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[o nome do livro do autor é Justiça de Transição: contornos do conceito]
“Poder Judiciário é refratário ao direito
internacional dos direitos humanos”
A transição política do autoritarismo
para a democracia se arrasta no Brasil em decorrência de forças
conservadoras que tem grande força no governo e também por causa do Judiciário.
Em 2010, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) referendou a interpretação de
que a Lei da Anistia beneficiou também os agentes de Estados acusados de
violações de direitos humanos, ele “optou por consagrar os limites impostos
pela ditadura à transição democrática”.
Quem faz essas afirmações,
na entrevista a seguir, é o pesquisador Renan Honório Quinalha, autor do
livro Justiça de Transição – Contornos do Direito. Formado em
direito e em ciências sociais e doutorando em direito internacional na
Universidade de São Paulo (USP), ele baseia sua análise na comparação entre o
Brasil e outros países, sobretudo da América Latina, que enfrentaram processos
semelhantes de transição de regimes autoritários para democráticos.
Esse foi o tema da
dissertação de mestrado de Quinalha, apresentada na Faculdade de Direito do
Largo São Francisco, na área de sociologia do direito, agora transformada em
livro. Na entrevista ele aborda temas de interesse para quem acompanha os
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, os debates sobre a Lei da Anistia e
a consolidação da democracia no Brasil – tanto do ponto de vista jurídico
quanto político.
Hoje no Brasil fala-se
muito em justiça de transição. É correto?
A rigor, o termo
“justiça de transição” surgiu para designar uma justiça adaptada a
sociedades que estão atravessando ou que recém-atravessaram situações extremas
de violência ou conflito – e cuja gravidade prejudicou a estabilidade política
e a coesão social que fundavam a vida em comum e o funcionamento das
instituições. Ou seja, é uma justiça “do possível”, porque precária e
excepcional. Desde que começou a ser utilizada para orientar políticas públicas
e discussões acadêmicas no Brasil, ela favoreceu uma série de avanços na
garantia dos direitos à verdade, à memória e à justiça em relação aos crimes da
ditadura militar.
Mas é correto ou não
usar o termo nas atuais condições?
No
Brasil, passados 30 anos após os momentos mais marcantes da
redemocratização, não se verificam a instabilidade e o receio de uma regressão
autoritária que são típicos das transições. O regime democrático tem problemas
e deficiências, mas está consolidado. Exceto se assumirmos que a transição
brasileira seja interminável, o que contraria a própria definição da palavra
‘transição’, a importação do conceito de justiça de transição, sem um juízo
crítico, traz um risco: o de tornar permanente uma situação excepcional. Isso
pode perpetuar a tensão e os bloqueios para se fazer justiça em relação aos
crimes do passado.
Existiria uma expressão
mais adequada para o momento?
A ideia de uma
“justiça de consolidação”, para dar conta de tarefas ainda pendentes, soaria
melhor. O desafio que está posto é o da melhora da qualidade da democracia.
O trabalho da Comissão
Nacional da Verdade faz parte do processo de justiça de transição?
Esclarecer as graves
violações de direitos humanos cometidas pela ditadura, suas circunstâncias e
autoria, objetivo central da Comissão da Verdade, é uma típica tarefa de
justiça transicional. Mas devemos perguntar: por que demoramos tanto em fazer
uma Comissão da Verdade? E por que, mesmo passado esse longo período, as
pressões dos conservadores levaram a tantos recuos?
Que tipo de recuo?
A proposta original
era de criação de uma Comissão da Verdade que também pudesse realizar – ou ao
menos incentivar – alguma forma de justiça, mesmo que não estritamente
criminal. Por ora, a justiça saiu de cena, restando uma responsabilização
histórica – que é importante, mas insuficiente – em seu lugar. Devido a
resistências também foram suprimidas referências simbólicas importantes que
estavam no projeto original, como “repressão ditatorial”, “regime de
1964-1985″, “resistência popular à repressão”, “pessoas que praticaram crimes
de lesa humanidade” e “responsabilização criminal sobre casos que envolvam atos
relativos ao regime de 1964 – 1985″. Em substituição a esse repertório foram
acrescentados termos mais vagos e menos polêmicos. Tais mudanças indicam como
ainda operam, no Brasil, forças conservadoras com grande inserção no governo.
Críticos da Comissão
dizem que tem caráter revanchista e que os dois lados deveriam ser
investigados.
Essas críticas não
procedem. A lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade indica claramente
que deverão ser apuradas as “graves violações de direitos humanos”, ou seja, os
crimes contra a humanidade cometidos por agentes a serviço do Estado
ditatorial. Essa “teoria dos dois demônios”, que surgiu na Argentina e no
Uruguai, é descabida no caso brasileiro. Primeiro, porque não havia ações armadas
consistentes capazes de colocar em xeque o Estado de Direito e suas
instituições no pré-1964. Foi o golpe que forçou uma atuação clandestina e
armada dos grupos de esquerda, impossibilitados de atuar na legalidade.
Segundo, não havia a prática sistemática, por parte das organizações opositoras
da ditadura que adotaram táticas de guerrilha, de atos de terrorismo, ou seja,
violência contra alvos civis de forma indiscriminada. Terceiro, não é razoável
colocar lado a lado, como se equiparáveis fossem, as condutas de resistência a
um governo autoritário praticadas por grupos privados e a repressão armada do
Estado com toda sua potência material.
Militantes de
guerrilhas urbanas e rurais também não deveriam pagar por seus crimes?
Os integrantes das
guerrilhas que combateram a ditadura já foram, em sua enorme maioria, presos,
torturados e, às vezes, processados e punidos para além do legalmente
permitido. E estão anistiados. A história e os nomes destes já nos são bem
conhecidos, mas nos falta saber quais foram os agentes públicos envolvidos com
a repressão e as violações de direitos humanos.
Qual a importância de
se recordar algo tão doloroso e violento?
A Comissão da Verdade
constitui um dos mais importantes capítulos da redemocratização em nosso país.
Há diversas razões que justificam a necessidade de buscar essa verdade
dolorosa. A primeira é que há uma demanda mais do que legítima por parte das
vítimas e dos familiares dos mortos e desaparecidos para saber efetivamente o
que ocorreu com seus entes queridos. É preciso garantir esse direito das
famílias. Outro objetivo de enfrentar um passado bloqueado é a elaboração
dessas experiências, mediante a construção coletiva de uma verdade comprometida
com os direitos humanos. O grande lema, nesses casos, é recordar para não
repetir.
Na Argentina e no
Uruguai torturadores enfrentaram processos e já existem condenações já
consumadas. No Brasil, as primeiras ações penais foram ajuizadas recentemente
pelo Ministério Público Federal.
O Poder Judiciário no
Brasil ainda é muito conservador e refratário ao direito internacional dos
direitos humanos. Enquanto todos os países do Cone Sul estão processando,
julgando e condenando os responsáveis pelos crimes da ditadura, nós estamos
fazendo uma Comissão da Verdade com uma série de limitações e, muitas vezes,
ainda temos de pedir licença para acessarmos os arquivos e documentos da época.
Temos de comemorar nossos avanços, que foram significativos nos últimos anos,
mas é motivo de vergonha tamanha distância em relação ao estado da arte dessa
questão no restante da região e no mundo.
O STF, no julgamento da
ADPF 153, apresentado pela OAB, confirmou o entendimento de que a Lei da
Anistia de 1979 se estende também aos agentes de Estado que praticaram
torturas, sequestros, assassinatos. Como vê essa decisão?
Nossa corte suprema,
quando declarou que a interpretação adequada da Lei da Anistia também beneficia
os agentes públicos que cometeram graves violações de direitos humanos, optou
por consagrar os limites impostos pela ditadura à transição democrática. Fez
uma leitura passadista de um problema do presente. Assim, uma parte importante
do potencial de reinvenção democrática que esteve presente no processo
constituinte de 1988 sucumbiu diante da continuidade da cultura política e
jurídica autoritária enraizada nas instituições. Com essa decisão, o STF
consagrou não só um entendimento jurídico, mas uma versão da história, ao
concluir que a anistia de 1979 foi produto de um amplo pacto que não poderia
ser, agora, questionado. Mas ignorou que o projeto de anistia da ditadura ganhou
por poucos votos, em um Congresso controlado e com representantes biônicos.
Acha que foi uma
auto-anistia?
Sim. Tratou-se de uma
auto-anistia, o que é vedado pelo direito internacional dos direitos humanos.
A decisão do STF
contraria acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Isso
configura um impasse?
O Estado brasileiro
já foi condenado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos, no ano 2010,
no chamado Caso Araguaia, por violação de dispositivos da Convenção Americana
de Direitos Humanos. Nessa decisão, que é vinculante, foi determinada a
obrigação de apurar a autoria e processar penalmente os responsáveis pelo
desaparecimento de 70 militantes da Guerrilha do Araguaia. Mais: o Brasil foi
condenado a remover os obstáculos jurídicos a que se faça justiça em relação a
todos os crimes da ditadura, especialmente a Lei de Anistia de 1979. No
entanto, essa condenação, que já estava anunciada por inúmeros precedentes, foi
solenemente ignorada pelo STF, que se revelou apegado a uma noção estreita e
provinciana de soberania. Nossa corte suprema ainda não tem, nesse tema, o
protagonismo do qual se orgulha em outras matérias do direito e da vida
política nacional. Isso precisa mudar, pois todos os Poderes do Estado estão
obrigados a cumprir a decisão da Corte Interamericana. Nesse sentido, não há
impasse, há descumprimento.
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