Crimes hediondos: enquanto enforcavam, tungavam
Quando bater carteira dava pena de morte
Conta-se que o dia em que enforcaram os primeiros condenados à morte pelo crime de “bateção” de carteira em um país da Europa foi também o dia em que mais carteiras se furtou. Os curiosos foram à praça ver os enforcamentos e, bingo! A malta — lixando-se para a hediondez do crime (a metáfora é minha) — aproveitou para tungar mais ainda.
Veja-se: não estou dizendo que a pena não resolve. Tenho minhas diferenças com setores do Direito Penal brasileiro, principalmente com os iluministas tardios ou os libertaristas, que (quase) acham que é proibido proibir.[1] Menos. Um garantista da cepa como Ferrajoli não pensa assim, embora alguns leitores do mestre acreditem que ele seja um abolicionista.
De minha parte, acredito que a pena é necessária. A pena é castigo. É retribuição. E deve servir para prevenção geral. Mas só ela — a pena — não resolve. E, quanto maior e inexequível, mais caráter simbólico assume. E pode ser um tiro no pé. Já escrevi na coluna passada lembrando da transformação da falsificação de medicamentos em crime hediondo. Alguém recorda de alguma condenação? Fazendo uma alegoria em relação à lenda dos enforcamentos e da tunga das carteiras, no dia em que sancionaram a hediondez dos medicamentos foi o dia em que mais se falsificou uma ideia: a de crime hediondo como panaceia, como remédio (sem trocadilho) para todos os males.
A velha mania de legislar no calor da novidade
Pois bem. Estamos diante de uma nova inclusão de crimes do rol dos hediondos. Desta vez são os crimes de corrupção e peculato. Isso, à evidência, merece uma discussão mais aprofundada. É o pano de fundo necessário para revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição acerca do que seja bem jurídico e o poder-dever de punição em terrae brasilis.
Quem tem acompanhado as sucessivas manifestações e seus mais recentes desdobramentos pode observar que os poderes da República refizeram sua agenda de modo a dialogar com as tantas vozes que vêm das ruas clamando por mudanças. Claro, refiro-me aqui a quem o faz com olhos críticos. A massa recém desperta (?) ainda se alterna entre o deslumbramento e ação irrefletida.
Contudo, o momento é realmente muito bom para que pensemos sobre as questões estruturais dos problemas evidenciados nas manifestações, afinal, só assim se poderá reconhecer e refutar factoides, paliativos e demagogias, tanto os exigidos quanto os oferecidos e recebidos muitas vezes como soluções. Por isso, irei analisar a elevação do crime de corrupção (e outros) ao status de hediondo, cartaz levantado por inúmeros manifestantes, compromisso da presidente da República e projeto aprovado no Senado.
O Direito Penal e o dinheiro da viúva
Sinto-me a cavaleiro para falar sobre e do assunto. Afinal, fui citado na exposição de motivos do projeto da nova lei (ainda falta aprovar na Câmara). Antes de tudo, devo louvar o interesse e a dedicação do senador Pedro Taques (PDT-MT). Se o seu mandato encerrasse hoje, seu nome já estaria gravado no Senado como um dos mais combatentes parlamentares contra a impunidade. Veja-se a sua luta para a aprovação do novo Código Penal e suas discussões — fortes — com setores refratários a uma exasperação das penas dos crimes de cariz metaindividual. Taques tem muito claro que no Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve voltar as suas baterias em direção aos crimes que colocam em xeque os objetivos da República. Ou seja, penas menores para os crimes de cariz individual e penas mais duras para os crimes cometidos pelo andar de cima, em que se enquadra, sim, a corrupção, bem como a sonegação de tributos (o “sonegômetro” aponta para o valor de R$ 415,1 bilhões/ano — clique aqui para ler). Já, aqui, vai um pequeno registro: parcela considerável do Direito Penal de terrae brasilis não quer discutir essa questão da criminalização mais dura da sonegação de tributos... Por que será?
Sigo. A demanda por reprimenda efetiva para as condutas que lesam o patrimônio público (obviamente) não é nova. Não que seja levada em conta quando elegemos nossos representantes. A Ficha Limpa é um belo exemplo disso: uma lei que impede que elejamos novamente pessoas que macularam seu histórico — sozinhos não somos capazes de deixar de votar nessa gente, mas é uma bandeira balançada por setores da direita e da esquerda de forma indistinta. Ou seja: somos “tão bons”, saímos para protestar, mas precisamos de uma lei para “nos proteger” (de nós mesmos) para que não elejamos “fichas sujas”.
A corrupção e a hediondez
Como referido, o Senado aprovou no dia 26 de junho o PLS 204/11 que inclui no rol dos crimes hediondos os tipos penais descritos nos artigos 316, 317 e 333 do CP.[2] Elevou ainda as penas mínimas de todos para quatro anos. Tal fato se deu no dia imediatamente posterior à presidente se dirigir à nação e afirmar ser prioridade a elevação do crime de “corrupção dolosa” (sic).
Pois bem. Foi feito. E agora? “corruptos” passarão a ser vistos frequentando o sistema carcerário? Não é bem assim...
Já denuncio de há muito (e nessa esteira uma série de orientandos meus) que o Direito Penal em terrae brasilis não passou por uma filtragem constitucional em 1988 e segue sendo remendado sem a observância dos requisitos impostos pela nova ordem paradigmática e consoante com o avanço da teoria do delito. Aproveito para refutar aqui a tola (e tão comum no imaginário jurídico) ilusão de que se pode separar teoria e prática, como se por trás desta última não houvesse qualquer fundamento teórico, de modo a realizar-se por si mesma.
Há quase 20 anos, venho denunciando a seletividade penal e a consequente disparidade de tratamento dado às penas previstas para os delitos individuais, em especial nos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência à pessoa, e os metaindividuais cometidos por agentes econômica ou politicamente poderosos, como nos casos da sonegação fiscal, da apropriação indébita previdenciária e dos crimes contra o sistema financeiro em geral. E tenho sido criticado duramente por isso.
Denuncio, com veemência, que o Código Penal de 1940 foi escrito sob a lógica liberal individualista, o que fez com que a propriedade privada tenha ocupado o centro das atenções e recebido uma tutela amplamente superior se comparada à dos bens jurídicos coletivos. Por justiça, diga-se: é um código de seu tempo.
E a velha concussão “ficou” hedionda
O problema é que esse velho código — de perfil liberal-individualista — atravessou o século XX e ingressou no século XXI. Nele está o crime de concussão (artigo 316 — Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida), que — pasmem — possui pena idêntica ao do furto qualificado pelo rompimento de obstáculo (artigo 155, parágrafo 4º), qual seja a de dois a oito anos de reclusão. Quais são os livros de Direito Penal que denunciaram isso (no devido tempo) no plano daquilo que denomino de “paradigmas do direito”? Cartas para a coluna.
Esse mesmo código foi (mal) “recepcionado” pela Constituição de 1988. As distorções contidas no código ancião podem ser constatadas em toda a legislação penal, v.g., os que tratam do meio ambiente, do consumidor, da infância, dos idosos... e também das finanças publicas, cuja tutela se dá por uma série de tipos penais, não somente por aqueles eleitos para reforma. Que dizer, então, da comparação com o crime de tortura (Lei 9.455/97), equiparado a hediondo, cuja pena é a mesma do furto qualificado (e sem multa!)? Aliás, como é que em crimes contra o patrimônio, cujo autor é, em 99% é pobre, aplicam-se multas? Pergunte a qualquer juiz quantos condenados por crimes contra o patrimônio ele já viu algum pagando a multa. Isso é a demonstração de que nosso Código Penal se descolou da realidade. No jargão psicanalítico isso se chama esquizofrenia.
Os leitores se deram conta de que, no entremeio disso tudo, nada se falou da praga contemporânea chamada fraude a licitações, ainda tida como “crime de menor potencial ofensivo”? Querem que repita?
Ou a maioria dos crimes de responsabilidade de prefeitos, cuja pena mínima é de três meses? Esta funda-se em uma inadequada e, indubitavelmente ultrapassada, teoria da discricionariedade administrativa (importada de forma completamente indiscriminada e extremamente conveniente para as elites de terrae brasilis), que permite ao administrador “de plantão” impor sua vontade com a capa de sentido da legitimidade teórica que esta “janela” (aquela enraizada no capítulo oitavo da TPD de Kelsen) de liberdade lhe oferece. Configura-se uma verdadeira erosão de legalidade e traição do Estado Democrático de Direito, promovendo uma retroalimentação da desigualdade, que passa a ser cada vez mais patrocinada pelo próprio Estado!
E por que não se falou sobre a forma como se tratam as sonegações tributárias, especialmente no tocante à famosa Portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda que diz que a União só deve perseguir créditos tributários superiores a R$ 20 mil e cuja consequência é a extinção da punibilidade dos crimes de sonegação, descaminho etc. nos casos em que o valor seja menor do que esses R$ 20 mil? Hein? Alô, Senado da República! Alô, meu amigo Pedro Taques! Alô, presidente da República! Essa portaria serve para tungar os cofres públicos!
163 ações penais, um mandado de prisão
Já no ano de 1988 escrevia sobre as distorções do Direito Penal brasileiro. De lá para cá a coisa só piorou. Alias, um breve passar d’olhos sobre a lei penal brasileira é suficiente para revelar a escancarada a preferência do legislador quanto ao bem jurídico a ser protegido com maior esmero, (eis que a pena deve guardar congruência com a necessidade de tutela) quando se tem como parâmetro de comparação as sanções cominadas aos crimes de redução a condição análoga à de escravo (pena de dois a oito anos de reclusão) e o crime de extorsão mediante sequestro com duração de mais de 24 horas (pena de 12 a 20 anos de reclusão).
Repita-se que o crime de supressão ou alteração de marcas de animais (artigo 162) é apenado com seis meses a três anos de detenção e multa, pena máxima superior à cominada aos crimes de subtração de incapazes (artigo 249 ), violência doméstica nas hipóteses do parágrafo 10° (artigo 129), maus-tratos (artigo 136), violação de domicílio — quando praticada durante a noite ou em lugar ermo, ou com emprego de violência ou de arma, ou, ainda, por duas ou mais pessoas (artigo 150, parágrafo 1°) e assédio sexual (artigo 216-A, pena máxima de dois anos). O apenamento máximo excede, ainda, as penas originalmente previstas a crimes contra a ordem tributária (destaque para o artigo 2° da Lei 8.137/1990), alguns crimes ambientais (artsigos 32; 45; 50 da Lei 9.605/1998), a sérios crimes cometidos contra criança e adolescente (artigos 228; 229; 230; 231; 232; 234; 235; 236; 244 da Lei 8.069/1990) e a crimes ocorridos em licitações (arts. 93; 97; 98 da Lei 9.666/1993).
Não causa surpresa que dados extraídos do Infopen[3] revelem de forma cristalina a manutenção da clientela “hospedada” nas penitenciárias, cadeias públicas e demais estabelecimentos prisionais brasileiros. Num universo de 471.254 internos, 216.870 não completaram o ensino fundamental, 52.970 não concluíram o ensino médio e 26.343 sequer foram alfabetizados.
Tampouco surpreende a constatação de que 240.642 cumprem pena por crimes contra a propriedade e somente 1.144 por crimes contra a administração pública (peculato, concussão e excesso de exação e corrupção passiva). 125.744 cumprem pena por tráfico de entorpecentes, ao passo que 156 o fazem por crimes ambientais. Por tudo isso, não é sem motivo que não constam registros de internos condenados por fraude à licitação, gestão fraudulenta (ou qualquer outro crime contra o sistema financeiro).
O legislador tem liberdade de conformação?
Aliás, seria o legislador “livre” para fazer essas opções, escolhendo como apenar ou como escusar de sanção a ofensa a bens jurídicos? Num Estado Democrático de Direito essa resposta só pode ser um sonoro não.
Num Estado Democrático de Direito não há (mais) oposição entre Estado e sociedade. A defesa do Estado (isto é, de um Estado que passa da condição de “inimigo” para a de “amigo dos direitos fundamentais”, bem entendido) é a defesa da cidadania. E, no interior dessa “reviravolta”, é evidente que as baterias do Direito Penal deve(ria)m ser voltadas para aquelas condutas que se coloquem como entrave à concretização do projeto constitucional, aquele traduzido em linhas gerais no artigo 3º da Constituição.
Nesse contexto, surge (desvela-se, em sentido hermenêutico) uma nova criminalidade a ser combatida, aquela que atinge bens jurídicos supra ou metaindividuais, que afetam toda a coletividade. Fala-se no enfrentamento de crimes como a sonegação de tributos e a lavagem de dinheiro (todos esses com lesividade metaindividual). Atenção, Senadores e Deputados: quem sabe os senhores revogam os dispositivos da Lei 10.684/2003 (artigo 9º.) e da Lei 11.941/2009 (artigo 69) que dizem que o pagamento do tributo extingue a punibilidade. Ou, então, apliquemos a isonomia: permitamos também que nos crimes cometidos pela patuleia (furtos, estelionatos) a ausência de prejuízo e ou a devolução do valor obtenha também esse favor legis. Afinal, a República é só para os maganos do andar de cima?
Nesse sentido, vale lembrar que Constituição (que não é uma mera “carta de intenções”) efetivamente determina ao Legislativo e ao Judiciário que orientem o seu agir para esta direção, dando proteção suficiente aos bens jurídicos que foram catalogados em destaque (não só a ordem econômico-financeira, mas também o meio também o meio ambiente e a infância e juventude, por exemplo). E, afinal, se o Direito Penal é a ultima ratio, a mais grave das redes sancionatórias do aparato estatal, o mínimo que se espera (e aí Dworkin tem razão, quando cobra coerência e integridade do Direito) é que trate desigualmente os crimes desiguais. Exemplificando para ficar mais claro: se o patrimônio individual é algo a ser protegido (e segue sendo a propriedade um direito fundamental, algo que se lembra para evitar mal-entendidos – artigo 5º, inciso XXII da Constituição), inclusive via Direito Penal, então não pode haver dúvida de que o tratamento deve ser ainda mais rigoroso quando a lesividade atinge o patrimônio da coletividade.
O que não implica, como se viu, em acreditar que a majoração do apenamento operará uma espécie de “mágica moralizadora” na sociedade brasileira. Ela tem um papel a cumprir, mas o combate à rapinagem institucional não se dá somente pela falta de instrumentos. Manca, também, vontade política e compromisso republicano. Todo parlamentar apresenta a declaração de bens ao TRE/TSE. As evoluções patrimoniais ao longo dos mandatos chegam a ser absurdas em alguns casos (e por tantas vezes são desconsideradas). O Ministério Público e os Tribunais de Contas têm acesso aos procedimentos licitatórios (são públicos). A Lei da Transparência abriu os gastos públicos para o controle social... Nunca foi tão fácil detectar e comprovar improbidades e mau uso do dinheiro da viúva. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) atua bem e em compasso com grupos da Polícia e do Ministério Público. Falta trabalhar! Bingo!
Outra medida efetiva seria por fim ao foro por prerrogativa de função, vergonhosamente conhecido como foro privilegiado. E os números apontam para a veracidade do apelido. Há, hoje, somente no Supremo Tribunal Federal, 163 ações penais originárias, sem falar nos 483 inquéritos.[4] Tendo em vista isso e o histórico de apenas um mandado de prisão desde 1988 (25 anos!), expedido, por sinal, semana passada, dá-se pra entender que a prática tem sido de impunidade. E só recentemente houve a primeira condenação e aplicação de pena.
Portanto, o problema não está em se converter em hediondo — se isso não passar de apenas discurso. Um mandado de prisão em 25 anos é muito pouco para um tribunal que julga questões tão graves do andar de cima. O mero incremento das penas sem a persecução penal efetiva é um engodo.
Tudo isso sem contar que o discurso da hediondez desvia o foco, é o bode expiatório para que as massas possam dormir à noite e sonharem com a diminuição da impunidade e com a falácia da isonomia. Enquanto isso, meio milhão de desdentados superlotam celas infectas e a centenária impunidade do andar de cima será, por um tempo, esquecida. Veja-se: não se trata de uma frase de efeito: o número está correto e eles, na sua imensa maioria, são destituídos de uma adequada dentição.
Muito mais efetivo, portanto, é o fim do foro privilegiado. Mas a isonomia, aqui, não é um princípio que pega bem. Sempre há pessoas “mais iguais” que outras, principalmente quando legislam em causa própria... ou quando desviam o foco por meio de um discurso demagógico e embromador.
Por que quatro anos?
De se notar que o que se aumentou nos tipos penais analisados foi a pena mínima (de dois anos para o dobro). Mas esse número não foi produto de cabalas ou eleito ao acaso. Lembremos que pela nossa legislação atual, quando a pena aplicada não for superior a quatro anos (eis o número não cabalístico), permite-se a substituição da privativa de liberdade (cadeia) por uma pena restritiva de direito (as populares “penas alternativas”). Taí o busílis. Logo, o que dá com uma mão, tira-se com a outra.
Já um crime como roubo em concurso de pessoas não permite essa substituição. Mas tráfico de entorpecentes, sim. Assim, resta paradoxal e incoerente taxar de “hediondo” um certo crime e, ao mesmo tempo, possibilitar a aplicação de penas restritivas de direitos em seu tipo básico. A hediondez deveria ser reservada para um tipo de criminalidade, desculpem-se a obviedade, “hedionda”, como o estupro, o latrocínio, genocídio... Não deveríamos banalizar esse epíteto. Se tudo é, nada é. Se consideramos correta a inclusão da corrupção e do peculato no rol dos hediondos, o que justifica a exclusão do crime de lavagem de dinheiro e sonegação de tributos? Atenção: não estou nem de longe propondo isso. Quero apenas fazer uma caricatura, para denunciar a falta de isonomia, coerência e integridade da legislação e do próprio Poder Judiciário, que não aplica a isonomia.
A aplicação da Übermassverbot (proibição de excesso)
Resultado: a pretexto de punição, corre-se sério risco de favorecer a impunidade. Não é assim que se faz. Todos sabem da minha predileção pelo legislador. Pela defesa que dele faço. E todos sabem da defesa que faço da necessidade de o Estado combater com vigor os delitos que colocam em xeque os objetivos da República previstos na Constituição. Mas, há limites. E estes são os limites constitucionais. A teoria do bem jurídico não pode ser banalizada a este ponto. Assim como, por exemplo, o legislador não poderia descriminalizar o estupro ou o homicídio (para dizer o mais), também não pode punir sem qualquer critério que respeite alguns elementos cunhados pela tradição do Direito Penal do Estado Democrático de Direito. No primeiro caso, seria possível trabalhar a hipótese de aplicar a cláusula (ou princípio) da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), porque patente, em tais hipóteses, a proteção insuficiente ou deficiente dos bens jurídicos em tela. No segundo caso — e aqui se aplica a “hediondez” da corrupção e do peculato — parece visível o excesso de punição, podendo-se dizer que o legislador violou a cláusula da proibição de excesso (Übermassverbot).
Claro que tais princípios não são fáceis de explicar e/ou aplicar. Nesse sentido entra a importância da doutrina, que deve traçar esses limites, até para evitar que o judiciário decida de forma voluntarista (para “cima” ou para “baixo”). Além disso, dever-se-ia exigir do legislador a necessária prognose. Afinal, quais os elementos objetivos que apontam para o fato de que, transformando a corrupção em crime hediondo, haverá um arrefecimento nos atos de proxenetismo do dinheiro das Viúvas (municipal, estadual e federal)? Banalizar é sempre ruim. Banalizar o bem, banalizar o mal, banalizar a punição ou o desejo de punição... Tudo pode acabar em frustração.
Numa palavra
Como se pode ver, toda essa discussão de aumento de penas em tais tipos é inócua se os Órgãos encarregados da investigação continuam sem a infraestrutura necessária para o enfretamento da questão. Polícia aqui não foi feita para o andar de cima. Que dizer do resto? Estado de Direito para o andar de cima e Estado Polícia para o debaixo.
É claro que esse roteiro passa sempre pela impunidade. Até parece que esse filme é uma comédia. Mas não. Em um Estado com tanta malversação dos recursos públicos e com um estamento que trata a coisa pública como própria, desconhece (ou deliberadamente desrespeita) a moralidade e desvia o que deveria ir para os mais carentes, que mata e oprime por meio de uma violência simbólica colossal em sua dimensão e pelo tempo que perdura, só podemos concluir que estamos assistindo, na verdade, a uma tragédia. Por isso, os projetos salvacionistas como a hediondez da corrupção. É mais ou menos como transformar, no século XVIII, o crime de furto em enforcamento.
Vem de novo a questão do papel da doutrina. Devemos construir uma tradição acerca do que é e pode ser hediondo. E devemos construir uma teoria do bem jurídico-constitucional. Ninguém mais acredita na consciência profana do injusto ou na ontologia do bem jurídico (bem ao gosto do finalismo). Os tempos são outros. Vamos arregaçar as mangas. Vamos “constranger epistemologicamente” os legisladores (assim como devemos constranger epistemologicamente os julgadores – e não o fazemos). Ou seja, a doutrina deve se dar o respeito. Deve parar de lamber os sapatos dos outros (me entendam no que quero dizer...). Já estou até vendo os futuros lançamentos de compêndios e manuais: “como se interpreta a nova lei da corrupção” ou algo similar. E começará tudo de novo. E eu, provavelmente, procurarei sobreviver com a comida que estou estocando. Ah, e não esqueçamos de Thomas More (1478-1535), que escreve na Utopia (1516): “Você primeiro faz os ladrões, depois os castiga.”
Conta-se que o dia em que enforcaram os primeiros condenados à morte pelo crime de “bateção” de carteira em um país da Europa foi também o dia em que mais carteiras se furtou. Os curiosos foram à praça ver os enforcamentos e, bingo! A malta — lixando-se para a hediondez do crime (a metáfora é minha) — aproveitou para tungar mais ainda.
Veja-se: não estou dizendo que a pena não resolve. Tenho minhas diferenças com setores do Direito Penal brasileiro, principalmente com os iluministas tardios ou os libertaristas, que (quase) acham que é proibido proibir.[1] Menos. Um garantista da cepa como Ferrajoli não pensa assim, embora alguns leitores do mestre acreditem que ele seja um abolicionista.
De minha parte, acredito que a pena é necessária. A pena é castigo. É retribuição. E deve servir para prevenção geral. Mas só ela — a pena — não resolve. E, quanto maior e inexequível, mais caráter simbólico assume. E pode ser um tiro no pé. Já escrevi na coluna passada lembrando da transformação da falsificação de medicamentos em crime hediondo. Alguém recorda de alguma condenação? Fazendo uma alegoria em relação à lenda dos enforcamentos e da tunga das carteiras, no dia em que sancionaram a hediondez dos medicamentos foi o dia em que mais se falsificou uma ideia: a de crime hediondo como panaceia, como remédio (sem trocadilho) para todos os males.
A velha mania de legislar no calor da novidade
Pois bem. Estamos diante de uma nova inclusão de crimes do rol dos hediondos. Desta vez são os crimes de corrupção e peculato. Isso, à evidência, merece uma discussão mais aprofundada. É o pano de fundo necessário para revolver o chão linguístico em que está assentada a tradição acerca do que seja bem jurídico e o poder-dever de punição em terrae brasilis.
Quem tem acompanhado as sucessivas manifestações e seus mais recentes desdobramentos pode observar que os poderes da República refizeram sua agenda de modo a dialogar com as tantas vozes que vêm das ruas clamando por mudanças. Claro, refiro-me aqui a quem o faz com olhos críticos. A massa recém desperta (?) ainda se alterna entre o deslumbramento e ação irrefletida.
Contudo, o momento é realmente muito bom para que pensemos sobre as questões estruturais dos problemas evidenciados nas manifestações, afinal, só assim se poderá reconhecer e refutar factoides, paliativos e demagogias, tanto os exigidos quanto os oferecidos e recebidos muitas vezes como soluções. Por isso, irei analisar a elevação do crime de corrupção (e outros) ao status de hediondo, cartaz levantado por inúmeros manifestantes, compromisso da presidente da República e projeto aprovado no Senado.
O Direito Penal e o dinheiro da viúva
Sinto-me a cavaleiro para falar sobre e do assunto. Afinal, fui citado na exposição de motivos do projeto da nova lei (ainda falta aprovar na Câmara). Antes de tudo, devo louvar o interesse e a dedicação do senador Pedro Taques (PDT-MT). Se o seu mandato encerrasse hoje, seu nome já estaria gravado no Senado como um dos mais combatentes parlamentares contra a impunidade. Veja-se a sua luta para a aprovação do novo Código Penal e suas discussões — fortes — com setores refratários a uma exasperação das penas dos crimes de cariz metaindividual. Taques tem muito claro que no Estado Democrático de Direito, o Direito Penal deve voltar as suas baterias em direção aos crimes que colocam em xeque os objetivos da República. Ou seja, penas menores para os crimes de cariz individual e penas mais duras para os crimes cometidos pelo andar de cima, em que se enquadra, sim, a corrupção, bem como a sonegação de tributos (o “sonegômetro” aponta para o valor de R$ 415,1 bilhões/ano — clique aqui para ler). Já, aqui, vai um pequeno registro: parcela considerável do Direito Penal de terrae brasilis não quer discutir essa questão da criminalização mais dura da sonegação de tributos... Por que será?
Sigo. A demanda por reprimenda efetiva para as condutas que lesam o patrimônio público (obviamente) não é nova. Não que seja levada em conta quando elegemos nossos representantes. A Ficha Limpa é um belo exemplo disso: uma lei que impede que elejamos novamente pessoas que macularam seu histórico — sozinhos não somos capazes de deixar de votar nessa gente, mas é uma bandeira balançada por setores da direita e da esquerda de forma indistinta. Ou seja: somos “tão bons”, saímos para protestar, mas precisamos de uma lei para “nos proteger” (de nós mesmos) para que não elejamos “fichas sujas”.
A corrupção e a hediondez
Como referido, o Senado aprovou no dia 26 de junho o PLS 204/11 que inclui no rol dos crimes hediondos os tipos penais descritos nos artigos 316, 317 e 333 do CP.[2] Elevou ainda as penas mínimas de todos para quatro anos. Tal fato se deu no dia imediatamente posterior à presidente se dirigir à nação e afirmar ser prioridade a elevação do crime de “corrupção dolosa” (sic).
Pois bem. Foi feito. E agora? “corruptos” passarão a ser vistos frequentando o sistema carcerário? Não é bem assim...
Já denuncio de há muito (e nessa esteira uma série de orientandos meus) que o Direito Penal em terrae brasilis não passou por uma filtragem constitucional em 1988 e segue sendo remendado sem a observância dos requisitos impostos pela nova ordem paradigmática e consoante com o avanço da teoria do delito. Aproveito para refutar aqui a tola (e tão comum no imaginário jurídico) ilusão de que se pode separar teoria e prática, como se por trás desta última não houvesse qualquer fundamento teórico, de modo a realizar-se por si mesma.
Há quase 20 anos, venho denunciando a seletividade penal e a consequente disparidade de tratamento dado às penas previstas para os delitos individuais, em especial nos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência à pessoa, e os metaindividuais cometidos por agentes econômica ou politicamente poderosos, como nos casos da sonegação fiscal, da apropriação indébita previdenciária e dos crimes contra o sistema financeiro em geral. E tenho sido criticado duramente por isso.
Denuncio, com veemência, que o Código Penal de 1940 foi escrito sob a lógica liberal individualista, o que fez com que a propriedade privada tenha ocupado o centro das atenções e recebido uma tutela amplamente superior se comparada à dos bens jurídicos coletivos. Por justiça, diga-se: é um código de seu tempo.
E a velha concussão “ficou” hedionda
O problema é que esse velho código — de perfil liberal-individualista — atravessou o século XX e ingressou no século XXI. Nele está o crime de concussão (artigo 316 — Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida), que — pasmem — possui pena idêntica ao do furto qualificado pelo rompimento de obstáculo (artigo 155, parágrafo 4º), qual seja a de dois a oito anos de reclusão. Quais são os livros de Direito Penal que denunciaram isso (no devido tempo) no plano daquilo que denomino de “paradigmas do direito”? Cartas para a coluna.
Esse mesmo código foi (mal) “recepcionado” pela Constituição de 1988. As distorções contidas no código ancião podem ser constatadas em toda a legislação penal, v.g., os que tratam do meio ambiente, do consumidor, da infância, dos idosos... e também das finanças publicas, cuja tutela se dá por uma série de tipos penais, não somente por aqueles eleitos para reforma. Que dizer, então, da comparação com o crime de tortura (Lei 9.455/97), equiparado a hediondo, cuja pena é a mesma do furto qualificado (e sem multa!)? Aliás, como é que em crimes contra o patrimônio, cujo autor é, em 99% é pobre, aplicam-se multas? Pergunte a qualquer juiz quantos condenados por crimes contra o patrimônio ele já viu algum pagando a multa. Isso é a demonstração de que nosso Código Penal se descolou da realidade. No jargão psicanalítico isso se chama esquizofrenia.
Os leitores se deram conta de que, no entremeio disso tudo, nada se falou da praga contemporânea chamada fraude a licitações, ainda tida como “crime de menor potencial ofensivo”? Querem que repita?
Ou a maioria dos crimes de responsabilidade de prefeitos, cuja pena mínima é de três meses? Esta funda-se em uma inadequada e, indubitavelmente ultrapassada, teoria da discricionariedade administrativa (importada de forma completamente indiscriminada e extremamente conveniente para as elites de terrae brasilis), que permite ao administrador “de plantão” impor sua vontade com a capa de sentido da legitimidade teórica que esta “janela” (aquela enraizada no capítulo oitavo da TPD de Kelsen) de liberdade lhe oferece. Configura-se uma verdadeira erosão de legalidade e traição do Estado Democrático de Direito, promovendo uma retroalimentação da desigualdade, que passa a ser cada vez mais patrocinada pelo próprio Estado!
E por que não se falou sobre a forma como se tratam as sonegações tributárias, especialmente no tocante à famosa Portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda que diz que a União só deve perseguir créditos tributários superiores a R$ 20 mil e cuja consequência é a extinção da punibilidade dos crimes de sonegação, descaminho etc. nos casos em que o valor seja menor do que esses R$ 20 mil? Hein? Alô, Senado da República! Alô, meu amigo Pedro Taques! Alô, presidente da República! Essa portaria serve para tungar os cofres públicos!
163 ações penais, um mandado de prisão
Já no ano de 1988 escrevia sobre as distorções do Direito Penal brasileiro. De lá para cá a coisa só piorou. Alias, um breve passar d’olhos sobre a lei penal brasileira é suficiente para revelar a escancarada a preferência do legislador quanto ao bem jurídico a ser protegido com maior esmero, (eis que a pena deve guardar congruência com a necessidade de tutela) quando se tem como parâmetro de comparação as sanções cominadas aos crimes de redução a condição análoga à de escravo (pena de dois a oito anos de reclusão) e o crime de extorsão mediante sequestro com duração de mais de 24 horas (pena de 12 a 20 anos de reclusão).
Repita-se que o crime de supressão ou alteração de marcas de animais (artigo 162) é apenado com seis meses a três anos de detenção e multa, pena máxima superior à cominada aos crimes de subtração de incapazes (artigo 249 ), violência doméstica nas hipóteses do parágrafo 10° (artigo 129), maus-tratos (artigo 136), violação de domicílio — quando praticada durante a noite ou em lugar ermo, ou com emprego de violência ou de arma, ou, ainda, por duas ou mais pessoas (artigo 150, parágrafo 1°) e assédio sexual (artigo 216-A, pena máxima de dois anos). O apenamento máximo excede, ainda, as penas originalmente previstas a crimes contra a ordem tributária (destaque para o artigo 2° da Lei 8.137/1990), alguns crimes ambientais (artsigos 32; 45; 50 da Lei 9.605/1998), a sérios crimes cometidos contra criança e adolescente (artigos 228; 229; 230; 231; 232; 234; 235; 236; 244 da Lei 8.069/1990) e a crimes ocorridos em licitações (arts. 93; 97; 98 da Lei 9.666/1993).
Não causa surpresa que dados extraídos do Infopen[3] revelem de forma cristalina a manutenção da clientela “hospedada” nas penitenciárias, cadeias públicas e demais estabelecimentos prisionais brasileiros. Num universo de 471.254 internos, 216.870 não completaram o ensino fundamental, 52.970 não concluíram o ensino médio e 26.343 sequer foram alfabetizados.
Tampouco surpreende a constatação de que 240.642 cumprem pena por crimes contra a propriedade e somente 1.144 por crimes contra a administração pública (peculato, concussão e excesso de exação e corrupção passiva). 125.744 cumprem pena por tráfico de entorpecentes, ao passo que 156 o fazem por crimes ambientais. Por tudo isso, não é sem motivo que não constam registros de internos condenados por fraude à licitação, gestão fraudulenta (ou qualquer outro crime contra o sistema financeiro).
O legislador tem liberdade de conformação?
Aliás, seria o legislador “livre” para fazer essas opções, escolhendo como apenar ou como escusar de sanção a ofensa a bens jurídicos? Num Estado Democrático de Direito essa resposta só pode ser um sonoro não.
Num Estado Democrático de Direito não há (mais) oposição entre Estado e sociedade. A defesa do Estado (isto é, de um Estado que passa da condição de “inimigo” para a de “amigo dos direitos fundamentais”, bem entendido) é a defesa da cidadania. E, no interior dessa “reviravolta”, é evidente que as baterias do Direito Penal deve(ria)m ser voltadas para aquelas condutas que se coloquem como entrave à concretização do projeto constitucional, aquele traduzido em linhas gerais no artigo 3º da Constituição.
Nesse contexto, surge (desvela-se, em sentido hermenêutico) uma nova criminalidade a ser combatida, aquela que atinge bens jurídicos supra ou metaindividuais, que afetam toda a coletividade. Fala-se no enfrentamento de crimes como a sonegação de tributos e a lavagem de dinheiro (todos esses com lesividade metaindividual). Atenção, Senadores e Deputados: quem sabe os senhores revogam os dispositivos da Lei 10.684/2003 (artigo 9º.) e da Lei 11.941/2009 (artigo 69) que dizem que o pagamento do tributo extingue a punibilidade. Ou, então, apliquemos a isonomia: permitamos também que nos crimes cometidos pela patuleia (furtos, estelionatos) a ausência de prejuízo e ou a devolução do valor obtenha também esse favor legis. Afinal, a República é só para os maganos do andar de cima?
Nesse sentido, vale lembrar que Constituição (que não é uma mera “carta de intenções”) efetivamente determina ao Legislativo e ao Judiciário que orientem o seu agir para esta direção, dando proteção suficiente aos bens jurídicos que foram catalogados em destaque (não só a ordem econômico-financeira, mas também o meio também o meio ambiente e a infância e juventude, por exemplo). E, afinal, se o Direito Penal é a ultima ratio, a mais grave das redes sancionatórias do aparato estatal, o mínimo que se espera (e aí Dworkin tem razão, quando cobra coerência e integridade do Direito) é que trate desigualmente os crimes desiguais. Exemplificando para ficar mais claro: se o patrimônio individual é algo a ser protegido (e segue sendo a propriedade um direito fundamental, algo que se lembra para evitar mal-entendidos – artigo 5º, inciso XXII da Constituição), inclusive via Direito Penal, então não pode haver dúvida de que o tratamento deve ser ainda mais rigoroso quando a lesividade atinge o patrimônio da coletividade.
O que não implica, como se viu, em acreditar que a majoração do apenamento operará uma espécie de “mágica moralizadora” na sociedade brasileira. Ela tem um papel a cumprir, mas o combate à rapinagem institucional não se dá somente pela falta de instrumentos. Manca, também, vontade política e compromisso republicano. Todo parlamentar apresenta a declaração de bens ao TRE/TSE. As evoluções patrimoniais ao longo dos mandatos chegam a ser absurdas em alguns casos (e por tantas vezes são desconsideradas). O Ministério Público e os Tribunais de Contas têm acesso aos procedimentos licitatórios (são públicos). A Lei da Transparência abriu os gastos públicos para o controle social... Nunca foi tão fácil detectar e comprovar improbidades e mau uso do dinheiro da viúva. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) atua bem e em compasso com grupos da Polícia e do Ministério Público. Falta trabalhar! Bingo!
Outra medida efetiva seria por fim ao foro por prerrogativa de função, vergonhosamente conhecido como foro privilegiado. E os números apontam para a veracidade do apelido. Há, hoje, somente no Supremo Tribunal Federal, 163 ações penais originárias, sem falar nos 483 inquéritos.[4] Tendo em vista isso e o histórico de apenas um mandado de prisão desde 1988 (25 anos!), expedido, por sinal, semana passada, dá-se pra entender que a prática tem sido de impunidade. E só recentemente houve a primeira condenação e aplicação de pena.
Portanto, o problema não está em se converter em hediondo — se isso não passar de apenas discurso. Um mandado de prisão em 25 anos é muito pouco para um tribunal que julga questões tão graves do andar de cima. O mero incremento das penas sem a persecução penal efetiva é um engodo.
Tudo isso sem contar que o discurso da hediondez desvia o foco, é o bode expiatório para que as massas possam dormir à noite e sonharem com a diminuição da impunidade e com a falácia da isonomia. Enquanto isso, meio milhão de desdentados superlotam celas infectas e a centenária impunidade do andar de cima será, por um tempo, esquecida. Veja-se: não se trata de uma frase de efeito: o número está correto e eles, na sua imensa maioria, são destituídos de uma adequada dentição.
Muito mais efetivo, portanto, é o fim do foro privilegiado. Mas a isonomia, aqui, não é um princípio que pega bem. Sempre há pessoas “mais iguais” que outras, principalmente quando legislam em causa própria... ou quando desviam o foco por meio de um discurso demagógico e embromador.
Por que quatro anos?
De se notar que o que se aumentou nos tipos penais analisados foi a pena mínima (de dois anos para o dobro). Mas esse número não foi produto de cabalas ou eleito ao acaso. Lembremos que pela nossa legislação atual, quando a pena aplicada não for superior a quatro anos (eis o número não cabalístico), permite-se a substituição da privativa de liberdade (cadeia) por uma pena restritiva de direito (as populares “penas alternativas”). Taí o busílis. Logo, o que dá com uma mão, tira-se com a outra.
Já um crime como roubo em concurso de pessoas não permite essa substituição. Mas tráfico de entorpecentes, sim. Assim, resta paradoxal e incoerente taxar de “hediondo” um certo crime e, ao mesmo tempo, possibilitar a aplicação de penas restritivas de direitos em seu tipo básico. A hediondez deveria ser reservada para um tipo de criminalidade, desculpem-se a obviedade, “hedionda”, como o estupro, o latrocínio, genocídio... Não deveríamos banalizar esse epíteto. Se tudo é, nada é. Se consideramos correta a inclusão da corrupção e do peculato no rol dos hediondos, o que justifica a exclusão do crime de lavagem de dinheiro e sonegação de tributos? Atenção: não estou nem de longe propondo isso. Quero apenas fazer uma caricatura, para denunciar a falta de isonomia, coerência e integridade da legislação e do próprio Poder Judiciário, que não aplica a isonomia.
A aplicação da Übermassverbot (proibição de excesso)
Resultado: a pretexto de punição, corre-se sério risco de favorecer a impunidade. Não é assim que se faz. Todos sabem da minha predileção pelo legislador. Pela defesa que dele faço. E todos sabem da defesa que faço da necessidade de o Estado combater com vigor os delitos que colocam em xeque os objetivos da República previstos na Constituição. Mas, há limites. E estes são os limites constitucionais. A teoria do bem jurídico não pode ser banalizada a este ponto. Assim como, por exemplo, o legislador não poderia descriminalizar o estupro ou o homicídio (para dizer o mais), também não pode punir sem qualquer critério que respeite alguns elementos cunhados pela tradição do Direito Penal do Estado Democrático de Direito. No primeiro caso, seria possível trabalhar a hipótese de aplicar a cláusula (ou princípio) da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), porque patente, em tais hipóteses, a proteção insuficiente ou deficiente dos bens jurídicos em tela. No segundo caso — e aqui se aplica a “hediondez” da corrupção e do peculato — parece visível o excesso de punição, podendo-se dizer que o legislador violou a cláusula da proibição de excesso (Übermassverbot).
Claro que tais princípios não são fáceis de explicar e/ou aplicar. Nesse sentido entra a importância da doutrina, que deve traçar esses limites, até para evitar que o judiciário decida de forma voluntarista (para “cima” ou para “baixo”). Além disso, dever-se-ia exigir do legislador a necessária prognose. Afinal, quais os elementos objetivos que apontam para o fato de que, transformando a corrupção em crime hediondo, haverá um arrefecimento nos atos de proxenetismo do dinheiro das Viúvas (municipal, estadual e federal)? Banalizar é sempre ruim. Banalizar o bem, banalizar o mal, banalizar a punição ou o desejo de punição... Tudo pode acabar em frustração.
Numa palavra
Como se pode ver, toda essa discussão de aumento de penas em tais tipos é inócua se os Órgãos encarregados da investigação continuam sem a infraestrutura necessária para o enfretamento da questão. Polícia aqui não foi feita para o andar de cima. Que dizer do resto? Estado de Direito para o andar de cima e Estado Polícia para o debaixo.
É claro que esse roteiro passa sempre pela impunidade. Até parece que esse filme é uma comédia. Mas não. Em um Estado com tanta malversação dos recursos públicos e com um estamento que trata a coisa pública como própria, desconhece (ou deliberadamente desrespeita) a moralidade e desvia o que deveria ir para os mais carentes, que mata e oprime por meio de uma violência simbólica colossal em sua dimensão e pelo tempo que perdura, só podemos concluir que estamos assistindo, na verdade, a uma tragédia. Por isso, os projetos salvacionistas como a hediondez da corrupção. É mais ou menos como transformar, no século XVIII, o crime de furto em enforcamento.
Vem de novo a questão do papel da doutrina. Devemos construir uma tradição acerca do que é e pode ser hediondo. E devemos construir uma teoria do bem jurídico-constitucional. Ninguém mais acredita na consciência profana do injusto ou na ontologia do bem jurídico (bem ao gosto do finalismo). Os tempos são outros. Vamos arregaçar as mangas. Vamos “constranger epistemologicamente” os legisladores (assim como devemos constranger epistemologicamente os julgadores – e não o fazemos). Ou seja, a doutrina deve se dar o respeito. Deve parar de lamber os sapatos dos outros (me entendam no que quero dizer...). Já estou até vendo os futuros lançamentos de compêndios e manuais: “como se interpreta a nova lei da corrupção” ou algo similar. E começará tudo de novo. E eu, provavelmente, procurarei sobreviver com a comida que estou estocando. Ah, e não esqueçamos de Thomas More (1478-1535), que escreve na Utopia (1516): “Você primeiro faz os ladrões, depois os castiga.”
[1]
Refiro-me, nesse sentido, a algumas decisões que se enquadram nessa
linha do exagero da falta de limites semânticos e de um libertarismo
fora do tempo. Por exemplo, a decisão da 5ª Câmara Criminal do RS (ler aqui),
que considera crime impossível a tentativa de uma mulher levar drogas,
introduzidas na vagina, para o interior do presídio. Trata-se de uma
espécie de hermenêutica de exceção, com a suspensão da legislação por
argumentos de política e não de princípio.
[2]
Durante os debates, foram incluídos, no Projeto original, também como
hediondos os crimes de homicídio simples, excesso de exação e peculato
(estes últimos com pena mínima aumentada para 4 anos).
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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Revista Consultor Jurídico, 4 de julho de 2013
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