Folha de S. Paulo, 30
de maio de 2013.
Aloysio Nunes Ferreira
O assunto é acúmulo de cargos
Em defesa do mandato de Guilherme Afif
É comum vice ter dois cargos. Cito Goldman, Alckmin e eu. A
Assembleia não pode ser tribunal de exceção a serviço de uma vil perseguição
política
Provocada pelo PSOL, a Assembleia paulista discute cassar o mandato do
vice-governador do Estado por incompatibilidade entre o cargo para o qual foi
eleito e o de ministro, para o qual foi nomeado. Provocação fútil e inepta que
ganhou fumaças de seriedade quando remetida à Comissão de Justiça da Casa. A situação de Guilherme Afif Domingos (PSD) não difere, essencialmente, de outras que nunca causaram estranhamento: é comum vice-governador ocupar secretaria. Só em São Paulo cito Alberto Goldman, Geraldo Alckmin e eu mesmo.
E se ninguém jamais impugnou essas acumulações é porque vice é vice, e não governador. Logo, o tratamento dispensado aos dois cargos não pode ser idêntico, salvo quando normas constitucionais se dirigem a ambos.
É o caso dos artigos 38, 39, 40, 41, 43, 44 e 46 da Constituição Estadual. Eles não tratam de vedações, mas disciplinam matérias como eleição, posse, duração do mandato, colaboração e vacância. Já os artigos 37, 42 e 45 cuidam apenas do governador e não do vice. É relevante para o nosso caso o artigo 42, que determina a perda do mandato do governador que assumir "outro cargo ou função na administração pública direta ou indireta".
Essa restrição aplica-se tão somente ao governador e não ao vice, porque são mandatos de naturezas distintas: um implica exercício efetivo de função; o outro, uma mera potencialidade de vir a exercê-la.
Nem a Constituição do Estado nem a Federal privam o vice de assumir cargos em quaisquer das esferas da Federação. Se proibição houvesse, ela deveria ser expressa com todas as letras. Não se pode cassar um mandato popular com base em interpretações constitucionais extensivas, alusivas ou analógicas. Desafio quem pretende cassar o mandato do vice-governador do Estado a apontar o artigo da Constituição que legitime tal iniciativa.
Tenho ouvido argumentos risíveis apoiados numa estranha hermenêutica. Apontam o artigo número 44 da Constituição, que impede o vice-governador de ausentar-se por mais de 15 dias do Estado, como se os ministros não pudessem, nos termos do decreto 4.244 de 2002, retornar periodicamente aos seus locais de residência permanente, valendo-se, inclusive, de uma frota de jatinhos da FAB.
Os ministros paulistas, aliás, dispõem de espaçoso escritório de apoio, situado na avenida Paulista. Pergunte se eles costumam ficar mais de 15 dias, contínuos, longe de São Paulo!
Argumentam ainda com base no artigo 38 da Constituição, que faculta ao governador convocar o vice para colaboração em missões especiais. Ora, tal colaboração pressupõe comum acordo, uma vez que entre ambos, eleitos na mesma chapa, não há qualquer subordinação hierárquica.
Aliás, Afif colaborou com o governador Alckmin na condição de secretário até que foi exonerado por razões políticas. E, depois, voltou a colaborar na coordenação dos projetos de parcerias público-privadas, numa relação que se sobrepôs aos conflitos partidários.
Junto com minha bancada no Senado, votei contra a criação do 39º ministério do governo Dilma. Deploro o apoio anunciado do PSD à reeleição da presidente: isso me coloca em campo político oposto ao do vice, que foi companheiro leal e prestimoso do PSDB em lutas passadas.
Mas cassar seu mandato rasgando a Constituição? Houve crime de responsabilidade? Qual? A Assembleia não pode ser tribunal de exceção a serviço de uma vil perseguição política.
ALOYSIO NUNES FERREIRA, 68, é líder do PSDB por SP no Senado
Janaína
Conceição Paschoal
O assunto
é acúmulo de cargos
Surrealismo
político
Não é
apenas São Paulo que deve reclamar. O que garante que o novo ministro não vá
beneficiar o Estado cujo Executivo ainda integra?
O Estado
de São Paulo foi surpreendido com um inusitado convite formulado para o
vice-governador tornar-se ministro.
Ainda
mais inusitado foi o fato de o convidado aceitar, negando-se a deixar o cargo
até então ocupado, sob a alegação de que a Constituição do Estado não proibiria
a inovação. Ares vanguardistas foram conferidos a ato que, em local civilizado,
caracterizaria desrespeito.
Primeiro,
deve-se lembrar que o adultério, apesar de não mais ser crime, continua
constituindo uma traição, com todas as consequências que lhe são inerentes.
Assim, não é porque a Constituição do Estado não prevê, expressamente, que o
vice-governador não pode assumir outro cargo, que tal ato possa,
automaticamente, ser considerado lícito.
A
interpretação das normas não pode ser feita de maneira pontual. Nem todas as
situações são previstas de forma precisa. Faz-se necessário proceder à análise
sistemática da legislação. Essa exegese inviabiliza que a comédia se perpetue.
Com
efeito, o artigo 38 da Constituição de São Paulo prevê que o vice-governador
sucederá o governador e o auxiliará, restando claro que não será requisitado
apenas em caso de viagens. O artigo 44 determina que "governador e
vice-governador não poderão, sem licença da Assembleia, ausentar-se do Estado
por período superior a 15 dias, sob pena de perda do cargo", sendo certo
que o pedido de licença há de ser amplamente motivado.
Ora, se o
afastamento por mais de 15 dias requer pedido fundamentado e a não observância
de tal requisito pode ensejar a perda do cargo, como pretender lícita a assunção
de um ministério?
Ademais,
as incumbências do cargo de governador, que pode precisar ser assumido pelo
vice, são incompatíveis com as exigências do cargo de ministro. Vale lembrar
que a Constituição Federal, em seu artigo 87, estabelece poderes bastante
significativos aos ministros de Estado, dentre os quais a expedição de
instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos.
A própria
lei nº 12.792/13, que criou a Secretaria da Micro e Pequena Empresa, com status
de ministério, prevê poderes vastos ao titular, entre os quais o de criar e
coordenar programas de promoção da competitividade para pequenas empresas.
Não é
apenas São Paulo que deve reclamar dessa situação. O que garante aos demais
entes da Federação que o novo ministro não vá beneficiar o Estado cujo Poder
Executivo ainda integra?
Concordo
com as análises de que essa indefinição do vice-governador-ministro fere a
democracia, dado que serve a dois partidos, a princípio, opositores. No
entanto, mesmo que se tratasse de governos aliados, a dupla função seria
insustentável, pois constitui afronta à independência inerente ao pacto
federativo.
Parece
óbvio que não pode aquele que tem poder para regulamentar leis para todo o país
querer, ao mesmo tempo, executar as mesmas leis em um dos Estados da Federação.
A moral
já exigiria que o vice-governador-ministro tomasse uma posição clara. Mas, se o
devido não parte de quem deveria, resta imperioso que os órgãos competentes
tomem as providências necessárias.
Diversamente
do que se crê, quem tem poder não pode tudo. Quem tem poder deve mais:
satisfações, explicações e observância às normas. Mesmo reconhecendo que
prevalece um culto indevido ao relativismo, ainda existe o certo e o errado.
JANAINA
CONCEIÇÃO PASCHOAL, 38,
advogada, é professora livre-docente de direito penal na USP
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