A emenda e o Supremo
Autor(es): Virgílio Afonso da Silva |
Valor Econômico - 03/05/2013 |
Na
semana passada, todos os holofotes estavam apontados para a Câmara dos
Deputados, que discutia uma proposta de emenda constitucional (PEC) que,
segundo muitos, é flagrantemente inconstitucional, por ferir a
separação de poderes. Contudo, a decisão mais inquietante, em vários
sentidos, inclusive em relação à própria separação de poderes, estava
sendo tomada no prédio ao lado, no Supremo Tribunal Federal (STF).
No dia seguinte, nas
primeiras páginas dos jornais, o grande vilão, como sempre, foi o poder
Legislativo. A PEC analisada na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania (CCJ) da Câmara é polêmica, com certeza. Sua
constitucionalidade é questionável, não há dúvidas. Mas, do ponto de
vista jurídico, da separação de poderes e do direito comparado, a
decisão do STF, que bloqueou o debate no Senado sobre as novas regras de
acesso dos partidos políticos à TV e ao fundo partidário, é muito mais
chocante.
O ponto mais polêmico
da PEC é a exigência de que uma decisão do STF que declare a
inconstitucionalidade de uma emenda constitucional seja analisada pelo
Congresso Nacional, o qual, se a ela se opuser, deverá enviar o caso a
consulta popular.
Ministro decidiu que o Senado não poderia deliberar sobre um projeto de lei porque ele não concorda com o teor
É
quase um consenso entre juristas que um tribunal constitucional ou uma
suprema corte, como é o caso do STF, deve ter a última palavra na
interpretação da constituição e na análise da compatibilidade das leis
ordinárias com a constituição. Mas muito menos consensual é a extensão
desse raciocínio para o caso das emendas constitucionais. Nos EUA, por
exemplo, emendas à constituição não são controladas pelo Judiciário. A
ideia é simples: se a própria constituição é alterada, não cabe à
Suprema Corte analisar se o novo texto é compatível com o texto antigo.
Isso quem decide é povo, por meio de seus representantes. Mesmo no caso
do controle de leis ordinárias, há exemplos que relativizam o "quase
consenso" mencionado acima, como é o caso do Canadá, cujo Parlamento não
apenas pode anular uma decisão contrária da Suprema Corte, como também
imunizar uma lei por determinado período de tempo contra novas decisões
do Judiciário.
Não há dúvidas de que
o caso brasileiro é diferente. A constituição brasileira possui normas
que não podem ser alteradas nem mesmo por emendas constitucionais, as
chamadas cláusulas pétreas. Mas não me parece que seja necessário entrar
nesse complexo debate de direito constitucional, já que o intuito não é
defender a decisão da CCJ, cuja conveniência e oportunidade são
discutíveis.
Neste momento em que o
Legislativo passa por uma séria crise de legitimidade, não parece ser a
hora de tentar recuperá-la da forma como se tentou. Tampouco quero
defender a constitucionalidade da PEC no seu todo. O que pretendi até
aqui foi apenas apontar que, embora extremamente polêmica, a proposta é
menos singular do que muitos pretenderam fazer crer.
Já a decisão do
ministro Gilmar Mendes, tomada na mesma data e que mereceu muito menos
atenção da imprensa, é algo que parece não ter paralelo na história do
STF e na experiência internacional. Ao bloquear o debate sobre as novas
regras partidárias, Gilmar Mendes simplesmente decidiu que o Senado não
poderia deliberar sobre um projeto de lei porque ele, Gilmar Mendes, não
concorda com o teor do projeto. Em termos muito simples, foi isso o que
aconteceu. Embora em sua decisão ele procure mostrar que o STF tem o
dever de zelar pelo "devido processo legislativo", sua decisão não tem
nada a ver com essa questão. Os precedentes do STF e as obras de autores
brasileiros e estrangeiros que o ministro cita não têm relação com o
que ele de fato decidiu. Sua decisão foi, na verdade, sobre a questão de
fundo, não sobre o procedimento. Gilmar Mendes não conseguiu apontar
absolutamente nenhum problema procedimental, nenhum desrespeito ao
processo legislativo por parte do Senado. O máximo que ele conseguiu foi
afirmar que o processo teria sido muito rápido e aparentemente
casuístico. Mas, desde que respeitadas as regras do processo
legislativo, o quão rápido um projeto é analisado é uma questão
política, não jurídica. Não cabe ao STF ditar o ritmo do processo
legislativo.
Sua decisão apoia-se
em uma única e singela ideia, que pode ser resumida pelo argumento "se o
projeto for aprovado, ele será inconstitucional pelas razões a, b e c".
Ora, não existe no Brasil, e em quase nenhum lugar do mundo, controle
prévio de constitucionalidade feito pelo Judiciário. Mesmo nos lugares
onde há esse controle prévio - como na França - ele jamais ocorre dessa
forma. Na França, o Conselho Constitucional pode analisar a
constitucionalidade de uma lei antes de ela entrar em vigor, mas nunca
impedir o próprio debate. Uma decisão nesse sentido, de impedir o
próprio debate, é simplesmente autoritária e sem paralelos na história
do STF e de tribunais semelhantes em países democráticos.
Assim, ao contrário
do que se noticiou na imprensa, a decisão do STF não é uma ingerência
"em escala incomparavelmente menor" do que a decisão da CCJ. É
justamente o oposto. Além das razões que já mencionei antes, a decisão
do STF é mais alarmante também porque produz efeitos concretos e
imediatos, ao contrário da decisão da CCJ, que é apenas um passo inicial
de um longo processo de debates que pode, eventualmente, não terminar
em nada. E também porque, se não for revista, abre caminho para que o
STF possa bloquear qualquer debate no Legislativo sempre que não gostar
do que está sendo discutido. E a comprovação de que essa não é uma mera
suposição veio mais rápido do que se imaginava: dois dias depois, em
outra decisão sem precedentes, o ministro Dias Toffoli exigiu da Câmara
dos Deputados explicações acerca do que estava sendo discutido na CCJ,
como se a Câmara devesse alguma satisfação nesse sentido. É no mínimo
irônico que, na mesma semana em que acusa a Câmara de desrespeitar a
separação de poderes, o STF tenha tomado duas decisões que afrontaram
esse princípio de forma tão inequívoca. A declaração de Carlos Velloso,
um ex-ministro do STF que prima pela cautela e cordialidade, não poderia
ter sido mais ilustrativa da gravidade da decisão do ministro Gilmar
Mendes: "No meu tempo de Supremo, eu nunca vi nada igual"!
Virgílio Afonso da Silva é professor titular de direito constitucional na faculdade de Direito da USP
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