Judicialização não é sinônimo de ativismo judicial
No
discurso que fez em homenagem ao novo presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Joaquim Barbosa, o também ministro Luiz Fux realizou
uma candente defesa da autonomia do Poder Judiciário. Com a erudição que
lhe é peculiar, disse que a efetivação de direitos fundamentais pelo
Judiciário — principalmente, por meio do Supremo Tribunal Federal — não
representa ingerência deste Poder estatal nos demais. Tais atribuições,
nos termos propalados pelo discurso, fazem parte da agenda de
responsabilidades atribuída ao Judiciário na contemporaneidade.
Esse traço marcante da fala do ministro foi intensamente mencionado nas discussões que se seguiram à cerimônia de posse da nova presidência do Pretório Excelso. De todo modo, não é apenas sobre a independência e a autonomia do Poder Judiciário que pretendo tratar na coluna de hoje. De fato, quero lançar luz sobre outro aspecto, igualmente mencionado no discurso do ministro Fux, mas que acabou ressoando muito pouco na repercussão que foi dada pela mídia em geral. Quero ressaltar um aspecto, digamos, mais academicista da fala articulada.
Trata-se da admoestação feita pelo ministro àquilo que ele nomeou de “certos nichos acadêmicos”. Em sua fala, revestida de certo tom de censura, o ministro afirmou que a incisividade atual do Poder Judiciário na vida social é aclamada por diversos autores da doutrina nacional e estrangeira — algo que, registre-se, é de duvidosa veracidade — e que apenas um pequeno grupo de estudiosos (na expressão do ministro, “certos nichos acadêmicos”) é que se mostra crítica a tal participação do Judiciário. Esses “nichos acadêmicos” seriam aqueles lugares nos quais se produzem pesquisas sobre a chamada judicialização da política.
Para definir judicialização da política, o ministro chama à colação as lições do cientista político estadunidense Chester Neal Tate[1] dizendo que tal fenômeno significa o deslocamento do polo de decisão de certas questões que tradicionalmente cabiam aos poderes Legislativo e Executivo para o âmbito do Judiciário.
Logo na sequência, o ministro faz uma dura crítica a tais setores acadêmicos, “partidários” do discurso da judicialização da política, ao asseverar que aqueles que criticam o Judiciário por ingressar no campo das decisões políticas acabam por incorrer em certo vazio discursivo uma vez que não apresentam, de maneira clara e objetiva, quais são as linhas demarcatórias desse limite a ser respeitado pelo Direito com relação à Política.
Vou expor aqui alguns motivos pelos quais entendo que o ministro não foi totalmente justo com a apresentação do problema e o respectivo papel da academia no exame dessas questões.
Em primeiro lugar, no modo como a questão foi apresentada pelo ministro, somos levados a entender que aqueles que pesquisam e escrevem sobre a judicialização da política, e que discutem sobre os limites da atuação do Poder Judiciário, pretendem reduzir o papel desempenhado pela função jurisdicional em um Estado Democrático de Direito. Por certo, não é disso que se trata. As análises levadas a cabo nessa seara de interesses não pretendem, de forma alguma, operar uma espécie de capitis deminutio do Poder Judiciário. Aliás, é um truísmo afirmar a importância assumida pelo Judiciário em um Estado de Direito. É sobejamente sabido que a ideia de submeter o exercício do poder político às regras criadas por este mesmo poder, implica importante papel de controle a ser desempenhado pelo Poder Judiciário (especialmente em se tratando da história do constitucionalismo na América Latina, onde a atuação do Judiciário teve papel central no processo de redemocratização, com o objetivo de se romper com a experiência vivenciada nos regimes ditatoriais, quando o Executivo tinha poderes ilimitados).
Na verdade, mais do que simplesmente reduzir o papel institucional destinado ao Poder Judiciário (que, ao final, seria uma forma de esconder o problema ao invés de solucioná-lo), a questão que se coloca na linha de frente das preocupações daqueles que pesquisam e escrevem sobre a judicialização da política, das relações sociais e — no limite — da própria vida, é pensar formas de democratização e legitimação dos atos praticados pelo Poder Judiciário.
Aquilo que, genericamente, se chama de judicialização da política é mais um diagnóstico do que, propriamente, um remédio para certo tipo de patologia. Esse ponto me leva a outro argumento a ser destacado com relação à fala do ministro. Diz respeito à comum confusão que se faz entre judicialização da política e ativismo judicial.[2]
Ora, a judicialização da política representa um conjunto de coisas sob as quais o Judiciário, simplesmente, não possui controle (esta coluna já tratou do tema, com outro pressuposto e objetivo. Para ler, clique aqui). São fatores preexistentes em relação à sua atividade e atuação. São, na verdade, razões de ordem político-sociais que podem ser pensadas de diversas maneiras. A aglutinação cada vez maior de matérias judicializadas, deve-se, por exemplo, ao aumento da litigiosidade e de uma peculiaridade que pode ser observada, em maior ou menor medida, nos mais diversos países, das mais diversas origens (da Alemanha aos países do leste europeu[3]).
Esta particularidade diz respeito a um imaginário difuso que tende a enxergar no Judiciário o lugar legítimo para se discutir questões que, antes, eram debatidas no âmbito político (Legislativo e Executivo). Muitos fatores contribuem para isso, desde o desprestígio dos agentes públicos (que cada vez mais aparecem como protagonistas de casos de corrupção), passando pelo discurso retumbante da eficácia dos direitos fundamentais e desaguando no fato de que, de forma cada vez mais evidente, “o juiz (melhor seria dizer: o Judiciário — acrescentamos) passa a ser uma referência da ação política”[4].
Esse último fator anotado repercute no nível da cultura, produzindo um interessante fenômeno de transformação em algo que podemos chamar de “semântica da política”: vale dizer, com Antoine Garapon, a judicialização passa a oferecer para a democracia um “novo vocabulário: imparcialidade, processo, transparência, contraditório, neutralidade, argumentação, etc. O juiz — e a constelação de representações que gravitam à sua volta — confere à democracia as imagens capazes de dar forma a uma nova ética da deliberação coletiva”[5].
O autor francês identifica, nessa faceta da manifestação social, um tipo degenerado de democracia que tende a se legitimar a partir da perspectiva de que a possibilidade de o próprio indivíduo poder buscar a tutela jurisdicional na defesa de seus interesses juridicamente protegidos representaria um tipo de democracia direta (que, pretensamente, estaria livre dos desvios éticos a que está sujeito o processo político baseado no tradicional modelo representativo de democracia). Nas palavras de Garapon: “O debate judicial individualiza os desafios: a dimensão coletiva existe, mas de forma incidente. Visa um compromisso mais solitário do que solidário. Através dessa forma direta de democracia, o cidadão litigante tem a sensação de dominar melhor a sua representação.”[6]
Portanto, fica evidenciado que a judicialização é um fenômeno que independe dos desejos ou da vontade dos membros do Poder Judiciário. A judicialização, na verdade, é um fenômeno que está envolvido por uma transformação cultural profunda pela qual passaram os países que se organizam politicamente em torno do regime democrático.
Ademais, há fatores políticos que condicionam o grau de judicialização vivenciado por uma dada sociedade. Dentre esses fatores, podemos mencionar: a) o grau de (in)efetividade dos direitos fundamentais (núcleo compromissório da Constituição); b) o nível de profusão legislativa com o consequente aumento da regulamentação social; c) o nível de litigiosidade que se observa em cada sociedade. Na medida em que aumentam os indicadores de inefetividade dos Direitos Fundamentais, os índices de produção legislativa, e da litigiosidade social, também aumentará o nível de judicialização.
Já o ativismo possui uma raiz completamente diversa. Este, sim, liga-se a um desejo do órgão judicante com relação à possibilidade de alteração dos contextos político-sociais. Pode ser conservador ou progressista. No final, o resultado é o mesmo: o Judiciário agindo por motivos de convicção e crença pessoal do magistrado, e não em face da moralidade instituidora da comunidade política.
Podemos encontrar, novamente em Garapon, um socorro para melhor definir o conceito: “o ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar”[7].
Portanto, é importante não confundir alhos com bugalhos: Judicialização é uma coisa; ativismo judicial é outra. A consequência da excessiva judicialização pode ser um aumento das decisões ativistas. Mas — e esse é o ponto fulcral — mesmo sem judicialização, podemos ter decisões ativistas. Na raiz, os fenômenos são distintos. De todo modo, o aumento da judicialização opera, como contrapartida, um aumento da responsabilidade no julgamento.
É importante percebermos isso porque os remédios para controlar uma ou outra patologia serão completamente diferentes, porque as causas dos fenômenos são, elas mesmas, absolutamente distintas: a judicialização não representa um mal em si. Ela pode se tornar inconveniente quando encontrada em níveis elevados, mas se mostra necessária em vários âmbitos que caracterizam a sociedade contemporânea. As relações de consumo; a preservação do meio ambiente; as questões envolvendo direitos sociais, etc., são questões que merecem ser discutidas judicialmente, na medida em que aquilo que foi projetado pela Constituição e pelas leis apresentar-se na forma de descumprimento.
De todo modo, o bom funcionamento do sistema político tende a controlar os índices da judicialização.
O ativismo, por outro lado, está situado dentro do Direito — no âmbito interpretativo, da decisão judicial — mas, paradoxalmente, também está fora, na medida em que a estrita dependência em torno daquilo que o juiz pensa, entende ou deseja no julgamento de uma determinada questão judicializável, pode levar à suspensão do direito vigente, criando fissuras na institucionalidade, desenvolvendo figuras típicas de um Estado de Exceção. Por isso, o modo de controlá-lo deve ser aferido no âmbito da própria interpretação do Direito, sendo, por isso, um problema a ser enfrentado pela hermenêutica jurídica.
Na falta de efetivação de um direito fundamental, o Judiciário, se provocado, evidentemente, está autorizado a agir para concretizá-lo. O problema está no excesso. Como dizia Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo — o nosso filósofo do Sertão: “Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.”
Uma anotação final
O discurso sobre a judicialização e o ativismo assume uma conotação de cautela. Não se trata de apequenar as estratégicas funções atribuídas ao Judiciário em um Estado Democrático de Direito. Trata-se de afirmar a autonomia e independência do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, olhar de soslaio para o desempenho de suas atividades, analisando na cadeia de integridade entre suas decisões e efetuando os devidos “constrangimentos epistemológicos”, nos termos propalados por Lenio Streck[8].
Vou encerrar as reflexões de hoje de um jeito incomum, mas que, no entanto, diz muito a respeito das questões aqui levantadas. Quando da criação do Supremo Tribunal Federal, Rui Barbosa — partidário daquilo que se enunciava, inspirado no modelo político estadunidense, como uma “democracia judicialista” — fez uma entusiasmada defesa acerca da grandeza das atribuições da Alta Corte. Os argumentos podem ser tidos como afirmações da autonomia e independência do Poder Judiciário e foram retirados da obra de Raymundo Faoro, Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio:
“Formulando para nossa pátria o pacto de regionalização nacional, sabíamos que os povos não amam as suas Constituições senão pela segurança das liberdades que elas lhes prometam; mas que as Constituições, entregues como ficam, ao arbítrio do Parlamento e à ambição dos governos, bem frágil anteparo oferecem a essas liberdades, e acabam quase sempre, e quase sempre se desmoralizam pelas invasões graduais ou violentas do poder que representa a legislação e do poder que representa a força. Nós, os fundadores da Constituição, não queríamos que a liberdade individual pudesse ser diminuída pela força, nem mesmo pela lei. E por isto, fizemos deste tribunal (o Supremo Tribunal Federal) o sacrário da Constituição, demos-lhe a guarda da sua hermenêutica, pusemo-lo como um veto permanente aos sofismas opressores das razões de Estado, resumimos-lhe a função específica nesta ideia”.[9]
Anos depois, já em vigor a Constituição Republicana e em atividade o Supremo Tribunal Federal, Rui Barbosa voltou a tecer considerações sobre a atividade da Corte. As palavras, dessa vez, não refletiram entusiasmo ou condescendência. Ao contrário, soaram como uma veemente admoestação contra certo tipo conservador de ativismo desempenhado pelo Supremo Tribunal:
“O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de temor, quando, exatamente, mais necessitada estava ela da lealdade, da fidelidade e da coragem dos seus defensores. (...) Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde.” [10]
Acautelar-se; confiar desconfiando: eis as palavras de ordem!
Esse traço marcante da fala do ministro foi intensamente mencionado nas discussões que se seguiram à cerimônia de posse da nova presidência do Pretório Excelso. De todo modo, não é apenas sobre a independência e a autonomia do Poder Judiciário que pretendo tratar na coluna de hoje. De fato, quero lançar luz sobre outro aspecto, igualmente mencionado no discurso do ministro Fux, mas que acabou ressoando muito pouco na repercussão que foi dada pela mídia em geral. Quero ressaltar um aspecto, digamos, mais academicista da fala articulada.
Trata-se da admoestação feita pelo ministro àquilo que ele nomeou de “certos nichos acadêmicos”. Em sua fala, revestida de certo tom de censura, o ministro afirmou que a incisividade atual do Poder Judiciário na vida social é aclamada por diversos autores da doutrina nacional e estrangeira — algo que, registre-se, é de duvidosa veracidade — e que apenas um pequeno grupo de estudiosos (na expressão do ministro, “certos nichos acadêmicos”) é que se mostra crítica a tal participação do Judiciário. Esses “nichos acadêmicos” seriam aqueles lugares nos quais se produzem pesquisas sobre a chamada judicialização da política.
Para definir judicialização da política, o ministro chama à colação as lições do cientista político estadunidense Chester Neal Tate[1] dizendo que tal fenômeno significa o deslocamento do polo de decisão de certas questões que tradicionalmente cabiam aos poderes Legislativo e Executivo para o âmbito do Judiciário.
Logo na sequência, o ministro faz uma dura crítica a tais setores acadêmicos, “partidários” do discurso da judicialização da política, ao asseverar que aqueles que criticam o Judiciário por ingressar no campo das decisões políticas acabam por incorrer em certo vazio discursivo uma vez que não apresentam, de maneira clara e objetiva, quais são as linhas demarcatórias desse limite a ser respeitado pelo Direito com relação à Política.
Vou expor aqui alguns motivos pelos quais entendo que o ministro não foi totalmente justo com a apresentação do problema e o respectivo papel da academia no exame dessas questões.
Em primeiro lugar, no modo como a questão foi apresentada pelo ministro, somos levados a entender que aqueles que pesquisam e escrevem sobre a judicialização da política, e que discutem sobre os limites da atuação do Poder Judiciário, pretendem reduzir o papel desempenhado pela função jurisdicional em um Estado Democrático de Direito. Por certo, não é disso que se trata. As análises levadas a cabo nessa seara de interesses não pretendem, de forma alguma, operar uma espécie de capitis deminutio do Poder Judiciário. Aliás, é um truísmo afirmar a importância assumida pelo Judiciário em um Estado de Direito. É sobejamente sabido que a ideia de submeter o exercício do poder político às regras criadas por este mesmo poder, implica importante papel de controle a ser desempenhado pelo Poder Judiciário (especialmente em se tratando da história do constitucionalismo na América Latina, onde a atuação do Judiciário teve papel central no processo de redemocratização, com o objetivo de se romper com a experiência vivenciada nos regimes ditatoriais, quando o Executivo tinha poderes ilimitados).
Na verdade, mais do que simplesmente reduzir o papel institucional destinado ao Poder Judiciário (que, ao final, seria uma forma de esconder o problema ao invés de solucioná-lo), a questão que se coloca na linha de frente das preocupações daqueles que pesquisam e escrevem sobre a judicialização da política, das relações sociais e — no limite — da própria vida, é pensar formas de democratização e legitimação dos atos praticados pelo Poder Judiciário.
Aquilo que, genericamente, se chama de judicialização da política é mais um diagnóstico do que, propriamente, um remédio para certo tipo de patologia. Esse ponto me leva a outro argumento a ser destacado com relação à fala do ministro. Diz respeito à comum confusão que se faz entre judicialização da política e ativismo judicial.[2]
Ora, a judicialização da política representa um conjunto de coisas sob as quais o Judiciário, simplesmente, não possui controle (esta coluna já tratou do tema, com outro pressuposto e objetivo. Para ler, clique aqui). São fatores preexistentes em relação à sua atividade e atuação. São, na verdade, razões de ordem político-sociais que podem ser pensadas de diversas maneiras. A aglutinação cada vez maior de matérias judicializadas, deve-se, por exemplo, ao aumento da litigiosidade e de uma peculiaridade que pode ser observada, em maior ou menor medida, nos mais diversos países, das mais diversas origens (da Alemanha aos países do leste europeu[3]).
Esta particularidade diz respeito a um imaginário difuso que tende a enxergar no Judiciário o lugar legítimo para se discutir questões que, antes, eram debatidas no âmbito político (Legislativo e Executivo). Muitos fatores contribuem para isso, desde o desprestígio dos agentes públicos (que cada vez mais aparecem como protagonistas de casos de corrupção), passando pelo discurso retumbante da eficácia dos direitos fundamentais e desaguando no fato de que, de forma cada vez mais evidente, “o juiz (melhor seria dizer: o Judiciário — acrescentamos) passa a ser uma referência da ação política”[4].
Esse último fator anotado repercute no nível da cultura, produzindo um interessante fenômeno de transformação em algo que podemos chamar de “semântica da política”: vale dizer, com Antoine Garapon, a judicialização passa a oferecer para a democracia um “novo vocabulário: imparcialidade, processo, transparência, contraditório, neutralidade, argumentação, etc. O juiz — e a constelação de representações que gravitam à sua volta — confere à democracia as imagens capazes de dar forma a uma nova ética da deliberação coletiva”[5].
O autor francês identifica, nessa faceta da manifestação social, um tipo degenerado de democracia que tende a se legitimar a partir da perspectiva de que a possibilidade de o próprio indivíduo poder buscar a tutela jurisdicional na defesa de seus interesses juridicamente protegidos representaria um tipo de democracia direta (que, pretensamente, estaria livre dos desvios éticos a que está sujeito o processo político baseado no tradicional modelo representativo de democracia). Nas palavras de Garapon: “O debate judicial individualiza os desafios: a dimensão coletiva existe, mas de forma incidente. Visa um compromisso mais solitário do que solidário. Através dessa forma direta de democracia, o cidadão litigante tem a sensação de dominar melhor a sua representação.”[6]
Portanto, fica evidenciado que a judicialização é um fenômeno que independe dos desejos ou da vontade dos membros do Poder Judiciário. A judicialização, na verdade, é um fenômeno que está envolvido por uma transformação cultural profunda pela qual passaram os países que se organizam politicamente em torno do regime democrático.
Ademais, há fatores políticos que condicionam o grau de judicialização vivenciado por uma dada sociedade. Dentre esses fatores, podemos mencionar: a) o grau de (in)efetividade dos direitos fundamentais (núcleo compromissório da Constituição); b) o nível de profusão legislativa com o consequente aumento da regulamentação social; c) o nível de litigiosidade que se observa em cada sociedade. Na medida em que aumentam os indicadores de inefetividade dos Direitos Fundamentais, os índices de produção legislativa, e da litigiosidade social, também aumentará o nível de judicialização.
Já o ativismo possui uma raiz completamente diversa. Este, sim, liga-se a um desejo do órgão judicante com relação à possibilidade de alteração dos contextos político-sociais. Pode ser conservador ou progressista. No final, o resultado é o mesmo: o Judiciário agindo por motivos de convicção e crença pessoal do magistrado, e não em face da moralidade instituidora da comunidade política.
Podemos encontrar, novamente em Garapon, um socorro para melhor definir o conceito: “o ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar”[7].
Portanto, é importante não confundir alhos com bugalhos: Judicialização é uma coisa; ativismo judicial é outra. A consequência da excessiva judicialização pode ser um aumento das decisões ativistas. Mas — e esse é o ponto fulcral — mesmo sem judicialização, podemos ter decisões ativistas. Na raiz, os fenômenos são distintos. De todo modo, o aumento da judicialização opera, como contrapartida, um aumento da responsabilidade no julgamento.
É importante percebermos isso porque os remédios para controlar uma ou outra patologia serão completamente diferentes, porque as causas dos fenômenos são, elas mesmas, absolutamente distintas: a judicialização não representa um mal em si. Ela pode se tornar inconveniente quando encontrada em níveis elevados, mas se mostra necessária em vários âmbitos que caracterizam a sociedade contemporânea. As relações de consumo; a preservação do meio ambiente; as questões envolvendo direitos sociais, etc., são questões que merecem ser discutidas judicialmente, na medida em que aquilo que foi projetado pela Constituição e pelas leis apresentar-se na forma de descumprimento.
De todo modo, o bom funcionamento do sistema político tende a controlar os índices da judicialização.
O ativismo, por outro lado, está situado dentro do Direito — no âmbito interpretativo, da decisão judicial — mas, paradoxalmente, também está fora, na medida em que a estrita dependência em torno daquilo que o juiz pensa, entende ou deseja no julgamento de uma determinada questão judicializável, pode levar à suspensão do direito vigente, criando fissuras na institucionalidade, desenvolvendo figuras típicas de um Estado de Exceção. Por isso, o modo de controlá-lo deve ser aferido no âmbito da própria interpretação do Direito, sendo, por isso, um problema a ser enfrentado pela hermenêutica jurídica.
Na falta de efetivação de um direito fundamental, o Judiciário, se provocado, evidentemente, está autorizado a agir para concretizá-lo. O problema está no excesso. Como dizia Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo — o nosso filósofo do Sertão: “Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.”
Uma anotação final
O discurso sobre a judicialização e o ativismo assume uma conotação de cautela. Não se trata de apequenar as estratégicas funções atribuídas ao Judiciário em um Estado Democrático de Direito. Trata-se de afirmar a autonomia e independência do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, olhar de soslaio para o desempenho de suas atividades, analisando na cadeia de integridade entre suas decisões e efetuando os devidos “constrangimentos epistemológicos”, nos termos propalados por Lenio Streck[8].
Vou encerrar as reflexões de hoje de um jeito incomum, mas que, no entanto, diz muito a respeito das questões aqui levantadas. Quando da criação do Supremo Tribunal Federal, Rui Barbosa — partidário daquilo que se enunciava, inspirado no modelo político estadunidense, como uma “democracia judicialista” — fez uma entusiasmada defesa acerca da grandeza das atribuições da Alta Corte. Os argumentos podem ser tidos como afirmações da autonomia e independência do Poder Judiciário e foram retirados da obra de Raymundo Faoro, Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio:
“Formulando para nossa pátria o pacto de regionalização nacional, sabíamos que os povos não amam as suas Constituições senão pela segurança das liberdades que elas lhes prometam; mas que as Constituições, entregues como ficam, ao arbítrio do Parlamento e à ambição dos governos, bem frágil anteparo oferecem a essas liberdades, e acabam quase sempre, e quase sempre se desmoralizam pelas invasões graduais ou violentas do poder que representa a legislação e do poder que representa a força. Nós, os fundadores da Constituição, não queríamos que a liberdade individual pudesse ser diminuída pela força, nem mesmo pela lei. E por isto, fizemos deste tribunal (o Supremo Tribunal Federal) o sacrário da Constituição, demos-lhe a guarda da sua hermenêutica, pusemo-lo como um veto permanente aos sofismas opressores das razões de Estado, resumimos-lhe a função específica nesta ideia”.[9]
Anos depois, já em vigor a Constituição Republicana e em atividade o Supremo Tribunal Federal, Rui Barbosa voltou a tecer considerações sobre a atividade da Corte. As palavras, dessa vez, não refletiram entusiasmo ou condescendência. Ao contrário, soaram como uma veemente admoestação contra certo tipo conservador de ativismo desempenhado pelo Supremo Tribunal:
“O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de temor, quando, exatamente, mais necessitada estava ela da lealdade, da fidelidade e da coragem dos seus defensores. (...) Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde.” [10]
Acautelar-se; confiar desconfiando: eis as palavras de ordem!
[1]
A obra referida, provavelmente, é a seguinte: TATE, Chester Neal;
VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of Judicial Power: the
judicialization of politics. In: ______ (Orgs.). The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995.
[2] Para aprofundada análise a respeito de tais fenômenos e sua (necessária) diferenciação, Cf. TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: Limites da Atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, passim.
[3] Nesse sentido, Cf. HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. In Revista de Direito Administrativo, n. 251, maio/agosto de 2009, pp. 139-175.
[4] Cf. GARAPON, Antoine. O Guardador de Promessas. Justiça e Democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 41.
[5] Idem, Ibidem, p. 42.
[6] GARAPON, Antoine. op., cit., p. 46.
[7] GARAPON, Antoine. op., cit., p. 54 (grifei).
[8] Cf. STRECK, Lenio Luiz. O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, passim.
[9] Cf. Faoro, Raymundo. Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio. 4 ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001, pp.76/77.
[10] Idem, ibidem.
Rafael Tomaz de Oliveira é mestre e doutorando em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 1º de dezembro de 2012
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