Marcelo Coelho
Tarado é quem reprime
Engana-se quem achar que o mundo de Nelson Rodrigues ficou restrito à década de 1950
Obeso, bundudo, de terno e colete, um senhor de certa idade dá ordens
peremptórias ao garçom. "Menino! Aqui. Mais gelo! Mais ge-lo!"A palavra se repete sempre em maior volume, crescendo em precisão, em clareza, em especificidade. "Ge-lo! GE-LÔ!"
Trata-se do Doutor Camarinha, o ginecologista alcoólatra de "O Casamento", adaptação teatral do romance de Nelson Rodrigues em cartaz no Tuca.
Difícil dar ideia por escrito da variedade de sugestões que, na voz do ator Élcio Nogueira Seixas, transparecem nesse simples pedido por mais gelo.
Há, naturalmente, a bebedeira do doutor. Tudo é motivo de comemoração, e ele quer mais gelo como alguém poderia querer mais de tudo -mais música, mais mulheres, mais barulho.
Ao mesmo tempo, sente o prazer do mando, da ordem, da dominação. Repete a palavra "gelo" como se o garçom fosse incapaz de entendê-la. Ou quem sabe porque há muito ruído no salão de festas.
Por ser alcoólatra, talvez o Doutor Camarinha quisesse frisar que está pedindo apenas gelo, e não mais uma dose da bebida. Ou o contrário: tudo não passa de um código entre ele e o garçom, que sabe perfeitamente como encher o copo.
Tudo isso seria o bastante se o universo de Nelson Rodrigues fosse puramente realista. Mas sabemos, como diz o anúncio para desligar os celulares no início da peça, que na imaginação de Nelson Rodrigues "tudo pode acontecer".
O Doutor Camarinha pede gelo de um modo diferente. Ele tem aquele tipo de exigência obsessiva, de fixação no detalhe, de relação com o objeto, que é típica do perverso, do fetichista sexual.
Ele diz "gelo, ge-lo, GE-LO" como alguém poderia dizer "velas!" ou "chicotes!". É implicante, detalhista, cri-cri, absurdo, no que tange a seu pedido.
Esse ambiente de perversão generalizada, de sexualização do que não é sexualizável, marca sem dúvida toda a obra de Nelson Rodrigues. O outro burguês da peça, vivido memoravelmente por Renato Borghi, é o doutor Sabino Uchoa Maranhão ("nome límpido e nostálgico de defunto", segundo o próprio).
O doutor Sabino implica com a secretária, que disca o telefone antigo com a ponta do lápis. "Por que não usa o dedo? O dedo, doutora Noêmia", e ele mostra o dedo, "o dedo!" Ele grita. "O dedo serve para discar!"
E o verbo "discar", ainda mais quando usado no infinitivo, ganha obscuras conotações. Roland Barthes dizia que os atos da perversão sempre se declinam de forma intransitiva. "Você escreve?" -a pergunta já é suspeita, reflete Barthes. Do mesmo modo, uma das mocinhas da peça pergunta à amiga: "E com ele, você fez? Fez tudo?".
Tudo, e mais do que tudo, de fato acontece nessa peça; é o que se espera de Nelson Rodrigues: incesto, assassinato, estupro, arremessando cada personagem contra o outro na satisfação mais bestial e triste dos instintos. O ato sexual, desculpa-se um padre, "o ato sexual é só uma mijada".
Mais pecaminoso, evidentemente, é ter esse pensamento.
Esses pais de família, essas mocinhas casadoiras, não se revelam apenas quando se entregam ao desejo.
O que "O Casamento" ajuda a entender é precisamente o contrário. A repressão aos instintos sexuais é tão pornográfica, tão bestial, tão sombria quanto o ato de libertá-los.
Quando o Doutor Camarinha pede gelo ao garçom, ou faz um discurso contra o homossexualismo ("nem os ratos escapam dessa desgraça!"), ele está tomado por instintos tão irracionais e grotescos quanto os que julga ver nas pessoas que critica.
Situada, como não podia deixar de ser, no Rio de Janeiro dos anos 1950, a encenação de "O Casamento" traz muitos toques estilísticos, no figurino por exemplo, da década de 1970.
Engano pensar, contudo, que aquele mundo repressivo desapareceu junto com as lambretas, a revista "Manchete" e o iê-iê-iê. Basta ver o pastor Feliciano e seus adeptos.
O chefe de igreja pentecostalista que se esfrega em cédulas de dinheiro, o padre pedófilo, o evangélico que abusa de meninos estão todos os dias nos jornais. São perfeitos personagens de Nelson Rodrigues.
"Uma bichinha", diz Renato Borghi já no fim da peça, "não pode desprezar cinco milhões de patacas!". Era um ato de desapego ao dinheiro incompatível com seu comportamento sexual. Deve ser por isso que tantos líderes evangélicos são contra os gays.
Pensando bem, o melhor que posso esperar desses deputados é que sejam completos corruptos. A corrupção não é de todo ruim; suponho que seja a melhor arma contra o fanatismo.
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