http://www.conjur.com.br/2013-jul-29/superlotado-presidio-mg-exemplifica-situacao-carceraria-pais
O
encontro de Elvis Presley e Lincoln se deu na cidade mineira de
Araguari, com pouco mais de 100 mil habitantes.
Os dois convivem, mais
especificamente, no Presídio de Araguari, cuja lotação está em 217% —
somando 220 presos nos pavilhões construídos para abrigar 101 homens. A
superlotação é percebida logo que se adentra o local, com a profusão de
toalhas puídas e coloridas penduradas para secar nas janelas e portas
das celas e em varais improvisados, junto com camisas, casacos e pedaços
de plástico, que fazem as “divisões de cômodos” no local.
Os dois
pavilhões masculinos, com suas 16 celas, margeiam uma quadra
poliesportiva sem cobertura, onde os presos jogam bola nos horários de
banho de sol. Às 16h da última segunda-feira (22/7) os homens estavam
recolhidos em suas celas, com o sol entrando irremediavelmente pelas
portas e janelas do pavilhão do lado direito, tornando ainda mais
abafado o ambiente dentro delas, quando os termômetros da cidade
marcavam 29 graus.
Além do fato de estarem em conflito com a lei,
Elvis Presley e Lincoln partilham do mesmo sobrenome. Tanto a família
que quis homenagear o rei do rock quanto a que celebrou a memória do
presidente que aboliu a escravidão nos Estados Unidos carregam o
brasileiro "da Silva". Não são irmãos mas nos seus documentos, o espaço
destinado ao nome do pai é preenchido pelas mesmas letras: N/I, sigla
para "não identificado". Um foi condenado a 22 anos de cadeia e o outro,
a seis meses. As celas em que cumprem suas penas, porém, são iguais.
As
atividades nos pouco mais de 10 metros quadrados de cada cela variam.
Em algumas os presos dormem, sob cobertores cinzentos e gastos, mesmo
com o sol batendo diretamente em suas cabeças. Em outras, as agulhas de
crochê trabalham incessantemente, nas mãos daqueles que optam por fazer
artesanato para ter suas penas reduzidas — os tapetes de crochê estão
presentes em praticamente todas as celas.
Além do artesanato, os
presos de Araguari têm a opção de trabalhar na horta do presídio, operar
na pequena fábrica de botinas ou estudar na escola da prisão, chamada
Padre Eduardo Jordi. A escola tem, atualmente, 54 alunos. A fábrica de
botas conta com apenas quatro homens, produzindo calçados que depois são
vendidos pela empresa Xingu, que tem convênio com o presídio. A
matemática é a mesma para os estudos e para o trabalho: três dias na
atividade significam um dia a menos na prisão.
A contagem dos dias
dentro das celas parece ser a atividade principal dos internos. A
proximidade deles com seus processos e o léxico do Judiciário fica
patente durante a visita do promotor de Justiça André Luis Alves de Melo
que, cumprindo determinação do Conselho Nacional do Ministério Público,
vai ao local uma vez por mês. Na vistoria, ele faz um relatório sobre o
presídio e presta alguma assessoria jurídica aos internos — que já
contam também com assessoria jurídica do próprio presídio. Na última
segunda-feira, a revista eletrônica
Consultor Jurídico acompanhou o trabalho.
De
cela em cela, o promotor de execuções pergunta se os presos querem que
ele providencie três documentos: Atestado de Pena, Certidão Criminal e
Andamento Processual — que os presos costumam chamar de Xiscom,
aliteração de Siscom, que é a abreviação de Sistema de Informática das
Comarcas, de onde se retira o andamento processual. Além disso, Melo
pergunta se os internos têm alguma reclamação quanto ao atendimento
médico ou social do presídio.
Ao receber a papelada jurídica das
mãos do promotor, os presos levantam discussões sobre seus processos,
mostrando intimidade com os termos jurídicos. “Cheguei aqui por 157 e já
posso ir para a condicional em um mês. Já posso apresentar carta para
trabalho externo?”, questiona um presidiário, com os papeis em mãos. O
promotor pega a papelada — passada pela grade — e explica que se o preso
quiser se adiantar e apresentar uma carta poderá, sim, conseguir ser
liberado mais rapidamente para o trabalho externo quando for para o
semi-aberto.
O “157” ao qual o homem fez referência é o numero do
artigo no Código Penal pelo qual foi condenado: “Subtrair coisa móvel
alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a
pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência”, mais conhecido como roubo.
Três crimes
Em todas as celas, entre os 220 presos, são praticamente três
números que se repetem: 157, 155 e 33. Ou seja, além do roubo, os crimes
que levam à superlotação do presídio são furto (artigo 155 do Código
Penal) e tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/2006, a Lei de
Drogas).
Na opinião de André Melo,
alterações simples nas leis
em questão poderiam diminuir o déficit de 146.547 vagas no sistema
prisional brasileiro, construído para 302.422 pessoas, mas que abriga
448.969, segundo o Conselho Nacional do Ministério Público.
Para o
promotor, bastaria a criação das figuras jurídicas do furto
privilegiado, roubo privilegiado e do tráfico privilegiado.
Com as
mudanças que ele propõe, o furto de objetos de até um salário mínimo
teria pena de seis meses a dois anos de prisão, com ação penal
condicionada à representação da vítima. O roubo de objetos de até um
salário mínimo, desde que o criminoso fosse réu primário, teria pena de
dois a quatro anos, caso não haja lesões graves e uso de arma de fogo,
podendo-se aplicar pena alternativa. O tráfico de drogas em pequenas
quantidades, sem comprovado envolvimento em crime organizado e com
criminoso réu primário em crime de tráfico de entorpecentes, teria pena
de seis meses a dois anos de prisão.
Além dessas mudanças, o
promotor propõe a criação da confissão premiada em juízo, com
assistência de advogado, como causa de diminuição de pena, e o fim da
obrigatoriedade da ação penal, princípio seguido no Brasil pelo qual o
Ministério Público não pode optar por não denunciar um crime.
Com
as mudanças, diz André Luís Melo, seria possível reduzir a quantidade de
presos, pois seria possível a aplicação de penas alternativas, tornando
a mudança mais efetiva que os mutirões carcerários, pois, em vez de
tirar pessoas das cadeias, elas simplesmente não seriam presas. A ideia,
afirma, é reduzir principalmente o número de presos provisórios. Os
presos que ainda aguardam o trânsito em julgado de seus processos não
são separados dos chamados presos definitivos em 79% dos presídios
brasileiros.
O presídio de Araguari não é diferente. Elvis
Presley, Lincoln, Cleuber, Aritana, Carlos Antonio, André Luiz, Ciro e
os outros 113 presos no local são tanto provisórios quanto definitivos. A
reclamação mais comumente ouvida na visita do promotor ao presídio é:
“Doutor, estou aqui há meses, mas ainda não fui nem julgado, não sei
quanto tempo vou ‘pegar’”. A inquietação quanto a isso é frequente: “Se
me julgarem e disserem que eu precisarei ficar aqui por 10 anos, tudo
bem, eu sei que estou devendo,
mas estou há quatro meses preso sem saber
o motivo”, reclama outro preso.
Os processos dos presos de Araguari
estão se atrasando principalmente porque a comarca está sem juiz fixo,
funcionando em rodízio.
Perfil procurado
As prisões em Araguari são normalmente fruto de flagrantes policiais.
Isso explica, em grande parte, a semelhança física dos presidiários. Ao
contrário das toalhas e panos multicoloridos — apesar de desbotados —,
os ocupantes das celas têm em sua enorme maioria a mesma cor: todos
pardos.
Jovens, magros, cabelos castanhos, olhos castanhos, baixos
ou de altura mediana, orelhas avantajadas e com poucos dentes na boca.
São poucos os que se destacam da maioria dos retratos falados, seguindo
uma lógica lombrosiana. As características não dão o perfil do
“criminoso nato”, mas mostram quem é o cidadão que a Polícia para na rua
como suspeito.
Um preso conta: “Os policiais estavam indo lá no
meu trabalho todo dia, todo dia. Eu estava só trabalhando, sem fazer
nada de errado. Mas eles iam lá todo dia. Até que um dia os caras do
serviço ‘puxaram’ um carro. Eu nem estava envolvido, mas vim em cana
junto”. Se ele estava envolvido ou não no furto do carro, é a Justiça
quem terá de dizer. O que chama a atenção é seu relato sobre a
insistência da Polícia em tentar encontrá-lo fazendo algo errado
simplesmente, segundo ele, porque ele era ex-presidiário.
Um
ex-presidiário voltar para as grades é comum. “Não tem virgem na zona”,
diz o ditado popular. Em Araguari, quem está atrás das grades e janelas —
cheias de panos, canecas de plástico e produtos de higiene postos para
secar — não costuma ser réu primário.
O presídio, assim como 78% das
prisões de todo o país, não separa réus primários de reincidentes.
A
separação, porém, é feita entre homens e mulheres. A ala feminina do
presídio de Araguari fica em um pavilhão recém-construído pela
comunidade, com doações de brita, cimento, mão de obra e caminhões
emprestados. A construção foi feita pela comunidade e por presidiários.
Construído
para abrigar 25 mulheres, o pavilhão tem, atualmente, 20 ocupantes.
Isso explica em parte a diferença brutal do ambiente masculino e
feminino no mesmo presídio. A poluição visual é muito menor onde as
mulheres têm um espaço mais adequado para o convívio. As canecas de
plástico, garrafas pet, materiais de higiene, toalhas e roupas não
precisam ficar se amontoando nas janelas, portas ou em varais
improvisados, pois há espaço para os itens dentro das celas. Além, é
claro, de a organização da “casa” ser uma habilidade mais cultivada
entre as mulheres.
Quem está na ala feminina, porém, não tem a
opção de estudar para ter redução de pena. Apesar de estarem a 30 metros
da escola, a lei não permite que mulheres e homens estudem juntos —
“mesmo que insistam em dizer que o presídio serve para ressocializar”,
ironiza o promotor André Melo. As mulheres também não puderam participar
da festa junina organizada pelos alunos da escola do presídio na semana
anterior à visita do promotor. As letras coloridas ainda pendiam na
entrada do presídio, dando inveja a quem não pôde ir: “Arraiá prisioná”,
em bom mineirês.
*Texto alterado às 21h41 do dia 29 de julho de 2013.