Histórias que assustam a ONU
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15 Abr 2013
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No Brasil, 40% da população carcerária é de presos provisórios, e relatório inédito das Nações Unidas alerta o País para o excesso de detenções ilegais. Muitos desses detentos, inocentes, ficam com sequelas irreversíveisNathalia Ziemkiewicz
Em
2003, o ajudante de pedreiro Heberson Oliveira foi acusado de entrar na
casa de vizinhos na periferia de Manaus, arrastar uma criança para o
quintal e estuprá-la enquanto os pais dormiam. Heberson dizia que, na
noite do crime, estava em outro bairro da cidade. Ninguém acreditou. A
vítima, uma menina de 9 anos, se viu pressionada a reconhecê-lo como
algoz e dar um desfecho ao escândalo. Embora a descrição do suspeito
divergisse das características físicas de Heberson, ele foi para a
cadeia. Lá aguardou julgamento por quase três anos jurando inocência. A
mãe chegou a ser hospitalizada ao receber a notícia. “Com a vida que a
gente levava, não podia garantir que ele nunca roubaria”, diz Socorro
Lima. “Mas não seria capaz de uma coisa dessas.” Dona de casa e
pensionista, ela pegou empréstimos para bancar advogados. Atrás das
grades, o rapaz sem antecedentes criminais assistiu a rebeliões, entrou
em depressão, foi abusado sexualmente e contraiu o vírus HIV.
E
nada de audiência ou sentença. Até que a defensora pública Ilmair
Siqueira assumiu o caso: ela alertou o promotor de que não havia provas
ou testemunhas para acusar seu cliente. O juiz pediu desculpas pela
injustiça e concedeu a liberdade. Mas Heberson nunca mais seria um homem
livre. Tentou um emprego numa loja de materiais de construção e foi
vítima do preconceito entre os próprios colegas, que temiam até beber
água da mesma torneira. Sete anos após sua absolvição, o rapaz permanece
desempregado. Hoje, perambula pelas ruas catando latinhas e consumindo
pedras de oxi. “Eu morri quando me fizeram pagar pelo que não fiz”, diz
Heberson aos 32 anos, explicando por que não toma o coquetel contra a
Aids. “Todos os dias tento esquecer o que vivi”, diz ele, vítima de um
sistema judiciário que também está doente e, segundo as Nações Unidas,
desperta graves preocupações.
No
final de março, peritos do Conselho de Direitos Humanos da ONU
visitaram penitenciárias de cinco capitais brasileiras. O País chama a
atenção pelo acelerado crescimento de sua população carcerária, que
alcançou a quarta posição no ranking mundial. Há 550 mil detentos no
Brasil, número cinco vezes maior que em 1990. O grupo investigou
detenções arbitrárias – ilegais ou desnecessárias. No documento
preliminar entregue às autoridades, os peritos destacaram o uso
excessivo de privação de liberdade e a falta de assistência jurídica
gratuita. Ao contrário do que se preconiza mundo afora, a regra tem sido
punir antes para averiguar depois. Cerca de 40% do total são presos
provisórios, que ainda não receberam sentença.
A
prisão temporária não poderia ultrapassar 120 dias, prazo máximo para
que o processo seja julgado. Mas a morosidade da Justiça é o grande
entrave. O acusado de um furto, por exemplo, leva em média seis meses
para ser ouvido pela primeira vez por um juiz. Nesse período, ele
convive com assassinos e traficantes em ambientes degradantes. “É uma
tortura institucionalizada: falta água para banho e descarga, acesso a
medicamentos e itens de higiene, os presos fazem rodízio porque nem no
chão há espaço para dormir”, afirma Bruno Shimizu, defensor público do
Estado de São Paulo. Não à toa, a taxa de reincidência gira em torno de
80%. “Depois da barbárie na cadeia, o preso sai e desconta sua raiva na
sociedade”, diz Marcos Fuchs, diretor da ONG Conectas. Apesar das taxas
recordes de aprisionamento, os indicadores de criminalidade crescem.
Entre 1990 e 2010, houve um aumento de 63% nos homicídios, segundo o
Ministério da Saúde.
Nos
delitos menores, a legislação recomenda medidas alternativas como o
monitoramento eletrônico, prisão domiciliar, prestação de serviços à
comunidade, etc. Elas desafogariam um sistema com déficit de 240 mil
vagas. Os visitantes da ONU também perceberam que o princípio de
proporcionalidade muitas vezes é ignorado. Em outras palavras, o ladrão
de uma caixa de leite não pode ter sua liberdade condicionada a uma
fiança de três salários mínimos. Ou continuará preso, sem condições de
pagá-la. Além disso, não há defensores públicos para a demanda. Os
Estados de Santa Catarina e Paraná, por exemplo, não têm nenhum. Há
cidades com um defensor para 800 casos, o que torna impossível uma boa
defesa. “Em um país onde a maioria dos presos é pobre, é extremamente
preocupante que não haja assistência jurídica suficiente disponível para
aqueles que precisam”, disse o perito Roberto Garretón. Procurado, o
Ministério da Justiça não quis se pronunciar sobre o documento da ONU,
que será apresentado oficialmente com recomendações ao governo
brasileiro em 2014.
As
vítimas dos erros da Justiça fazem fila por indenizações. Quem vence a
disputa contra o Estado ainda corre o risco de morrer sem o dinheiro, na
longa fila de pagamentos da dívida pública. Desde 2008, Daniele de
Toledo Prado tenta receber uma pensão de três salários mínimos. Ela
ficou 37 dias presa, acusada de matar a filha colocando cocaína na
mamadeira. Daniele foi agredida por 12 colegas de cela que a
reconheceram em uma reportagem na tevê. Entre murros e chutes, sob os
gritos de “monstro”, ela desmaiou e só recebeu atendimento no dia
seguinte. Perdeu visão e audição do lado direito. Aos 28 anos, Daniele
conta que não consegue emprego por causa das deficiências, fruto do
episódio.
O
pó branco era, na verdade, remédio para controlar as crises convulsivas
do bebê. Hoje ela está desempregada e vive com o filho de 10 anos na
casa de parentes. “Para me prender sem provas foi rápido. Agora enfrento
a lentidão para receber algo que sequer vai reparar a minha dor”, diz.
Ao contrário dela, Heberson não pediu indenização porque perdeu a
esperança na Justiça. Preso ao passado, ele acredita que tudo “foi uma
provação de Deus” para testar sua fé. Deitado nas calçadas de Manaus,
ele teme que as memórias o enlouqueçam de fato. “Toda vez que me tratam
feito bicho, penso que não sabem o que já passei...”.
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segunda-feira, 15 de abril de 2013
História que assustam a ONU
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