Carta Capital, 1 de abril de 2013.
Vladimir Safatle
As neodemocracias
Na teoria
política tradicional, tendemos a operar com a dicotomia entre sociedades
totalitárias e sociedades democráticas. Se as primeiras são sociedades
incapazes de garantir a realização institucional de exigências de liberdade, as
últimas se realizariam como Estados Democráticos de Direito, ou seja, Estados
dotados de ordenamentos jurídicos que, mesmo imperfeitos, poderiam assegurar
que os conflitos sociais fossem regulados da melhor maneira possível. Suas
imperfeições poderiam, por sua vez, ser paulatinamente sanadas por meio dos
mecanismos institucionais em vigor, respeitando assim o que alguns chamam de
“legalidade democrática”.
No
entanto, vários são os autores a insistir que tal dicotomia não dá conta dos
verdadeiros desafios postos pela reflexão contemporânea sobre o político. Um
dos desafios principais se refere à percepção de que nossas sociedades
democráticas não avançam em direção ao aperfeiçoamento, mas degradam-se
lentamente enquanto se mostram incapazes de superar seus limites. Nesse
sentido, nem sequer o termo de “democracias imperfeitas” é conveniente, já que
a ideia de “imperfeição” pressupõe a existência de um movimento potencial em
direção à perfectibilidade, o que está longe de ser o caso.
Vale a
pena lembrar que
mesmo países normalmente vendidos como exemplos de democracias consolidadas,
como o Reino Unido, a França, os Estados Unidos e a Espanha, foram palcos de
grandes mobilizações visando expor o profundo descontentamento social com a
democracia parlamentar. Esse descontentamento foi fruto de uma experiência histórica
clara. Nos últimos anos, ficou exposta a maneira pela qual a democracia
parlamentar é profundamente permeável aos interesses econômicos do sistema
financeiro internacional e de seus agentes locais. A incapacidade de encontrar
soluções para colocar um fim ao estado perene de choque econômico é, no fundo,
a compreensão de que não há solução real fora da reinvenção da vida política.
Aceito
isso, como descrever então a situação na qual se encontra os países dotados do
que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito? Não sendo
simplesmente sociedades totalitárias, tais Estados têm um profundo potencial
autoritário que, em países como o Brasil, explicita-se na maneira “legal” de
ignorar os direitos substantivos dos mais vulneráveis, assim como na
criminalização de todo movimento político que faça ressoar a diferença entre o
Direito e a Justiça. Em países da Europa e da América do Norte, tal potencial
autoritário apresenta-se também por meio da consolidação daquilo que o filósofo
italiano Giorgio Agamben chama de “estados de exceção permanente”, ou seja,
ordenamentos jurídicos que funcionam em situação de exceção através da criação
de situações nas quais não se é mais possível distinguir estados de guerra e
estados de paz.
Nesse
contexto, vale a pena lembrar-se da ideia de Jacques Derrida, para quem só se
pode falar em democracia por vir. Uma sociedade democrática é caracterizada por
não se realizar completamente e, por isso, por reconhecer a normalidade das
dissociações entre o Direito e a Justiça, por reconhecer o caráter
desconstrutível do ordenamento jurídico. Ela reconhece que muitas ações contra
o Estado Democrático de Direito são modalidades políticas de lutas sociais,
capazes de fazer referência a exigências mais amplas de Justiça.
Se esse
for o caso, então
deveríamos chamar nossa condição atual como uma situação de ‘neodemocracias’.
Uma neo-democracia não é uma democracia em processo de aperfeiçoamento, mas uma
figura político-institucional marcada por um sistema de bloqueios
intransponíveis em direção à institucionalização da soberania popular e à
implementação da democracia direta nos processos de gestão de governos. Tais
bloqueios deixam evidente a permeabilidade da estrutura de todos os grandes
partidos aos interesses econômicos hegemônicos, assim como a plutocracia que
emerge sempre dos embates eleitorais e a impossibilidade do aparecimento de uma
pluralidade de vozes dissonantes no processo de formação da opinião pública
mediada pela grande imprensa.
Contra as
neodemocracias não é possível reforma alguma. Elas precisam ser superadas
através da implantação, cada vez mais forte, de mecanismos que nos coloquem
para além dos limites da democracia parlamentar. Por isso, o grande embate
daqui para frente passará pela definição dos rumos do debate em torno da noção
de “democracia direta”.
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