Comissão da Verdade descumpre a lei
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Eliézer Rizzo de Oliveira
A
Comissão Nacional da Verdade é muito relevante na construção da memória
e da verdade histórica do nosso país. A Lei n.° 12.528, de 18 de
novembro de 2011, aprovada pelo voto unânime de lideranças na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal, define, no artigo ".°, a sua finalidade:
"Examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos
praticadas no período fixado no artigo 8.° do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à
verdade histórica e promover a reconciliação nacional".
Os
objetivos da lei (artigo 3.°) detalham a finalidade geral. E, a exemplo
desta, não contêm restrições quanto aos sujeitos e às organizações a
serem pesquisados. A única limitação é temporal: as datas de promulgação
das Constituições que inauguram os regimes democráticos de 1946 e 1988.
Portanto, a Comissão da Verdade é obrigada a investigar os âmbitos da
sociedade e do Estado, os dois lados no tocante ao regime militar, seu
foco central, mas não exclusivo. Ou seja, os delitos contra os direitos
humanos cometidos por agentes públicos - policiais, militares, juizes,
promotores, etc. - e também os delitos do mesmo tipo cometidos por
atores da sociedade que combateram o regime militar, mas igualmente os
que o apoiaram.
Onde
ocorreu tal violação dos direitos humanos, lá deve operar a
investigação histórica. Somente o cumprimento dessa obrigação legal
possibilitará à Comissão da Verdade elaborar um "relatório
circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados,
as conclusões e recomendações" (artigo 11) tão verdadeiro quanto
possível, uma contribuição efetiva para a construção de uma cultura de
paz e dos direitos humanos, no respeito à Lei da Anistia de 1979 (artigo
6.°) e à deliberação do Supremo Tribunal Federal de 2010. Para tanto é
indispensável abrir todos os arquivos, convocar pessoas de todos os
espectros a fim de contribuírem para o esclarecimento da violência
política.
Entretanto,
a Comissão da Verdade afastou-se da obrigarão legal ao adotar a
Resolução n.° 2, de 20 de agosto de 2012, de modo a investigar
exclusivamente as "graves violações de direitos humanos praticadas (...)
por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse
do Estado". Em conseqüência, a sua vontade política se sobrepõe à
vontade política do governo federal e do Poder Legislativo.
É
discutível tal autonomia. Recentemente, foi ampliado o número de
assessores da Comissão da Verdade mediante decreto presidencial, uma vez
que a comissão não poderia fazê-lo por conta própria. Que dirá
modificar a sua finalidade!
Dois argumentos frágeis foram empregados para justificar essa inflexão na finalidade da Comissão da Verdade.
O
primeiro afirma que nenhuma comissão do mundo teria examinado os dois
lados. Simplesmente não é verdade. Se a da Argentina se dedicou ao tema
exclusivo dos desaparecidos, certamente em razão da sua gravidade, houve
comissões que enfocaram os lados opostos dos conflitos sangrentos, como
ocorreu na África do Sul, no Chile, no Peme na Guatemala. Fiquemos com o
exemplar Relatório Rettig, produzido pela comissão chilena, que
analisou as estruturas, as ideologias, os tipos de ações criminosas
contra os direitos humanos de autoria de agentes públicos e de agentes
privados, das Forças Armadas e também dos partidos armados, tendo
apontado as vítimas e as condições de seu padecimento, tanto de um lado
como de outro.
O
segundo argumento diz que os delitos cometidos pelas esquerdas não
precisam ser investigados porque são conhecidos e os seus autores foram
punidos. Verdade parcial, já que muitos foram julgados, punidos e
anistiados. Seus atos não são, assim, do domínio histórico e público.
O
que é mais conhecido é a repressão policial e militar - ilegal sempre,
clandestina com frequência -, que produziu vítimas em número muito maior
do que foram as vítimas das ações dos grupos armados de esquerda e de
direita. Estruturas estatais foram criadas ou adaptadas para reprimir e
matar, métodos provenientes do exterior associaram-se a práticas
nacionais de tortura contra pessoas detidas e imobilizadas.
Os
milhares de crimes da ditadura são execráveis e hediondos. Devem ser
revelados os seus autores - inclusive os seus cúmplices da sociedade -,
as suas estruturas e os seus métodos, bem como as suas vitimas. O
terrorismo de Estado que vigorou entre nós, com trágicos resultados,
fazendo lembrar o nazismo, desonrou a farda dos que tinham a missão
constitucional da defesa nacional. A honra militar somente foi
recomposta na democracia.
Milhares
de opositores combateram o regime militar com a arma da convicção, da
solidariedade, da organização da sociedade com métodos pacíficos. E
houve militantes de grupos revolucionários de esquerda que assaltaram
bancos, seqüestraram, promoveram atentados terroristas, mataram sem
possibilidade de reação das vítimas. Seus delitos contra os direitos
humanos, as estruturas e as ideologias de suas organizações, o nome dos
autores e de suas vítimas, tudo isso devé ser investigado e esclarecido
pela Comissão da Verdade.
Pois
bem, qual o motivo da Comissão da Verdade para adotar a investigação
unidirecional e ilegal? O motivo é político: a perspectiva de revisão da
anistia, objetivo estratégico do III Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3), com o propósito de julgar e punir agentes públicos da
repressão. Pois não seria válida a Lei da Anistia nos termos da Justiça
de Transição e de deliberações judiciais internacionais.
É a isso que se presta a Resolução n.° 2, com suas conseqüências. Esse é o papel da Comissão da Verdade.
Em outras palavras, trata-se de refundar o Estado Democrático de Direito.
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segunda-feira, 8 de abril de 2013
Comissão da Verdade descumpre a lei
O Estado de S. Paulo, 8 de abril de 2013.
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