Em sessão tensa, deputados falam de ‘leilão’ de mandatos e comparam Congresso a um ‘bordel’
Sem nenhum alerta especial à audiência, a TV Câmara transmitiu na
noite passada uma programação imprópria para menores. E para maiores
também. Os deputados discutiam um projeto que dificulta o nascimento de
novos partidos. Empurrada pela mão invisível do Planalto, a proposta
escalou a pauta de votações de sopetão. Seguiu-se um embate
pornográfico.
Líder do PR, Anthony Garotinho escalou a tribuna para defender a
proposta. A gravidade das declarações não ornava com a tranquilidade do
orador. Há um “leilão” de mandatos parlamentares na Câmara, acusou
Garotinho. “A primeira vítima foi o DEM. Quem serão as próximas vítimas?
Precisamos coibir o aliciamento de deputados.”
O líder do PPS, Roberto Freire (PE), correu para o microfone de
apartes. “A denúncia é grave. Exatamente por denúncias desse tipo, o
Brasil viveu o processo por compra de deputados que está próximo do
final, com a previsão de cadeia para figuras importantes da República
dos tempos de Lula. Essa Casa não aguenta outro mensalão.”
Ex-presidente do DEM, Rodrigo Maia (RJ) ecoou Garotinho. “Meu partido
foi estuprado”, disse, referindo-se ao rombo aberto com a debandada
rumo ao PSD do ex-prefeito paulistano Gilberto Kassab. Primeiro, Kassab
levou os quadros do DEM. Depois, por decisão do TSE, corroborada pelo
STF, levou um pedaço do cofre (fundo partidário) e outro da vitrine
(tempo de tevê).
Sem
travas na língua, Silvio Costa (PTB-PE) abriu sua intervenção com um
aviso: “Eu não sou como Garotinho, que fala oração sem sujeito.” O
plenário pôs-se em alerta. “Se tem uma CPI que eu assinaria com o maior
prazer, seria a CPI do fundo partidário. Mas sei que jamais vou
conseguir.” A frase requer tradução. CPI: escândalo na área. Fundo
partidário: verba pública. “Jamais vou conseguir”: ninguém quer
atrapalhar a suruba com investigação.
Dono de estilo teatral, Silvio Costa olha para a câmera: “O senhor e a
senhora que nos assistem, prestem atenção. O Tesouro gasta R$ 350
milhões por ano com o fundo partidário.” É desse fundo que vem o
dinheiro para o custeio dos partidos –do aluguel de prédios à folha de
salários. Didático, Silvio prossegue: “Existem pequenos partidos que não
têm aqui nenhum deputado. Mas recebem R$ 3 milhões de fundo
partidário.”
Abra-se um parêntese para explicar: uma pequena parcela do fundo (5%)
é rateada entre os partidos de forma igualitária. Os restantes 95% são
divididos conforme o número de deputados federais eleitos na última
eleição. Quanto maior a bancada, mais gorda a coleta.
No caso do PSD, a Justiça decidiu que os deputados que migraram para a
legenda tinham o direito de carregar os votos obtidos em 2010. Junto
com esses votos, levaram o equivalente em dinheiro do fundo e do tempo
de tevê. Ficou entendido que cada deputado traz na testa um código de
barras com o valor do seu passe. Fecha parênteses.
Atento ao discurso de Silvio Costa, Garotinho cobrava uma oração com
sujeito. “Os nomes, os nomes”, dizia. E o orador: “Ontem, tinha um dono
de novo partido aqui. Ele dizia o seguinte: ‘Já consegui 700 mil
assinaturas [a lei exige cerca de 500 mil rubricas para criação de uma
legenda]. Vou dar entrada [no TSE] na próxima semana. Se eu botar 20 a
30 deputados no partido, vou ter R$ 4 milhões de fundo partidário por
ano’.” E Silvio: “Isso virou uma indústria.” Garotinho insistia: “Os
nomes…”
Silvio Costa seguiu adiante: “O projeto que estamos discutindo aqui
não proíbe ninguém de criar partido. Mas não vai levar nem o tempo de
televisão nem o fundo partidário. O que eu vi ontem aqui me deu
vergonha. Dois meninotes, cara de maloque, vão botar 20 a 30 deputados
no partido. Isso é pilantragem”.
Como Garotinho insistisse em cobrar “os nomes”, Silvio Costa decidiu
atendê-lo parcialmente: “Vou dizer os nomes”. Um frisson correu o
plenário. A mesa ameaçou cortar o som do microfone. “Vou dizer. E quem
quiser que me processe”. Nesse-diz-não-diz o deputado terminou dizendo
apenas uma sigla: “É POS, Partido da Ordem Social.”
Ao observar o rumo da prosa, Espiridião Amin (PP-SC) mandou buscar um
livro na biblioteca da Câmara. “Os Credores do Mundo”, eis o nome da
obra. Amin leu frase atribuída a um assessor econômico de John Kennedy,
crítico do modo como os EUA exigiam de nações subdesenvolvidas o
cumprimento das regras do FMI.
Amin deu voz ao ex-auxiliar de Kennedy: “Ao pregar ortodoxia fiscal,
nós, dos EUA, ficamos mais ou menos na situação da prostituta que, tendo
se aposentado com o dinheiro que ganhou, acha que a virtude pública
exige o fechamento da zona.” Amin concluiu, agora com suas próprias
palavras: “Nós, com a votação desse texto que prega a ortodoxia
eleitoral— estaremos fechando o mercado. Ou a Zona. Por isso, recomendo à
minha bancada o voto ‘sim’.”
Roberto Freire abespinhou-se. Referindo-se ao PSD, partido criado por
Kassab sob estímulos do Planalto, o líder do PPS foi à jugular: “Quando
o Bordel era para as prostitutas do governo, ficou aberto. Agora, o
Espiridião quer dar uma de moralista. Como a Dilma e o Lula têm medo do
que pode acontecer do ponto de vista politico, fechemos o bordel. Não
concordo com essa terminologia. Essa Casa não é bordel. É um poder e
merece respeito.”
Presidente do PPS, Freire comandará neste final de semana um encontro
nacional de sua legenda. Estava entendido que o PPS firmaria com o
nanico PMN um acordo que resultaria na fusão das duas legendas. O nome
seria trocado. E haveria na praça um novo partido, apto a receber
políticos de outras agremiações sem o risco de perda dos mandatos.
Como o PPS prepara-se para enganchar o seu futuro à candidatura
presidencial do emergente Eduardo Campos, estima-se que o cheiro de
“novo” teria potencial para seduzir algo como duas ou três dezenas de
parlamentares –com suas respectivas cotas de fundo partidário e de
propaganda televisiva. O planalto decidiu levar o pé à porta.
Além do PPS, a manobra do governo inibe a formação da Rede, a nova
legenda que Marina Silva tenta fundar. Envolvidos no projeto, os
deputados Walter Feldeman, momentaneamente no PSDB, e Alfredo Sirkis,
que faz as malas no PV, queixaram-se da “casuística” troca de regras no
meio do jogo.
Falando em nome do PSOL, Chico Alencar resumiu a encrenca no idioma
dos puteiros. “É evidente que aqui, para continuar nessa linguagem não
muito feliz do borded e da zona, o que vai se estabelecer é o seguinte:
quem comeu comeu, quem nao comeu não come mais.”
Foi a voto um pedido de urgência para a tramitação do projeto. A
“urgência”é essencial para que o texto possa furar a fila dos demais
projetos. Para que o requerimento passasse, eram necessários pelo menos
257. Eis o placar: 247 a favor, 20 contra e 9 abstenções.
Faltaram dez votos para que os empata-partidos prevalecessem. O
projeto voltará à pauta na semana que vem. Para desassossego de Marina
Silva e dos potenciais aliados de Eduardo Campos, não são
negligenciáveis as chances de aprovação. Agora pelo menos a platéia já
está avisada de que precisa tirar as crianças da sala.
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