Cinzas.
Com a redemocratização, todos os setores avançaram, mas a segurança andou muito pouco. Ao contrário de toda a estruturação e a modernização de conceitos, aparelhagem, formação e foco nas Forças Armadas, as polícias continuam desarticuladas, mal treinadas, mal equipadas e, talvez até em consequência, mal pagas. Pior: com diferenças absurdas de remuneração entre Estados.
É hora de um pacto federativo para discutir essa questão que, afinal, diz respeito a todos os Poderes e é, literalmente, de vida ou morte para o cidadão. É preciso uma polícia nacional permanente, o fim de duas polícias que não se entendem nos Estados -a civil e a militar- e a unificação, mínima que seja, na formação, na cultura, no treinamento, nos uniformes e nos salários -que são, ora, ora, o mais complicado.
Isso tudo para começo de conversa, a partir de uma constatação muito simples: pior do que está não fica. E as greves deste fevereiro foram só um aviso. Os policiais estão organizados (até porque a organização é da natureza do ofício deles), já passaram por cima da lei uma vez e não terão problema para passar outras.
Cá para nós, estão totalmente errados na forma, mas ninguém questiona que têm razão no conteúdo.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

País do "quebra-galho"

Correio Braziliense, 15 de fevereiro de 2012
 
Lições das greves militares


WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH

Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, preside o Instituto Brasileiro Giovanni Falcone


A Constituição de 1988, salvo artimanhas interpretativas de Procusto, é clara ao proibir aos militares a promoção de greve, filiação político-partidária e organização em sindicatos. Assim, a greve, quando praticada por militares, tem a marca da ilegitimidade e mostra que seus líderes e aderentes às paredes não são educados à legalidade democrática. Sem cerimônia, rasga-se a Constituição a cada greve.
Na nossa Constituição republicana a greve, que é instrumento de equilíbrio nas relações trabalhistas, representa, referentemente aos militares, um direito social que sofre limitações, com o prevalecimento da segurança e tranquilidade social sobre os interesses corporativos.
Além da proibição, o constituinte criou instrumentos de intervenção federal, voltados a restabelecer a paz social, como a decretação dos estados de Defesa e de Sítio, sem prejuízo de a legislação ordinária tipificar crimes militares.
Em diversos estados democráticos de direito existem iguais proibições. Neles, como no Brasil, são admitidas várias formas para protesto e pressão não caracterizadoras de greve, como, por exemplo, o uso de redes sociais de sensibilização pública, internet etc.
Apesar do nosso quadro constitucional, as greves tornaram-se frequentes e, muitas vezes, são apoiadas pela população, como se viu recentemente com os bombeiros do estado do Rio de Janeiro. Para a violação constitucional e a decorrente entropia, concorrem a falta de uma política nacional de segurança pública e a baixa remuneração paga aos que atuam na linha de frente para a prevenção e o enfrentamento dos fenômenos da criminalidade e da violência. Também contribui a ética ambígua de partidos políticos, ao apoiar a parede com o objetivo único de desprestigiar o governador de turno.
Não se deve esquecer que as associações passaram a ser utilizadas como sindicatos e, para filiação partidária, basta ao policial sair em licença não remunerada. Na nossa história republicana, vários líderes associativos se elegeram para as câmaras e assembleias legislativas.
Numa apertada síntese, as proibições constitucionais são contornadas. O envio pela União de tropas do Exército em apoio à unidade federativa evita que se use do Estado de Defesa, às vezes contra governador do mesmo partido ou de coligação. Não bastasse, leis de anistia a grevistas, algumas com efeito cascata decorrente de emendas legislativas, aniquilam a força da proibição constitucional e mostram vivermos no país do “quebra-galho”. No Rio, até hoje se discute não a necessidade, mas a forma quebra-galho adotada para legitimar a presença do Exército no Complexo do Alemão, antes sob controle territorial e social do crime organizado.
A primeira brecha à greve veio com o fim do Ministério do Interior, pasta de importância fundamental em países europeus. Só para lembrar, o atual presidente francês foi ministro do Interior, ou seja, responsável pela segurança pública.
Esse ministério tem sempre a tarefa de coordenar e estabelecer a sinergia e a emulação salutar entre os diversos órgãos voltados a manter, internamente, a segurança da população. A pasta cuida da política de segurança e, evidentemente, das questões remuneratórias das polícias. Com a extinção do Ministério do Interior, as atribuições foram parar no Ministério da Justiça, que conta com uma Secretaria Nacional de Segurança meramente decorativa.
A inadequada remuneração dos policiais, com o projeto de emenda constitucional (PEC 300) voltado a estabelecer um piso salarial nacional e que tramita desde 2008 com uma única votação na Câmara, mostra o despreparo do nosso país no contraste, preventivo e repressivo, ao crime organizado, que é transnacional e conta com forte poder corruptor e de cooptação. Para se ter ideia, na abertura em dezembro de 2000 da Convenção sobre Crime Organizado Transnacional, o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, alertou para o fato de as internacionais criminosas obterem lucro que cresce de 40% a 50% ao ano. E tem mais, o antigo czar antidrogas das Nações Unidas, em dezembro de 2010, informou que o sistema internacional de compensações bancárias não quebrou, durante a crise econômica de 2008, graças à circulação do dinheiro do crime organizado.
Num pano rápido, o Brasil precisa com urgência de uma política nacional de segurança pública, que passa por questões fundamentais. A começar pelo fim da prevalência militar, sem se esquecer de remunerar adequadamente policiais e os educar, nas academias e escolas de polícia, para a legalidade democrática.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A economia vai bem, mas as instituições vão mal.


O Estado de S. Paulo 14 de fevereiro de 2012.
Greve de polícia - do pleito ao motim
José Pastore

No Brasil, a economia vai bem, mas as instituições vão mal. Basta observar a crise da Justiça, a indisciplina nas escolas e, agora, a rebelião dos policiais.

Os profissionais da segurança querem a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 300 que garante um piso de R$ 4.500,00. Por mais justo que seja o pleito, eles não têm autorização para desrespeitar as leis. Nada justifica a indisciplina ocorrida na Bahia, no Rio de Janeiro e em outros Estados.
Alguns analistas atribuem a desordem à falta de regulamentação do direito de greve do setor público. Há, aqui, uma verdade e um equívoco. De fato, o governo federal tem se omitido na ação no Congresso Nacional para aprovar aquele disciplinamento. Para preencher o vácuo legal, o Supremo Tribunal Federal (STF) regulou a greve dos servidores públicos pelas regras da Lei n.º 7.783 de 1989, que se refere ao setor privado.
O equívoco decorre dos seguintes fatos: a Constituição federal inclui na categoria de militares os oficiais das Forças Armadas, os policiais e os bombeiros. A eles compete preservar a ordem e garantir a segurança das pessoas e das propriedades. Em 1988, o constituinte brasileiro optou sensatamente por proibir a sindicalização e a greve para os profissionais que portam armas - os militares em geral. Por isso, para essa categoria, não há nenhuma necessidade de regulamentar a matéria.
Os policiais podem defender seus pleitos por meio de ações disciplinadas de associações, manifestos e redes sociais, hoje tão na moda. Há uma peculiaridade. Neste caso, o embate se trava entre as mesmas entidades legais, pois policiais e governantes são partes do governo. As disputas que ocorrem entre empregados e empregadores do setor privado são diferentes e, havendo infrações, os policiais têm o dever de intervir para proteger os cidadãos e o patrimônio. Mas, quando eles mesmos se rebelam, quem intervém?
A conduta dos rebeldes nos episódios recentes é extremamente grave. Os policiais têm o monopólio de usar a força para prevenir a violência e jamais para provocá-la. Por isso, a disparada de homicídios, saques e assaltos dos últimos dias tem de entrar na conta de quem deixou de cumprir o seu dever.
Mas o Brasil é o país do perdão gratuito, concedido sem penitência. Os precedentes são péssimos. Por força de leis anteriores foram anistiados policiais e bombeiros de inúmeros Estados brasileiros que praticaram delitos semelhantes, infringindo frontalmente as regras de sua corporação, das leis ordinárias e da própria Carta Magna.
Além das irreparáveis perdas das vidas humanas, a rebelião vem afetando a imagem do Brasil. O mesmo pode ser dito em relação à greve de juízes ocorrida no final de 2011. A insegurança é muito grande: quando os juízes fazem greve, quem a julga?
Com tamanho desrespeito, o País vira terra de ninguém. É isto mesmo: quando não se conta com policiais e juízes para manter a ordem, as pessoas se desorientam e os investidores desanimam. Os motins em tela ganharam letras garrafais na imprensa mundial. Eu estive na Coreia do Sul na semana passada, onde a televisão e os jornais deram um triste destaque às mortes dos inocentes e à depredação do patrimônio, o que chocou a opinião pública e intranquilizou os investidores que pensam em vir para o Brasil.
A propósito, fui informado de que naquele país grupos de jovens que fazem o serviço militar são treinados para agirem como bombeiros, policiais, condutores de ônibus, trens e metrôs e operadores de usinas elétricas, abastecimento de água, petróleo e outras atividades essenciais.
Por isso, além da cabida apuração e punição dos policiais indisciplinados, que tal pensarmos nesse tipo de treinamento? Afinal, o Brasil não corre o risco de ser invadido por nenhum de seus vizinhos, o que dá aos jovens conscritos muito tempo para se prepararem para as emergências do cotidiano.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Chave da segurança


Folha de S. Paulo, 13 de fevereiro de 2012.
Melchiades Filho
Chave de segurança
BRASÍLIA - O fim da greve dos PMs da Bahia e o início claudicante, porque sufocado, do levante no Rio podem dar a falsa impressão de que o problema está resolvido.
O vazamento das escutas telefônicas, que desnudaram tramas e crimes cometidos para dar visibilidade ao protesto, causou indignação no telespectador, não na tropa. Os sindicalistas perderam qualquer possibilidade de sensibilizar o público para suas reivindicações, mas não o respaldo da categoria.
Isso porque a questão salarial segue pendente. A disparidade chega a quase 200%: um soldado da PM ganha R$ 1.600 no Rio Grande do Sul, contra R$ 4.600 no Distrito Federal. A emenda constitucional (PEC 300) que cria um piso nacional não é apenas peça de chantagem. Trata-se de proposta legítima e fundamentada na realidade.
Também o calendário continua a favor dos sindicatos. Rio+20, Copa das Confederações, Copa do Mundo, Olimpíada, os grandes eventos internacionais renovarão as chances de emparedar União e Estados.
Mais: os PMs não estão sozinhos no funcionalismo. Muitas categorias torcem para que eles façam um primeiro rombo no casco das finanças de Dilma. Policiais federais e agentes penitenciários, por exemplo, acompanham o caso com atenção.
E há as Forças Armadas. Por muito tempo, elas resistiram à ideia de patrulhar ruas. Hoje, muitos militares constatam que o combate à violência nas cidades pode representar uma oportunidade de sair da irrelevância e conquistar espaço orçamentário. Os PMs rebelados são bois de piranha nesse roteiro.
O Palácio do Planalto, que de início se meteu na crise apenas para tirar do sufoco um governador do partido da presidente, parece ter, com o passar dos dias, percebido os riscos potenciais. Não faz mais sentido se esconder na Constituição e tratar da segurança pública como problema exclusivo dos Estados.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Tiros na cabeça

Tiros na cabeça predominam em assassinatos durante greve


Na maioria dos homicídios ocorridos na cidade de Salvador, vítima não teve chance de defesa
Levantamento nos boletins de ocorrência da capital baiana mostra que criminosos agiram à luz do dia ROGÉRIO PAGNAN
FÁBIO GUIBU
ENVIADOS ESPECIAIS A SALVADOR
GRACILIANO ROCHA
DE SALVADOR


A maioria das vítimas da onda de violência que tomou conta de Salvador após a greve da Polícia Militar foi morta com tiros na cabeça -o que sugere que elas não tiveram chance de defesa.
Levantamento exclusivo feito pela Folha com base em registros do Departamento de Homicídios da Polícia Civil baiana aponta que, de 109 homicídios cometidos entre 31 de janeiro -data do início da greve- até 9 de fevereiro, 100 foram causados por disparos. Desse total, 59 vítimas receberam tiros na cabeça.
"Quando alguém atira na cabeça é porque conseguiu chegar próximo da vítima. Não é tiro para se defender ou apenas ferir outra pessoa. É para matar", disse o diretor do Departamento de Homicídios, Arthur Gallas.
Outros seis homicídios foram por facadas, duas pessoas foram linchadas e uma mulher morreu carbonizada.
Para comparar, Salvador (2,6 milhões de habitantes) registrou em apenas dez dias mais homicídios do que a média mensal de 85 crimes desse tipo de São Paulo (11,2 milhões de habitantes) em 2011.
Segundo o governo baiano, na região metropolitana de Salvador houve 167 homicídios entre 1º de fevereiro e a manhã de ontem.
O levantamento da Folha inclui apenas os casos da capital. As informações dos boletins de ocorrência apontam que, durante a greve, criminosos agiram à luz do dia.
A análise dos boletins indica que, enquanto tropas federais protegiam pontos turísticos, os homicídios avançaram na periferia, onde a Folha verificou nos últimos dias ausência quase total de policiamento ostensivo.
Dos 109 homicídios da cidade, 99 ocorreram em subúrbios, favelas e bairros pobres -muitos sob o domínio de milícias controladas por policiais, conforme a inteligência da Polícia Civil.
Entre os mortos, 35 tinham sobrenomes Santos, e 14, Jesus -nomes que os escravos trazidos da África entre os séculos 16 e 19 costumavam receber no batismo católico quando chegavam à baía de Todos os Santos. Há característica de acertos de contas ou "limpeza" social em 41 mortes, segundo a polícia.
São casos em que os registros apontam ligações das vítimas com tráfico de drogas, roubos e estupro. Parte dos ataques tinha como alvos pessoas juradas de morte ou moradores de rua. Em três chacinas, 12 foram mortos.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Reflexão sobre a greve das PMs

Uma breve reflexão.



Por José Maria Nóbrega Jr. – Professor da UFCG/CDSA, Doutor em Ciência Política

Em regimes políticos democráticos, além das eleições com os requisitos dahlsianos e schumpeterianos, é fundamental o controle dos civis eleitos pelo povo, sob os militares. O que enxergamos na atual conjuntura da (in)segurança pública brasileira é justamente a falta deste controle em relação aos militares estaduais (polícias militares).
A greve da PM da Bahia e, agora, no Rio de Janeiro, mostra a fragilidade do controle civil sobre os seus militares a nível estadual. Em poucos dias, em Salvador, ocorreram mais de 110 assassinatos. Esta situação pode ser chamada de “estado de guerra de todos contra todos”, levando os indivíduos a agirem de forma extrema numa situação de grande desconfiança. Sem a polícia na rua o que impera é o estado hobbesiano.
O mais dramático, é que a greve vem sendo utilizada como pressão de alguns atores políticos debelados dentro das instituições policiais, com a finalidade de ver aprovada a PEC-300 (projeto de emenda constitucional que está no Congresso Nacional e que pretende nacionalizar os salários dos policiais militares e civis, tendo como base o salário dos policiais do Distrito Federal). A greve, como recurso de pressão da massa trabalhadora, é um instrumento legítimo, porém, a constituição brasileira veda esta prerrogativa aos policiais. A Segurança Pública não pode ser usada como manobra política de alguns grupos. Este bem comum, já bastante frágil em nossa atual conjuntura, é direito das pessoas e dever do estado. Agentes da lei que se negam em fornecer este serviço básico para o cidadão, deixa de cumprir a lei, sendo, dessa forma, um ator deliquente.
A crise de segurança vem sendo a principal responsável pelo crescimento da violência e das mortes por agressão em geral. E um dos problemas centrais dessa crise é antigo. Desde a redemocratização que os constituintes negligenciaram as relações entre civis e militares, sobretudo no que tange à Segurança Pública.
Na verdade, em democracias sólidas, realmente desenvolvidas, não existem polícias militares, nem militarizadas. A militarização da Segurança Pública foi recrudescida no período pós-ditadura no Brasil. Deveria ter ocorrido o inverso. Civilizar a polícia, no sentido estrito da palavra, é um grande desafio. Urge reformar a polícia brasileira, tornando-a um instrumento para o avanço democrático, destituindo seu caráter militarizante e reforçando seu aspecto democrático.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Debate sobre legalidade da greve


Folha de S. Paulo, 8 de fevereiro de 2012.
Caso reabre debate sobre legalidade de greve

 

Maioria dos advogados entende que, pela Constituição do país, policiais estão proibidos de paralisar atividades

Existem, no entanto, linhas de interpretação que veem uma brecha na legislação brasileira que legitima movimento

VAGUINALDO MARINHEIRO

DE SÃO PAULO


Diante da ameaça de que a greve da PM da Bahia se espalhe para outros Estados, cresce a discussão sobre se a Constituição permite ou não que esses profissionais paralisem os seus serviços.
A maioria dos advogados entende que não. O artigo 142 da Constituição, parágrafo 3º, inciso 4º, diz claramente que "ao militar são proibidas a sindicalização e a greve".
A questão é que alguns interpretam que o artigo é específico para os membros das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica). Isso porque o capítulo em que se encontra o artigo 142 se chama "Das Forças Armadas".
Mas um artigo anterior, o 42, que dispõe sobre os "militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios", afirma o seguinte: "Os membros das PMs e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios".
Na sequência, o texto afirma: aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios as disposições do artigo 142, parágrafos 2º e 3º. Ou seja, que a greve é proibida.
Alguns advogados, no entanto, contra-argumentam com o artigo 37, sobre os servidores públicos, que diz em seu parágrafo 8º que "o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica", o que nunca aconteceu.

INEXATO

Como o direito está longe de ser uma ciência exata, a discussão pode se arrastar por um longo tempo.
Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu em novembro do ano passado que é um grande argumento para aqueles que defendem a inconstitucionalidade da greve.
Ao julgar um pedido de liminar para a suspensão da greve dos policiais civis do Distrito Federal, o presidente do Supremo, Cezar Peluso, entendeu que mesmo os membros da Polícia Civil não podem fazer paralisações.
Os argumentos do presidente do STF são dois:
1- O direito à greve dos servidores públicos não é absoluto. Ele não vale no caso de policiais, que são "incumbidos de zelar por valores incontornáveis da subsistência de um Estado: segurança pública e incolumidade das pessoas e dos bens";
2- Nos serviços públicos desenvolvidos por grupos armados como a Polícia Civil, "as atividades realizadas por seus agentes são análogas às dos militares, em relação às quais a Constituição proíbe expressamente a greve".
Isso significa que, para Peluso, militar das Forças Armadas, policial militar ou civil, todos estão fora do direito de greve.
Numa discussão anterior no próprio Supremo, em maio de 2009, também sobre greve de policiais civis, os ministros Eros Grau, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Peluso defenderam a inconstitucionalidade de greves no setor de segurança, por ser este "essencial na proteção dos direitos fundamentais do cidadão em geral".
Grau, relator do caso, citou as Constituições de Itália, França e Espanha, que expressamente vetam greves de seus policiais.