segunda-feira, 8 de abril de 2013

Legislações divergentes: civil e miliar



Correio Braziliense, 7 de abril de 2013.
Legislações divergentes, punições mais brandas


A morte do estudante José Chaves Alves Pereira, 27 anos, após uma operação desastrada da Polícia Militar, na madrugada da última quinta-feira, levanta a discussão sobre as penas aplicadas a membros da corporação nos casos em que as vítimas são civis inocentes. Juristas e representantes do Ministério Público criticam o fato de, em uma sociedade democrática, militares terem julgamento diferenciado dentro de um código penal diverso, o que sempre acaba resultando em punições mais brandas pelos delitos praticados por homens de farda. As penas não ultrapassam os 4 anos de prisão, tempo que permite que as sentenças sejam cumpridas fora da cadeia. No Código Penal Civil, a punição para homicídio chega a 20 anos de reclusão em regime fechado.
Incongruências entre as normas da Constituição Federal, do Código Penal Civil e do Código Penal Militar criam brechas e dificuldades nos julgamentos de casos de homicídios de pessoas comuns durante operações policiais. Para o titular da Promotoria Militar do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Nísio Tostes (veja entrevista na página 24), as diferenças na legislação tornam as denúncias de casos como o do estudante trabalhos mais complicados dentro da Justiça brasileira. "Dependendo do inquérito, o militar pode ser julgado pela justiça civil, pela justiça militar e até pela legislação militar dentro de um tribunal civil", explica.
Para determinar se o caso policial será avaliado dentro da lei civil ou da militar, é necessário que a investigação responda a uma série de questões sobre a morte do estudante, como onde o PM mirou antes de apertar o gatilho. Uma emenda à Constituição Federal (nº 45/2004) determinou que crimes de militares contra civis devem ser julgados de acordo com a legislação civil, se comprovada a intenção de matar. "O problema é afirmar que um policial quis matar um civil. Se uma pessoa comum carrega uma arma sem permissão, já pode ser considerado que ele assumiu o risco de matar alguém. Mas, para um policial, principalmente militar, é o governo que entrega a arma e dá a ele o dever de defender a sociedade com esse instrumento", explica o promotor. Com a dificuldade de qualificar homicídios em operações policiais como dolosos — quando há intenção de matar —, os casos geralmente são julgados como crimes culposos. Assim, os militares escapam do júri popular e da legislação civil e a pena máxima despenca de 20 anos para 4.
Para Evandro Piza Duarte, especialista em direito penal da Universidade Brasília, é preciso acabar com as possibilidades de um militar ter um julgamento dentro de leis diferentes ao tirar a vida de um civil. "Em países democráticos, é necessário que a justiça militar tenha a competência restrita a crimes contra o próprio órgão militar e crimes de militares contra militares. Por conta da tradição histórica do Brasil, a competência da justiça militar acabou sendo ampliada demais", afirma.

Ultrapassado
O Código Penal Militar passou por pouquíssimas mudanças desde sua criação, em 1968. "Ele não é estudado nem mesmo nas universidades. Desatualizado, acaba tornando possíveis as penas mais leves", explica Nísio Tostes. Para o criminalista Márcio Gesteira Palma, a falta de conhecimento da população sobre a existência de um código penal diverso para as carreiras militares permite que as leis criadas durante o período ditatorial continuem valendo. "As mudanças nas normas penais normalmente surgem atrasadas em relação aos anseios da sociedade. Por exemplo, a recente regulamentação dos crimes de invasão de e-mail. Primeiro, a sociedade cobra, depois, os legisladores alteram as normas. O Código Penal Militar não sofre tanta pressão, as leis ficam sedimentadas por só interessarem aos próprios órgãos militares", afirma Palma.
Após episódios como a morte do estudante, são abertos dois inquéritos para apurar as circunstâncias do homicídio, um na Polícia Civil e outro na Polícia Militar. "Como são órgãos diferentes, os processos são diferentes. Os dois chegam ao Ministério Público e à Justiça para interpretação", explica Tostes. Apesar de policiais e bombeiros militares estarem, em um primeiro momento, sujeitos à legislação penal militar, eles não são julgados no Supremo Tribunal Militar (STM) e, sim, em uma vara especial dentro do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). "Ou seja, eles são investigados por civis, no caso da apuração das delegacias, denunciados por civis do Ministério Público e julgados por um juiz civil, mas dentro de uma legislação militar", explica o promotor. Indiferente ao futuro processo criminal, a apuração na Corregedoria da Polícia Militar pode definir, dentro de suas normas, o afastamento e até a exoneração dos policiais envolvidos no caso.
"Em países democráticos, é necessário que a justiça militar tenha a competência restrita a crimes contra o próprio órgão militar e crimes de militares contra militares. Por conta da tradição histórica do Brasil, a competência da justiça militar acabou sendo ampliada demais"
Evandro Piza Duarte, especialista em direito penal da Universidade Brasília


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