O Globo, 5 de julho de 2013.
A verdade da Comissão de Verdade
Luiz Cláudio Cunha
No final da manhã desta terça-feira, 2 de julho, fui inesperadamente
comunicado de meu afastamento da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ali
atuava como consultor do Grupo de Trabalho da Operação Condor,
formalmente convidado desde setembro passado pelo ministro do Superior
Tribunal de Justiça Gilson Dipp e pela advogada Rosa Cardoso.
De repente, contra o voto divergente de Cardoso, fui punido pela
decisão irrecorrível de quatro comissários — Paulo Sérgio Pinheiro, José
Carlos Dias, Maria Rita Kehl e José Paulo Cavalcanti — pelo suposto
delito de opinião.
Com um atraso de 40 dias, o quarteto justificou minha saída como uma
retaliação contra um artigo meu (“A comissão de frente da mentira: quem
teme a verdade sobre a ditadura?”), de larga circulação na internet, a
partir de 24 de maio passado.
Lá, eu denunciava a falta de empenho do Ministro da Defesa e seus
comandantes do Exército e da Marinha no resgate da verdade sobre graves
violações de direitos humanos cometidos especialmente nos 21 anos do
Estado ditatorial-militar instituído em 1964, alvo central da missão
conferida por lei à CNV.
Mais do que isso, criticava a despropositada entrevista, dias antes,
do comissário José Carlos Dias, em que antecipava seu veto a qualquer
parecer que rasgue o manto de impunidade que cobre os torturadores do
país há longos 34 anos. “Não cabe à CNV fazer este tipo de
recomendação”, disse ele, atropelando os limites de um relatório que o
país só conhecerá no final de 2014.
Papel feio para um ex-advogado de 700 presos políticos e ex-ministro
da Justiça que não pode esquecer que o Brasil assina lá fora tratados
internacionais contra crimes de lesa-humanidade que não cumpre aqui
dentro.
O consultor agora afastado pelo crime de discordar não tem, contudo, importância.
O mais relevante é o alvo visível do quarteto punitivo da CNV: a
advogada Rosa Cardoso, hoje herdeira solitária da confiança das
entidades de direitos humanos, cada vez mais desconfiadas sobre o
resultado final dos trabalhos da comissão.
A solidão aumentou em meados de maio, com o afastamento do comissário
Cláudio Fonteles, ex-procurador-geral da República, que renunciou
exaurido pelo confronto permanente com Paulo Sérgio Pinheiro.
Na essência, é um confronto entre visões díspares que podem levar a
CNV à implosão: de um lado, Fonteles, sempre aberto e conectado com a
rua e, de outro, Pinheiro, sempre desconfiado e fechado ao escrutínio
externo.
Líder do quarteto e professor de ciência política, Pinheiro tem,
apesar da imagem cordial, um estilo centralizador, exasperado,
irritadiço, que explode em chiliques e gritos que transbordam as finas
paredes do segundo andar do CCBB, em Brasília, onde funciona a CNV.
Crítico do sistema de coordenação rotativa adotada desde o início da
comissão, ele deixa transparecer seu devaneio nunca explícito: ser o
‘presidente’ permanente da CNV, sem interrupção, até o momento glorioso
da foto de entrega do relatório final, no crepúsculo de 2014. Pelo
estilo, gestos e e-mails, Pinheiro exibe a pretensão de ser uma espécie
de tutor sobre os outros comissários, base do afastamento de Fonteles e
do isolamento de Cardoso.
Para as entidades de vítimas da ditadura, Pinheiro é definido como
distante e arrogante. Durante alguns dias, Iara Xavier Pereira, que teve
a mãe presa, o marido e dois irmãos mortos pela ditadura, amanheceu
cedinho na sede da CNV em Brasília, em busca de informações.
Desistiu no dia em que ouviu o comentário jocoso e descuidado de
alguém da equipe de Pinheiro: “Ah, ela está vindo aqui todo dia só para
fiscalizar o ponto das pessoas…”.
Ivan Seixas, presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana em São Paulo, sobreviveu às torturas do DOI-CODI, mas sucumbiu a
uma bronca pesada de Pinheiro, que ficou irritado com a revelação da
agenda de visitas de empresários e diplomatas americanos ao DOPS
paulista na ditadura.
“Isso atrapalhou entendimentos meus com o consulado daqui dos Estados
Unidos”, reclamou ele, ao ponto de telefonar depois para o embaixador
Thomas Shannon Jr., em Brasília, para se desculpar.
Graças aos salamaleques diplomáticos de Pinheiro com o Departamento
de Estado, a CNV completou em maio seu primeiro aniversário e ainda
espera, resignada, pela desclassificação de documentos americanos que
podem revelar detalhes secretos da ditadura, como já aconteceu com o
Chile e a Argentina desde o governo de Bill Clinton (1993-2001).
Os jornalistas e a simples hipótese de uma entrevista coletiva deixam
Pinheiro exasperado e arredio. Na sexta-feira, 29 de março, véspera da
Páscoa, repassei a Pinheiro e aos outros comissários, via e-mail, uma
notícia sobre uma ‘lambada’ do Planalto: “Dona Dilma, irretocável”,
comentei.
Era uma reportagem de Júnia Gama, em O Globo, dizendo que a
presidente cobrava “uma catarse das feridas abertas pela ditadura”,
insatisfeita com a falta de mobilização da opinião pública.
Pinheiro odiou o puxão de orelhas presidencial, e me respondeu
desqualificando a imprensa. “Pura especulação…quizílias… As futriquinhas
sobre cisões no interior da CNV pertencem ao reino da fantasia”,
replicou, 69 minutos depois, exatos 80 dias antes da quizília que
defenestrou Fonteles.
O secretismo militante de Pinheiro, que imagina prestar contas ao
país só no relatório final de 2014, irrita as entidades de direitos
humanos.
Em fevereiro passado, repetindo um pedido não atendido sete meses
antes, o Instituto de Estudos da Religião (ISER), uma respeitada ONG do
Rio de Janeiro dedicada aos direitos humanos e à democracia, pediu de
novo informações sobre o método de trabalho, o planejamento, o
calendário e a agenda de audiências públicas da CNV. “São questões
fundamentais para que movimentos da sociedade civil possam viabilizar o
monitoramento democrático das ações do poder público”, ressaltou o
secretário-executivo do ISER, Pedro Strozenberg, que assinava o pedido.
Em 5 de março, doze dias após o ofício do ISER, Pinheiro, então
coordenador da CVN, confessou sua aversão à transparência, enviando um
e-mail explícito aos comissários e seus assessores diretos: “Minha
tendência é não responder nada… Ou poderíamos dar respostas lacônicas.
Acho um desperdício obrigar os colegas a responder a essas questões
quando têm mais o que fazer… Não creio que a CNV esteja sujeita a esse
monitoramento… Creio que podemos nos beneficiar do sigilo em relação a
nossos trabalhos internos”.
No dia 5 de abril, sob a coordenação de Pinheiro, sua equipe na CNV
avaliou um trabalho sobre ‘Documentos Sigilosos’, que previa, no caso de
‘informações sensíveis’, a classificação de documentos, uma
incongruência para qualquer Comissão da Verdade às voltas justamente com
a desclassificação de segredos cultivados pela ditadura.
Consciente do risco político de não divulgar papéis classificados por
ela, no acesso a acervos militares, o estudo da CNV alertava para a
principal ‘desvantagem’ nessa arriscada decisão: “Criticas da sociedade e
da mídia”.
O que abre uma questão crucial: sem a sociedade e a mídia, qual a vantagem de uma Comissão da Verdade?
O futuro da CNV, na crise atual, depende do resultado desse confronto
desigual entre o quarteto liderado por Paulo Sérgio Pinheiro e a firme e
solitária resistência de Rosa Cardoso, único elo com o grito que hoje
ecoa pelo país: “Vem, vem pra rua, vem!”.
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