sexta-feira, 31 de maio de 2013

E a análise sobre a culpa do Congresso Nacional e do Excecutivo neste enfraquecimento institucional?

O Judiciário e suas dimensões políticas

Autor(es): Leonardo Avritzer
Valor Econômico - 31/05/2013

A revisão constitucional é um instituto político-jurídico surgido nos Estados Unidos no começo do século XIX, ainda que não previsto na Constituição daquele país. Desde 1803, os Estados Unidos operam ininterruptamente com a revisão constitucional, isto é, com a Suprema Corte sempre que provocada declarando a constitucionalidade e ou a inconstitucionalidade de leis e atos do Congresso e do Poder Executivo.
A revisão constitucional foi a forma encontrada naquele país para diferenciar legislação ordinária da legislação constitucional e a maneira de fazê-lo é atribuindo este papel revisor à Suprema Corte. É possível dizer que este sistema funciona relativamente bem e foi estendido a muitos países. Ainda assim, os principais juristas americanos apontam dois diferentes momentos na história do país. Os momentos normais nos quais as decisões da Suprema Corte são incorporadas à tradição jurídica do país sem nenhuma contestação e os momentos de crise, nos quais há um forte conflito entre o Poder Executivo e o Judiciário sobre o conteúdo da revisão constitucional.
Dois momentos são exemplares a este respeito: os conflitos entre a Suprema Corte e a Presidência durante o momento abolicionista no qual Lincoln se desentendeu profundamente com o juízes e o mesmo em relação ao "New Deal" onde Roosevelt cogitou até mesmo em mudar a composição da Corte. Ou seja, até onde vai o poder de uma Corte constitucional em questões nas quais a população se manifesta é uma questão em aberto até mesmo nos Estados Unidos.
Não faz parte das atribuições do STF interromper votações
O Brasil tem, no que diz respeito à divisão de Poderes, um Supremo Tribunal Federal com maiores prerrogativas do que o americano. Em primeiro lugar, a revisão constitucional está institucionalizada pelos artigos 102 e 103 da Constituição. Neste sentido ela é uma prerrogativa do STF. Em segundo lugar, o Supremo acumula mais duas funções na tradição brasileira, a de Corte revisora e a de foro especial. São estes três papéis conjuntos que têm fortalecido o Supremo em relação aos outros Poderes, em especial o Congresso Nacional.
Ainda assim, é importante perceber que o Supremo tem dois limites intrínsecos nas suas funções: tem de respeitar a tramitação do processo legislativo, uma vez que o controle de constitucionalidade é sobre projetos de lei votados e concluídos, e possui o limite de ter de respeitar o Congresso naquilo que os artigos 49, 50 e 51 da Constituição denominaram de atribuições exclusivas. Ou seja, a revisão constitucional ocorre em um regime de poder dividido e não em um sistema de supremacia do poder judicial. É a partir destes pressupostos que podemos analisar os conflitos recentes entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional.
Nos últimos anos, um conjunto de decisões do STF interferiram diretamente em decisões do Congresso Nacional. Vale a pena citar as mais importantes: a derrubada da cláusula de barreira, a determinação de seguir a fidelidade partidária e mais recentemente duas suspensões importantes de votações do Congresso Nacional, a dos royalties e agora da lei sobre o tempo de televisão nas eleições de 2014.
Todas estas decisões acabaram por estabelecer um clima de animosidade entre o STF e o Congresso Nacional e vale a pena analisá-las sob o prisma da judicialização da política e da divisão de Poderes na democracia.
Sob o prisma da judicialização, é importante perceber que todos os casos acima mencionados tratavam de matérias que dificilmente teriam relação com direitos ou princípios constitucionais importantes. É verdade que em alguns casos, o STF invocou o direito das minorias, como foi o caso da cláusula de barreira, mas tal argumento não pode ser levado muito a sério quando pensamos que países como a Alemanha, Suécia ou Espanha possuem cláusula de barreira e são democracias consolidadas.
Quando pensamos o princípio da divisão de Poderes e seu equilíbrio é possível também perceber o quanto as decisões do STF são problemáticas. Em geral quando o STF faz uso das suas prerrogativas de revisão constitucional, o correto é fazê-lo da forma como dispõem os artigos 102 e 103 da Constituição, isto é, depois que as leis em questão foram aprovadas e promulgadas. Mais uma vez, se pensamos casos importantes nos Estados Unidos como o debate sobre financiamento eleitoral e sobre seguro de saúde obrigatório, este foi o procedimento seguido pela Suprema Corte.
O que percebemos nas atitudes recentes do STF com a suspensão de duas votações bastante importantes do Congresso Nacional é uma tentativa indevida de extensão dos instrumentos de Corte revisora para o campo da Corte constitucional. Ou seja, não faz parte das atribuições do STF interromper votações por via de liminares.
Podemos afirmar que há uma tentativa do STF de expandir o seu poder de revisão constitucional em relação ao Congresso Nacional e que tal tentativa não é boa para a democracia no Brasil porque rompe com o princípio da divisão dos Poderes. Este progressivo deslocamento do papel do STF acende uma luz amarela na institucionalidade política brasileira, como se lê no "Dimensões Políticas da Justiça" (Civilização Brasileira), destinado a jogar luzes sobre as razões por que o sistema de justiça está tão politizado.
Os ministros do Supremo deveriam ouvir o sábio conselho do mestre do federalismo James Madison: para ele, a divisão entre os Poderes só é estável quando implica na mínima interferência possível de um Poder sobre as prerrogativas dos outros Poderes.
Leonardo Avritzer é professor associado do Departamento de Ciência Política da UFMG, presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e colunista convidado do "Valor". Maria Cristina Fernandes volta a escrever na próxima semana

Resgatando artigo escrito em janeiro de 2010



Folha de S. Paulo, 13 de janeiro de 2010.


Justiça de transição
JORGE ZAVERUCHA

Na Argentina, as Forças Armadas saíram do poder desmoralizadas. No Brasil, todavia, elas não saíram derrotadas do governo



COMO RESOLVER a concepção de justiça em períodos de transição política? Essa questão ainda não foi resolvida pelas ciências sociais. A prova é a crise causada pelo anúncio do governo Lula de criar uma comissão da verdade para lidar com os acontecimentos ocorridos durante o regime militar (1964-1985). Segundo a mídia, comandantes militares ameaçaram entregar os seus cargos. E o presidente Lula recuou ao prometer revisão do texto.
Duas concepções teóricas sobre a justiça de transição competem entre si. Os idealistas procuram tratar o evento com base em conceitos universais. Os realistas analisam a balança de forças política entre os relevantes atores da transição. A partir disso, definem qual é a melhor resposta legal. A justiça seria um epifenômeno da política.
A visão idealista influenciou a criação, depois da Segunda Guerra Mundial, do Tribunal de Nuremberg, que puniu os violadores de direitos humanos. Idem para a Argentina, a partir do presidente Raúl Alfonsín até, recentemente, quando a Lei da Anistia foi abolida pelo Congresso por se chocar com tratados internacionais.
Os realistas argumentam que a punição aos nazistas foi possível porque houve uma clara vitória de um lado sobre o outro. Justiça dos vitoriosos.
Também na Argentina, as Forças Armadas saíram desmoralizadas do poder, seja pelas contumazes violações aos direitos humanos, seja pelo pífio desempenho econômico, seja pela derrota na Guerra das Malvinas.
No Brasil, todavia, as Forças Armadas não saíram derrotadas do governo, tanto é que conseguiram, em 1979, negociar com o Congresso uma autoanistia. Pacto este que contribuiu para uma razoável transição pacífica rumo a uma democracia eleitoral. Além do mais, asseveram os realistas, as Forças Armadas são hoje consideradas pela população brasileira como a instituição laica de maior credibilidade.
Pela Constituição de 1988, a tortura é crime prescritível, mas o Brasil é signatário de convenções internacionais que consideram esse crime imprescritível. Ministros do atual governo almejam uma mudança constitucional para alterar o teor da vigente Lei da Anistia. Um direito deles. Cabe ao Congresso decidir se acata ou não tal proposta. Outros ministros se opõem, por temerem possível reação armada dos militares.
Esse temor "per se" é uma prova de que não há um firme controle civil democrático sobre os militares. Afinal, o presidente da República é o comandante em chefe das Forças Armadas.
O momento da apresentação da proposta da criação da comissão da verdade foi o pior
possível, por ser ano eleitoral. Lula abriu a discussão sobre tema tão complexo exatamente em seu último ano de governo. Resultado: setores da oposição detectaram que o projeto prejudica a candidatura da ministra Dilma Rousseff, que militou em organização armada clandestina durante o regime militar.
Foram precisos 25 anos para o surgimento de uma proposta concreta para a criação de um comissão da verdade. Não conheço outro país que tenha demorado tanto a dar esse passo fundamental para a contagem da história verdadeira do país. Todavia, ao contrário de Chile, Peru e África do Sul, não foi proposta uma comissão da verdade e reconciliação. Apenas de verdade. Por quê?
Isso levanta suspeitas do lado militar de que, no fundo, o governo brasileiro estaria mais interessado numa revanche do que em fazer justiça.
Essa desconfiança acentua-se quando o documento governamental menciona como um de seus objetivos estratégicos "promover a apuração e o esclarecimento das violações praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil". Poderia ser usada a expressão "conflito político", para deixar claro que a apuração seria para ambos os lados, ajudando na reconciliação nacional.
Uma contribuição da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul foi não ter feito distinção moral entre violações aos direitos humanos.
Foi estabelecida uma equivalência legal entre os perpetradores, de ambos os lados, dessas violações. O arcebispo Desmond Tutu, presidente dessa comissão, deixou claro que ninguém detinha carta branca para usar o método de ação que mais lhe conviesse.
No Brasil, os militares acreditam que lutaram uma "guerra justa" ("jus ad bellum") contra o surgimento de uma ditadura comunista. A oposição também acreditava na justeza de sua pugna. Há várias verdades em jogo que precisam ser discutidas democraticamente. Corre-se o risco de perdermos uma chance de ouro no avanço desse frutífero debate.

JORGE ZAVERUCHA, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade da Universidade Federal de Pernambuco. É autor de "FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia", entre outras obras.

Kant de Lima: Brasil não sabe lidar com a violência sem usar a repressão




 Kant de Lima: Braisl não sabe lidar com a violência sem repressão


Brasil não sabe lidar com a violência sem usar a repressão, afirma antropólogo
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Por Meghie Rodrigues

27/05/2013
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O real debate em torno da redução da maioridade penal vai muito além das argumentações apaixonadas “contra x a favor” que se tem visto na imprensa. Para Roberto Kant, professor de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF) e ex vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a ambivalência “é um jogo de marketing das instâncias repressivas da sociedade”. Ele afirma que o que está em questão é a dificuldade que o Brasil encontra em administrar conflitos de uma forma não-repressiva, “por causa da nossa tradição jurídica e sociológica incrustada no Direito”, que tem por preceito norteador a diretiva de Ruy Barbosa: “tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”.

Para o professor, pode ser que a própria ideia que fazemos do conceito de ‘conflito’ esteja deturpada – o que faz com que seja ainda mais difícil lidar com ele. “Conflitos são uma desarmonia e uma forma de desorganizar a sociedade e por isso precisariam ser extintos. Assim se procura pacificá-los ou suprimir quem provoca o conflito – mas isso não é administrar e nem chegar a um consenso. Isso não é entender os conflitos”.

Kant explica que “na tradição democrática burguesa, os diferentes devem ser tratados de maneira uniforme” tendo a repressão como forma de controle social. O problema é a noção de “diferente” que se tem na sociedade brasileira. “O direito a foro privilegiado para funcionários do Estado, professores e religiosos retrata e encarna a desigualdade jurídica”, afirma. E completa: “não existe nenhuma forma de administrar conflitos institucionalmente que atinja a parte pobre da população que se mete neles”.

Reduzir a maioridade penal não vai sanar o problema da impunidade que, para Kant, não se localiza de forma mais explícita nos menores e sim na ausência de solução para os homicídios no Brasil. “São 50 mil sem solução. Temos uma taxa de 5% de solução de inquéritos policiais em caso de homicídios. Isso sim é impunidade”, diz. Ele reitera que a prisão, como forma de isolamento e não de recuperação, deve ser usada em casos extremos, como no de assassinos em série. “Mas não vejo nada na proposta que tenha a ver com isso. Não é uma solução. É uma coisa completamente deslocada, de quem não entende ou não quer entender do assunto”.

Kant levanta a hipótese de haver relação entre o aumento da repressão com a formação de uma indústria do sistema prisional. “Tem muita gente ganhando dinheiro com a indústria da prisão. É um negócio. Pode haver reforços de interesses econômicos e industriais atrás da proposta”.

“Não tem ninguém interessado em administrar as raízes da violência”, diz Kant. O Brasil estaria longe de experimentar mecanismos que possam de fato atuar na resolução de conflitos e na investigação e apuração dos crimes de maneira razoável. Para ele, “o problema é administrar as pessoas”. 

quinta-feira, 30 de maio de 2013

A polícia como parte do problema e não da solução

Folha de S. Paulo, 30 de maio de 2013.

Lei mais rígida já existe

Clóvis Rossi


Falta que as autoridades admitam o que é óbvio: o Brasil vive uma grave pane de segurança
Quer dizer, então, que o Congresso está examinando o aumento das penas para chefes do narcotráfico?
Parabéns, mas é tarde e nem seria necessário se as autoridades saíssem de sua letargia e aplicassem uma lei já existente, com punições mais severas do que as que estão em discussão no Congresso.
Trata-se, me informa um leitor, advogado que prefere manter o anonimato, da lei 7.170/83, que define crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social, entre outras coisas.
Segurança nacional, ah, que horror, dirá logo você, que é incapaz de pensar fora do quadradinho.
Sim, segurança nacional. Não a dos tempos da ditadura, em que o Estado se dizia ameaçado pelos grupos armados --o que não era bem verdade, mas não é a discussão em causa. Segurança nacional definida como ameaça não ao Estado, mas à sociedade (que, naqueles velhos tempos, era ameaçada pelo Estado).
Que há uma emergência em matéria de segurança pública não dá para negar. A estatística é contundente: a taxa de homicídios por 100 mil habitantes no Brasil duplica a que a comunidade internacional considera ser epidêmica.
O artigo 12 da 7.170 estabelece pena para quem introduza no país armas ou material militar privativo das Forças Armadas (reclusão de 3 a 10 anos, pena que se aplica também a quem, "sem autorização legal, fabrica, vende, transporta, recebe, oculta, mantém em depósito ou distribui o armamento ou material militar" de que trata o artigo).
Preciso dizer que boa parte dos criminosos usa material privativo das Forças Armadas?
Já o artigo 15 prevê de 3 a 10 anos de reclusão para quem "praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem, depósitos e outras instalações congêneres".
Preciso dizer que os ataques a ônibus cabem nesse artigo, como cabem os atentados contra caixas eletrônicos, já que o parágrafo 1º aumenta em 50% a pena no caso de dano a, por exemplo, "serviços públicos reputados essenciais para a defesa, a segurança ou economia do país"?
A lei, portanto, está aí, com penas mais rigorosas que as habitualmente aplicadas (na verdade, não aplicadas, já que a impunidade é regra e um dos combustíveis que impulsiona a criminalidade).
Basta que as autoridades admitam o que é óbvio: há uma grave crise de segurança pública no Brasil.
Mas é bom deixar claro que penas, leves ou rigorosas, se tornam inócuas se não houver antes a transformação do aparelho policial. Não adianta o tipo de punição se poucos criminosos, comparativamente ao volume dos crimes, são levados aos tribunais. Com perdão pela obviedade, antes da pena tem que haver a prisão e a comprovação efetiva do crime praticado.
A polícia francesa conseguiu, em quatro dias, identificar o homem que atacou um soldado no sábado. Quantos dos que vira e mexe atacam ônibus são identificados? A polícia tem que ser parte da solução, não do problema.

Falta de accountability da CNV



O Estado de S. Paulo, 30 de maio de 2013.
Direitos humanos, menores e verdade
Héctor Ricardo Leis


Foi com grande satisfação cidadã que recebi a Lei 12.528/2011, dando origem à Comissão Nacional da Verdade (CNV), com a finalidade de esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
A leitura do livro Direito à Memória e à Verdade: Histórias de Meninas e Meninos Marcados pela Ditadura, publicado em 2009 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, com a assinatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro Paulo Vannuchi, fez-me pensar que o trabalho da CNV era oportuno e fundamental para esclarecer aqueles anos. Lendo esse livro, porém, tive uma clara percepção da confusão reinante no governo Lula com relação às violações dos direitos humanos de menores em conflitos armados.
O Direito Internacional considera uma violação dos direitos humanos o recrutamento de menores para participarem de conflitos armados. No Decreto n.° 5.006, de 8 de março de 2004, o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, promulgou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados, adotado em Nova York em 25 de maio de 2000. Essa importante norma do Direito Internacional estabelece no seu artigo 4º: "Os grupos armados distintos das forças armadas de um Estado não deverão, em qualquer circunstância, recrutar ou utilizar menores de 18 anos em hostilidades. 2. Os Estados Partes (como é o caso do Brasil) deverão adotar todas as medidas possíveis para evitar esse recrutamento e essa utilização, inclusive a adoção de medidas legais necessárias para proibir e criminalizar tais práticas"
Cinco anos depois de o Brasil ter promulgado o protocolo, no entanto, os autores do livro acima mencionado se conformaram em denunciar o terrível crime dos agentes do Estado contra os menores, omitindo-se de caracterizar o fato, explicitamente reconhecido no texto, de que menores foram recrutados por diversas estruturas de organizações guerrilheiras e/ou terroristas. A seguir fragmentos do livro: "Secundaristas se engajaram, em plena adolescência, nas organizações da resistência clandestina, e muitos participaram em ações de guerrilha". O livro dá destaque a dois casos: o de Nilda Carvalho Cunha (1954-1971), morta depois de selvagem tortura, que tinha ingressado "muito cedo na organização clandestina Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)", e o de Marco Antônio Dias Baptista (1954 1970), o mais jovem desaparecido político brasileiro, que "precoce filiou-se à Frente Revolucionária Estudantil, ligada à VAR-Palmares".
Lembremos que a Lei 12.528/2011 foi pensada para estabelecer a verdade dos fatos. Nesse caso, é um fato reconhecido pelo próprio governo brasileiro que no Brasil, no fim  dos anos 1960 e início dos 1970, houve recrutamento de menores para participarem, de um modo ou outro, de grupos armados. Por que, então, não foi feito sequer um pequeno comentário a esse respeito? Não se trata de aplicar uma norma  de 2004 com caráter retroativo a coisas que ocorreram 30 ou 40 anos antes, trata-se, isso sim, de caracterizar corretamente as violações dos direitos humanos que houve no passado para que elas não voltem a repetir-se. Um ato que criminal se não se caracteriza como tal é uma falta com a verdade e a memória histórica.
Não interessa trazer a polêmica, mas apenas mencionar que, segundo alguns autores, o recrutamento de menores de 15 anos para participarem de conflitos armados não é um crime qualquer, mas um crime contra a humanidade. Antecipo-me a lembrar ao leigo que o consentimento de um menor para um crime não descaracteriza em absoluto o ato criminal em si, nem as responsabilidades por ele que cabem a seus participantes.
A fim de que as autoridades competentes pudessem tratar do assunto, em 12 de março deste ano encaminhei à Comissão Nacional da Verdade uma denúncia do caso. No ato do envio solicitei à CNV que me informasse se a minha denúncia seria aceita, já que eu não encontrava no seu site nenhum grupo de trabalho que tivesse por objetivo investigar possíveis violações de direitos humanos cometidos pelos grupos guerrilheiros e/ou terroristas. Nenhum dos 13 grupos de trabalho existentes cobria esse objetivo. Paradoxalmente, a CNV sintonizava o espírito do livro, esquecendo ou ignorando que a Lei 12.528 não abria nenhuma exceção para esses crimes.
Passado um mês do envio da minha denúncia, a ausência de qualquer resposta me levou a encaminhar mais dois pedidos àquela comissão para que confirmasse a sua aceitação ou não. Como tampouco aconteceu nada, escrevi igualmente para a Controladoria-Geral da União para perguntar-lhe o que devia fazer diante da falta de resposta da CNV. Tampouco neste caso tive resposta.
Depois de mais de dois meses de silêncio, estou sendo obrigado a fazer públicas a minha denúncia e a desatenção que estou recebendo da parte de órgãos públicos. Preferi levar antes minha denúncia às autoridades porque considero que se trata de uma questão delicada que nem sempre poderá ser bem entendida pela opinião pública. Mas em questões de interesse público o silêncio é sempre pior do que um eventual mal-entendido.
 Sou também consciente de que a minha denúncia não envolve a mesma gravidade que as denúncias de violações dos direitos humanos por grupos de repressão do Estado. Mas a história dos direitos humanos mostra que não deve existir nenhuma omissão nessa área. Havendo, ficam comprometidos a verdade e o futuro.
Cientista político, e membro do Instituto Millenium