Diário de Classe
PEC da Submissão representa anticontrole da Constituição
Primeiro,
veio a tal PEC 37, que pretende pôr fim à investigação do Ministério
Público. Depois, a lei que proibiu as universidades federais a exigir os
títulos de mestre e doutor nos concursos docentes. Agora, a Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou a
Proposta de Emenda à Constituição 33/2011, de autoria do deputado
Nazareno Fonteles (PT-PI), aumentando ainda mais a tensão instalada
entre os poderes da República.
Tal qual a PEC 3/2011 — de autoria do mesmo deputado, que pretende alterar o inciso V do artigo 49 da Constituição para permitir que o Congresso Nacional possa sustar atos normativos de “outros poderes” que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (atente-se para não incorrer na mesma confusão feita recentemente por Alexandre de Moraes, aqui na ConJur) —, a PEC 33/11 visa ao engessamento do Poder Judiciário, na medida em que subverte/aniquila o atual sistema brasileiro de constitucionalidade das leis — seja no controle difuso, seja no concentrado — restringindo sensivelmente a competência originária do Supremo Tribunal Federal (clique aqui para ler sobre o assunto).
Além de elevar o quórum exigido para a declaração de inconstitucionalidade no plenário dos tribunais (artigo 97), a referida PEC também submete as súmulas vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal ao referendo do Congresso Nacional.
Como se isto não bastasse, a PEC estabelece que as decisões proferidas pelo STF, em sede de ADI, acerca da inconstitucionalidade de emendas constitucionais deverão ser encaminhadas para chancela do Congresso Nacional. Caso este se manifeste contrário à decisão, no prazo de 90 dias, a controvérsia deverá ser submetida à consulta popular. Outrossim, fica vedada a suspensão da eficácia de emenda à Constituição através de medida cautelar.
A admissibilidade da PEC foi “inusitada” e “surpreendeu a todos”, conforme reconheceu o próprio Presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves, causando polêmica entre os parlamentares desde então. O deputado informou à imprensa que pedirá estudo preliminar e que não instalará comissão especial para examinar a PEC, enquanto não houver respeito e harmonia entre os poderes.
Após os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes criticarem abertamente a PEC 33/11 (clique aqui para ler), o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) impetrou mandado de segurança no STF, a fim de suspender sua tramitação por manifesta violação à cláusula pétrea relativa à separação dos poderes.
Na justificativa da PEC, seu autor esclarece que sua motivação resulta do protagonismo alcançado pelo Poder Judiciário, que assume dois contornos distintos na atualidade: a “judicialização das relações sociais” e o “ativismo judicial”. Segundo o deputado Nazareno Fonteles, o sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil é “um dos mais abrangentes do mundo”. Tal fato permite que os juízes, ao decidirem, ultrapassem os limites do caso concreto, “criando normas que não passaram pelo escrutínio do legislador”. O problema se agrava, a seu ver, quando se trata das decisões tomadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, que “vem se tornando um superlegislativo” e, assim, prejudicando a realização da democracia.
O mesmo argumento também foi retomado pelo relator, deputado João Campos (PSDB-GO), em cujo parecer destacou que “a quadra atual é, sem dúvida, de exacerbado ativismo judicial”. Para ele, a PEC traz maior legitimidade e equanimidade ao controle de constitucionalidade, evitando-se, assim, a hipertrofia dos poderes da Suprema Corte.
Muito embora o remédio formulado na PEC 33 implique nítido retrocesso institucional, é preciso reconhecer que o diagnóstico formulado — os desafios resultantes do fenômeno da judicialização da política aliado ao crescimento de um ativismo judicial sui generis — mostra-se preciso, além de constituir um dos principais pontos de interseção entre o direito constitucional e a teoria e a Filosofia do Direito.
Registre-se, nesse sentido, que este Diário de Classe tem abordado frequentemente as questões problematizadas pela PEC: o invencionismo hermenêutico do STF (leia aqui), a distinção entre ativismo judicial e judicialização da política (leia aqui), o juiz que aboliu o regime aberto através de portaria (leia aqui), entre outras.
De todo modo, ao contrário dos discursos parlamentares proferidos em defesa da “subordinação” do STF, é importante deixar claro que, nesta quadra da história, é impossível negar o elevado grau de autonomia do Direito frente à política (e à economia e, também, à moral), alcançado sobretudo a partir do paradigma do constitucionalismo do segundo pós-guerra, em face dos históricos fracassos da falta de controle da e sobre a política, conforme as lições de Luigi Ferrajoli e Lenio Streck.
Não é à toa que, ao ler a notícia, me lembrei, imediatamente, de nossa Constituição do Império — inspirada no modelo liberal francês, marcado pelo caráter antijudiciário resultante da revolução francesa —, em que a guarda da Constituição era atribuição da Assembléia Geral (artigo 15, inciso IX).
O mesmo tipo de intervenção adveio no Estado Novo, quando a Constituição de 1937 — a Polaca, redigida por Francisco Campos — instituiu o chamado “anticontrole” de constitucionalidade, permitindo ao presidente da República, Getúlio Vargas, “derrubar” no Congresso Nacional as decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (artigo 96, parágrafo único).
Todavia, considerando que, no constitucionalismo democrático brasileiro, a guarda da Constituição é atribuição do Supremo Tribunal Federal, a PEC 33 é flagrantemente inconstitucional, eis que violadora o artigo 60, parágrafo 4º, incisos III e IV, da Constituição da República, segundo o qual “não será objeto de deliberação” a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais.
Destaque-se, ainda, que a proposta do deputado Nazareno Fonteles institui a “subordinação” do Supremo Tribunal Federal ao Congresso Nacional. Esta nova relação revelaria, ao fim e ao cabo, uma hierarquia entre os poderes — e, aqui, é onde reside o problema —, na medida em que as decisões da Corte Suprema poderiam ser revisadas pela vontade do legislador. Além disso, a referida PEC coloca em xeque outro garantia fundamental expressa no texto constitucional: a coisa julgada!
Como sempre refere Marcelo Cattoni, o fato de criticarmos o ativismo judicial e/ou discordarmos dos abusos verificados na jurisprudência constitucional não deve nos levar a ser contra a instituição Supremo Tribunal Federal, mas a lutar pela sua mudança e, sobretudo, pela democratização no processo de nomeação de seus ministros.
No fundo, parece que retornamos, mais uma vez, ao velho debate travado entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, no início do século XX, acerca de quem deve ser o guardião da constituição. Não podemos esquecer, contudo, que a tese kelseniana resultou vencedora e seus efeitos se mostraram determinantes tanto à evolução das teorias jurídicas contemporâneas quanto à jurisdição constitucional, em todo o mundo.
Afinal, se é verdade que o Poder Judiciário não deve assumir o papel de protagonista no cenário do Estado Democrático de Direito, isto não significa que ele possa ser rebaixado à condição — subordinada — de mero figurante.
Tal qual a PEC 3/2011 — de autoria do mesmo deputado, que pretende alterar o inciso V do artigo 49 da Constituição para permitir que o Congresso Nacional possa sustar atos normativos de “outros poderes” que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (atente-se para não incorrer na mesma confusão feita recentemente por Alexandre de Moraes, aqui na ConJur) —, a PEC 33/11 visa ao engessamento do Poder Judiciário, na medida em que subverte/aniquila o atual sistema brasileiro de constitucionalidade das leis — seja no controle difuso, seja no concentrado — restringindo sensivelmente a competência originária do Supremo Tribunal Federal (clique aqui para ler sobre o assunto).
Além de elevar o quórum exigido para a declaração de inconstitucionalidade no plenário dos tribunais (artigo 97), a referida PEC também submete as súmulas vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal ao referendo do Congresso Nacional.
Como se isto não bastasse, a PEC estabelece que as decisões proferidas pelo STF, em sede de ADI, acerca da inconstitucionalidade de emendas constitucionais deverão ser encaminhadas para chancela do Congresso Nacional. Caso este se manifeste contrário à decisão, no prazo de 90 dias, a controvérsia deverá ser submetida à consulta popular. Outrossim, fica vedada a suspensão da eficácia de emenda à Constituição através de medida cautelar.
A admissibilidade da PEC foi “inusitada” e “surpreendeu a todos”, conforme reconheceu o próprio Presidente da Câmara, deputado Henrique Eduardo Alves, causando polêmica entre os parlamentares desde então. O deputado informou à imprensa que pedirá estudo preliminar e que não instalará comissão especial para examinar a PEC, enquanto não houver respeito e harmonia entre os poderes.
Após os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes criticarem abertamente a PEC 33/11 (clique aqui para ler), o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) impetrou mandado de segurança no STF, a fim de suspender sua tramitação por manifesta violação à cláusula pétrea relativa à separação dos poderes.
Na justificativa da PEC, seu autor esclarece que sua motivação resulta do protagonismo alcançado pelo Poder Judiciário, que assume dois contornos distintos na atualidade: a “judicialização das relações sociais” e o “ativismo judicial”. Segundo o deputado Nazareno Fonteles, o sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil é “um dos mais abrangentes do mundo”. Tal fato permite que os juízes, ao decidirem, ultrapassem os limites do caso concreto, “criando normas que não passaram pelo escrutínio do legislador”. O problema se agrava, a seu ver, quando se trata das decisões tomadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, que “vem se tornando um superlegislativo” e, assim, prejudicando a realização da democracia.
O mesmo argumento também foi retomado pelo relator, deputado João Campos (PSDB-GO), em cujo parecer destacou que “a quadra atual é, sem dúvida, de exacerbado ativismo judicial”. Para ele, a PEC traz maior legitimidade e equanimidade ao controle de constitucionalidade, evitando-se, assim, a hipertrofia dos poderes da Suprema Corte.
Muito embora o remédio formulado na PEC 33 implique nítido retrocesso institucional, é preciso reconhecer que o diagnóstico formulado — os desafios resultantes do fenômeno da judicialização da política aliado ao crescimento de um ativismo judicial sui generis — mostra-se preciso, além de constituir um dos principais pontos de interseção entre o direito constitucional e a teoria e a Filosofia do Direito.
Registre-se, nesse sentido, que este Diário de Classe tem abordado frequentemente as questões problematizadas pela PEC: o invencionismo hermenêutico do STF (leia aqui), a distinção entre ativismo judicial e judicialização da política (leia aqui), o juiz que aboliu o regime aberto através de portaria (leia aqui), entre outras.
De todo modo, ao contrário dos discursos parlamentares proferidos em defesa da “subordinação” do STF, é importante deixar claro que, nesta quadra da história, é impossível negar o elevado grau de autonomia do Direito frente à política (e à economia e, também, à moral), alcançado sobretudo a partir do paradigma do constitucionalismo do segundo pós-guerra, em face dos históricos fracassos da falta de controle da e sobre a política, conforme as lições de Luigi Ferrajoli e Lenio Streck.
Não é à toa que, ao ler a notícia, me lembrei, imediatamente, de nossa Constituição do Império — inspirada no modelo liberal francês, marcado pelo caráter antijudiciário resultante da revolução francesa —, em que a guarda da Constituição era atribuição da Assembléia Geral (artigo 15, inciso IX).
O mesmo tipo de intervenção adveio no Estado Novo, quando a Constituição de 1937 — a Polaca, redigida por Francisco Campos — instituiu o chamado “anticontrole” de constitucionalidade, permitindo ao presidente da República, Getúlio Vargas, “derrubar” no Congresso Nacional as decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (artigo 96, parágrafo único).
Todavia, considerando que, no constitucionalismo democrático brasileiro, a guarda da Constituição é atribuição do Supremo Tribunal Federal, a PEC 33 é flagrantemente inconstitucional, eis que violadora o artigo 60, parágrafo 4º, incisos III e IV, da Constituição da República, segundo o qual “não será objeto de deliberação” a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais.
Destaque-se, ainda, que a proposta do deputado Nazareno Fonteles institui a “subordinação” do Supremo Tribunal Federal ao Congresso Nacional. Esta nova relação revelaria, ao fim e ao cabo, uma hierarquia entre os poderes — e, aqui, é onde reside o problema —, na medida em que as decisões da Corte Suprema poderiam ser revisadas pela vontade do legislador. Além disso, a referida PEC coloca em xeque outro garantia fundamental expressa no texto constitucional: a coisa julgada!
Como sempre refere Marcelo Cattoni, o fato de criticarmos o ativismo judicial e/ou discordarmos dos abusos verificados na jurisprudência constitucional não deve nos levar a ser contra a instituição Supremo Tribunal Federal, mas a lutar pela sua mudança e, sobretudo, pela democratização no processo de nomeação de seus ministros.
No fundo, parece que retornamos, mais uma vez, ao velho debate travado entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, no início do século XX, acerca de quem deve ser o guardião da constituição. Não podemos esquecer, contudo, que a tese kelseniana resultou vencedora e seus efeitos se mostraram determinantes tanto à evolução das teorias jurídicas contemporâneas quanto à jurisdição constitucional, em todo o mundo.
Afinal, se é verdade que o Poder Judiciário não deve assumir o papel de protagonista no cenário do Estado Democrático de Direito, isto não significa que ele possa ser rebaixado à condição — subordinada — de mero figurante.
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 27 de abril de 2013
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