No
discurso que fez em homenagem ao novo presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Joaquim Barbosa, o também ministro Luiz Fux realizou
uma candente defesa da autonomia do Poder Judiciário. Com a erudição que
lhe é peculiar, disse que a efetivação de direitos fundamentais pelo
Judiciário — principalmente, por meio do Supremo Tribunal Federal — não
representa ingerência deste Poder estatal nos demais. Tais atribuições,
nos termos propalados pelo discurso, fazem parte da agenda de
responsabilidades atribuída ao Judiciário na contemporaneidade.
Esse
traço marcante da fala do ministro foi intensamente mencionado nas
discussões que se seguiram à cerimônia de posse da nova presidência do
Pretório Excelso. De todo modo, não é apenas sobre a independência e a
autonomia do Poder Judiciário que pretendo tratar na coluna de hoje. De
fato, quero lançar luz sobre outro aspecto, igualmente mencionado no
discurso do ministro Fux, mas que acabou ressoando muito pouco na
repercussão que foi dada pela mídia em geral. Quero ressaltar um
aspecto, digamos, mais academicista da fala articulada.
Trata-se
da admoestação feita pelo ministro àquilo que ele nomeou de “certos
nichos acadêmicos”. Em sua fala, revestida de certo tom de censura, o
ministro afirmou que a incisividade atual do Poder Judiciário na vida
social é aclamada por diversos autores da doutrina nacional e
estrangeira — algo que, registre-se, é de duvidosa veracidade — e que
apenas um pequeno grupo de estudiosos (na expressão do ministro, “certos
nichos acadêmicos”) é que se mostra crítica a tal participação do
Judiciário. Esses “nichos acadêmicos” seriam aqueles lugares nos quais
se produzem pesquisas sobre a chamada
judicialização da política.
Para definir
judicialização da política, o ministro chama à colação as lições do cientista político estadunidense Chester Neal Tate
[1]
dizendo que tal fenômeno significa o deslocamento do polo de decisão de
certas questões que tradicionalmente cabiam aos poderes Legislativo e
Executivo para o âmbito do Judiciário.
Logo na sequência, o ministro faz uma dura crítica a tais setores acadêmicos, “partidários” do discurso da
judicialização da política,
ao asseverar que aqueles que criticam o Judiciário por ingressar no
campo das decisões políticas acabam por incorrer em certo vazio
discursivo uma vez que não apresentam, de maneira clara e objetiva,
quais são as linhas demarcatórias desse limite a ser respeitado pelo
Direito com relação à Política.
Vou expor aqui alguns motivos
pelos quais entendo que o ministro não foi totalmente justo com a
apresentação do problema e o respectivo papel da academia no exame
dessas questões.
Em primeiro lugar, no modo como a questão foi
apresentada pelo ministro, somos levados a entender que aqueles que
pesquisam e escrevem sobre a judicialização da política, e que discutem
sobre os limites da atuação do Poder Judiciário, pretendem reduzir o
papel desempenhado pela função jurisdicional em um Estado Democrático de
Direito. Por certo, não é disso que se trata. As análises levadas a
cabo nessa seara de interesses não pretendem, de forma alguma, operar
uma espécie de
capitis deminutio do Poder Judiciário. Aliás, é
um truísmo afirmar a importância assumida pelo Judiciário em um Estado
de Direito. É sobejamente sabido que a ideia de submeter o exercício do
poder político às regras criadas por este mesmo poder, implica
importante papel de controle a ser desempenhado pelo Poder Judiciário
(especialmente em se tratando da história do constitucionalismo na
América Latina, onde a atuação do Judiciário teve papel central no
processo de redemocratização, com o objetivo de se romper com a
experiência vivenciada nos regimes ditatoriais, quando o Executivo tinha
poderes ilimitados).
Na verdade, mais do que simplesmente reduzir
o papel institucional destinado ao Poder Judiciário (que, ao final,
seria uma forma de esconder o problema ao invés de solucioná-lo), a
questão que se coloca na linha de frente das preocupações daqueles que
pesquisam e escrevem sobre a judicialização da política, das relações
sociais e — no limite — da própria vida, é pensar formas de
democratização e legitimação dos atos praticados pelo Poder Judiciário.
Aquilo
que, genericamente, se chama de judicialização da política é mais um
diagnóstico do que, propriamente, um remédio para certo tipo de
patologia. Esse ponto me leva a outro argumento a ser destacado com
relação à fala do ministro. Diz respeito à comum confusão que se faz
entre
judicialização da política e
ativismo judicial.
[2]
Ora,
a judicialização da política representa um conjunto de coisas sob as
quais o Judiciário, simplesmente, não possui controle (esta coluna já
tratou do tema, com outro pressuposto e objetivo. Para ler, clique
aqui). São fatores preexistentes em relação à sua atividade e atuação. São, na verdade,
razões de ordem político-sociais que podem ser pensadas de diversas maneiras. A aglutinação cada vez maior de matérias judicializadas, deve-se, por exemplo, ao
aumento da litigiosidade
e de uma peculiaridade que pode ser observada, em maior ou menor
medida, nos mais diversos países, das mais diversas origens (da Alemanha
aos países do leste europeu
[3]).
Esta
particularidade diz respeito a um imaginário difuso que tende a
enxergar no Judiciário o lugar legítimo para se discutir questões que,
antes, eram debatidas no âmbito político (Legislativo e Executivo).
Muitos fatores contribuem para isso, desde o desprestígio dos agentes
públicos (que cada vez mais aparecem como protagonistas de casos de
corrupção), passando pelo discurso retumbante da eficácia dos direitos
fundamentais e desaguando no fato de que, de forma cada vez mais
evidente, “o juiz (melhor seria dizer: o Judiciário — acrescentamos)
passa a ser uma referência da ação política”
[4].
Esse
último fator anotado repercute no nível da cultura, produzindo um
interessante fenômeno de transformação em algo que podemos chamar de
“semântica da política”: vale dizer, com Antoine Garapon, a
judicialização passa a oferecer para a democracia um “novo vocabulário:
imparcialidade,
processo,
transparência,
contraditório,
neutralidade,
argumentação,
etc. O juiz — e a constelação de representações que gravitam à sua
volta — confere à democracia as imagens capazes de dar forma a uma nova
ética da deliberação coletiva”
[5].
O
autor francês identifica, nessa faceta da manifestação social, um tipo
degenerado de democracia que tende a se legitimar a partir da
perspectiva de que a possibilidade de o próprio indivíduo poder buscar a
tutela jurisdicional na defesa de seus interesses juridicamente
protegidos representaria um tipo de democracia direta (que,
pretensamente, estaria livre dos desvios éticos a que está sujeito o
processo político baseado no tradicional modelo representativo de
democracia). Nas palavras de Garapon: “O debate judicial individualiza
os desafios: a dimensão coletiva existe, mas de forma incidente. Visa um
compromisso mais solitário do que solidário. Através dessa forma direta
de democracia, o cidadão litigante tem a sensação de dominar melhor a
sua representação.”
[6]
Portanto,
fica evidenciado que a judicialização é um fenômeno que independe dos
desejos ou da vontade dos membros do Poder Judiciário. A judicialização,
na verdade, é um fenômeno que está envolvido por uma transformação
cultural profunda pela qual passaram os países que se organizam
politicamente em torno do regime democrático.
Ademais, há fatores
políticos que condicionam o grau de judicialização vivenciado por uma
dada sociedade. Dentre esses fatores, podemos mencionar:
a) o grau de (in)efetividade dos direitos fundamentais (núcleo compromissório da Constituição);
b) o nível de profusão legislativa com o consequente aumento da regulamentação social;
c)
o nível de litigiosidade que se observa em cada sociedade. Na medida em
que aumentam os indicadores de inefetividade dos Direitos Fundamentais,
os índices de produção legislativa, e da litigiosidade social, também
aumentará o nível de judicialização.
Já o ativismo possui uma raiz
completamente diversa. Este, sim, liga-se a um desejo do órgão
judicante com relação à possibilidade de alteração dos contextos
político-sociais. Pode ser conservador ou progressista. No final, o
resultado é o mesmo: o Judiciário agindo por motivos de convicção e
crença pessoal do magistrado, e não em face da moralidade instituidora
da comunidade política.
Podemos encontrar, novamente em Garapon, um socorro para melhor definir o conceito: “o
ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis,
a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar”
[7].
Portanto,
é importante não confundir alhos com bugalhos: Judicialização é uma
coisa; ativismo judicial é outra. A consequência da excessiva
judicialização pode ser um aumento das decisões ativistas. Mas — e esse é
o ponto fulcral — mesmo sem judicialização, podemos ter decisões
ativistas. Na raiz, os fenômenos são distintos. De todo modo, o aumento
da judicialização opera, como contrapartida, um aumento da
responsabilidade no julgamento.
É importante percebermos isso
porque os remédios para controlar uma ou outra patologia serão
completamente diferentes, porque as causas dos fenômenos são, elas
mesmas, absolutamente distintas: a judicialização não representa um
mal em si.
Ela pode se tornar inconveniente quando encontrada em níveis elevados,
mas se mostra necessária em vários âmbitos que caracterizam a sociedade
contemporânea. As relações de consumo; a preservação do meio ambiente;
as questões envolvendo direitos sociais, etc., são questões que merecem
ser discutidas judicialmente, na medida em que aquilo que foi projetado
pela Constituição e pelas leis apresentar-se na forma de descumprimento.
De todo modo, o bom funcionamento do sistema político tende a controlar os índices da judicialização.
O
ativismo, por outro lado, está situado dentro do Direito — no âmbito
interpretativo, da decisão judicial — mas, paradoxalmente, também está
fora, na medida em que a estrita dependência em torno daquilo que o juiz
pensa, entende ou deseja no julgamento de uma determinada questão
judicializável, pode levar à suspensão do direito vigente, criando
fissuras na institucionalidade, desenvolvendo figuras típicas de um
Estado de Exceção. Por isso, o modo de controlá-lo deve ser aferido no
âmbito da própria interpretação do Direito, sendo, por isso, um problema
a ser enfrentado pela hermenêutica jurídica.
Na falta de
efetivação de um direito fundamental, o Judiciário, se provocado,
evidentemente, está autorizado a agir para concretizá-lo. O problema
está no excesso. Como dizia Guimarães Rosa, pela boca de Riobaldo — o
nosso filósofo do Sertão: “Querer o bem com demais força, de incerto
jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.”
Uma anotação final
O discurso sobre a judicialização e o ativismo assume uma
conotação de cautela. Não se trata de apequenar as estratégicas funções
atribuídas ao Judiciário em um Estado Democrático de Direito. Trata-se
de afirmar a autonomia e independência do Poder Judiciário e, ao mesmo
tempo, olhar de soslaio para o desempenho de suas atividades, analisando
na cadeia de integridade entre suas decisões e efetuando os devidos
“constrangimentos epistemológicos”, nos termos propalados por Lenio
Streck
[8].
Vou
encerrar as reflexões de hoje de um jeito incomum, mas que, no entanto,
diz muito a respeito das questões aqui levantadas. Quando da criação do
Supremo Tribunal Federal, Rui Barbosa — partidário daquilo que se
enunciava, inspirado no modelo político estadunidense, como uma
“democracia judicialista” — fez uma entusiasmada defesa acerca da
grandeza das atribuições da Alta Corte. Os argumentos podem ser tidos
como afirmações da autonomia e independência do Poder Judiciário e foram
retirados da obra de Raymundo Faoro,
Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio:
“Formulando
para nossa pátria o pacto de regionalização nacional, sabíamos que os
povos não amam as suas Constituições senão pela segurança das liberdades
que elas lhes prometam; mas que as Constituições, entregues como ficam,
ao arbítrio do Parlamento e à ambição dos governos, bem frágil anteparo
oferecem a essas liberdades, e acabam quase sempre, e quase sempre se
desmoralizam pelas invasões graduais ou violentas do poder que
representa a legislação e do poder que representa a força. Nós, os
fundadores da Constituição, não queríamos que a liberdade individual
pudesse ser diminuída pela força, nem mesmo pela lei. E por isto,
fizemos deste tribunal (o Supremo Tribunal Federal) o sacrário da
Constituição, demos-lhe a guarda da sua hermenêutica, pusemo-lo como um
veto permanente aos sofismas opressores das razões de Estado,
resumimos-lhe a função específica nesta ideia”.[9]
Anos
depois, já em vigor a Constituição Republicana e em atividade o Supremo
Tribunal Federal, Rui Barbosa voltou a tecer considerações sobre a
atividade da Corte. As palavras, dessa vez, não refletiram entusiasmo ou
condescendência. Ao contrário, soaram como uma veemente admoestação
contra certo tipo conservador de ativismo desempenhado pelo Supremo
Tribunal:
“O órgão que a Constituição criara para seu guarda
supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e
as violências do Governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de
temor, quando, exatamente, mais necessitada estava ela da lealdade, da
fidelidade e da coragem dos seus defensores. (...) Medo, venalidade,
paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito
conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse
supremo, como quer que chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao
ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o
juiz covarde.” [10]
Acautelar-se; confiar desconfiando: eis as palavras de ordem!
[1]
A obra referida, provavelmente, é a seguinte: TATE, Chester Neal;
VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of Judicial Power: the
judicialization of politics. In: ______ (Orgs.).
The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995.
[2] Para aprofundada análise a respeito de tais fenômenos e sua (necessária) diferenciação, Cf. TASSINARI, Clarissa.
Jurisdição e Ativismo Judicial: Limites da Atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012,
passim.
[3] Nesse sentido, Cf. HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. In
Revista de Direito Administrativo, n. 251, maio/agosto de 2009, pp. 139-175.
[4] Cf. GARAPON, Antoine.
O Guardador de Promessas. Justiça e Democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 41.
[6] GARAPON, Antoine. op., cit., p. 46.
[7] GARAPON, Antoine. op., cit., p. 54 (grifei).
[8] Cf. STRECK, Lenio Luiz.
O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência? 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011,
passim.
[9] Cf.
Faoro, Raymundo. Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio. 4 ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001, pp.76/77.