segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Prática que perverte o processo legislativo



A farra e a saúde
Autor(es): Denis Lerrer Rosenfleld
O Globo - 23/09/2013

O que tem a ver uma medida provisória que trata do se­tor sucroalcooleiro, visan­do especificamente à regi­ão Nordeste, com nova regulamenta­ção que permite a captação de recei­tas entre drogarias e farmácias de ma­nipulação? Literalmente, nada! No entanto, este é o caso da Medida Provisória nº 615, de 2013, muito apropriadamente denominada pelo Estadão de "Farra das MPs" em edito­rial de 16 de setembro, ora pendente de sanção pela presidente da Repú­blica. A situação é surreal! Interesses dos mais difusos e, às vezes, mais obscuros, são contempla­dos em negociações que têm como objetivo á aprovação de uma medida provisória de interesse do governo. Assuntos que nada possuem em co­mum com o assunto tratado são inse­ridos arbitrariamente e açodadamente em um texto legal, sem passar pelos trâmites legislativos ordinários, pró­prios, por exemplo, de projetos de lei. Isto faz com que discussões não te­nham lugar, o embate e o confronto de opiniões não se realizem e os argu­mentos pró e contra sejam simples­mente desconsiderados. Aquilo que seria o trâmite específico do processo legislativo simplesmente não ocorre, sendo substituído pelo arbítrio de in­teresses que simplesmente estavam à espreita de uma oportunidade para se concretizarem. Trata-se de uma prática que perver­te o processo legislativo. É como se o interesse que teme a discussão clara e ordenada, não ousando apresentar- se sob a forma de projeto de lei, pu­desse apenas prosperar sob essa for­ma legal da medida provisória, porém essencialmente distorcida. Um legis­lativo que se preze não poderia com­pactuar com tal tipo de prática. É o próprio processo de criação e elabo­ração de leis que é simplesmente abandonado. No caso em questão, o efeito é ain­da mais perverso, porque afeta a saú­de da população, transformando o texto legal em vigor e, inclusive, uma Resolução da Anvisa, de 2007. O pro­blema é grave: como pode um agrega­do extemporâneo a uma medida pro­visória alterar um texto legal, fruto de todo um processo legislativo, e uma resolução posterior da Anvisa tratan­do da mesma questão? Se há algo a ser mudado, deveria ele seguir os trâ­mites legislativos normais e não ser introduzido de uma forma arbitrária no calor de uma negociação a respei­to do setor de cana de açúcar e etanol. Atualmente, drogarias não podem captar receitas com prescrições ma­gistrais, próprias de farmácias de ma­nipulação. O que se visa a manter com isto é a qualidade dos produtos manipulados e a saúde da população. Não se trata de uma separação arbi­trária, pois ela obedece a formas de produção e personalização de produ­tos bastante distintas. O que está em questão é o coletivo, e não os interes­ses setoriais. Farmácias de manipulação são ri­gorosamente controladas. Obedecem a uma série de condições e critérios que as distinguem das drogarias. Ca­da uma delas possui laboratório, far­macêutico responsável, trata os seus clientes de uma forma individualiza­da, segue regras sanitárias estritas e obedece a condições rigorosas de conservação de seus produtos. Medi­camentos manipulados são únicos e personalizados, distinguindo-se, nes­te sentido, dos medicamentos indus­trializados, que obedecem a outras regras e condições. Drogarias, por sua vez, vendem me­dicamentos em série, caracterizando-se pelo comércio de produtos indus­ trializados. Não possuem a cultura do produto manipulado, tampouco ten­do os laboratórios correspondentes. Logo, não obedecem às regras própri­as, sanitárias e laboratoriais, das far­mácias de manipulação. Sua ativida­de é completamente distinta. Só o olhar incauto as identificaria. Desta maneira, o agregado introdu­zido pelo artigo 36 na Medida Provisó­ria 615, visa a abolir essa distinção fa­zendo com que as drogarias venham a exercer certas funções das farmácias de manipulação, sem terem as condi­ções de cultura, laboratoriais e sanitá­rias para isto. O risco daí decorrente pode ser grande para clientes que, inadvertidamente, passem a recorrer a drogarias para adquirirem um produ­to que, lá, não é manipulado. Ou seja, sob a forma aparentemente anódina de uma autorização para que drogari­as e farmácias possam captar receitas entre si, introduz-se uma grande mo­dificação. Eis o perigo. Para além dos problemas próprios de conservação dos produtos mani­pulados e das condições laboratoriais específicas de sua produção, perde-se a cultura da relação pessoal com o cli­ente e da de produtos únicos que são individualizados segundo as necessidades de cada um. Receituários mé­dicos, odontológicos e veterinários exercem, precisamente, essa função. São prescrições personalizadas. É co­mo se os medicamentos manipula­dos pudessem vir a ser produzidos em série, industrialmente, o que con­traria precisamente a sua natureza própria. Ademais, a autorização de captação de receitas entre estabelecimentos de natureza distinta (farmácias de mani­pulação e drogarias) faria com que a ação fiscalizadora da autoridade sa­nitária correspondente se visse sensi­velmente enfraquecida. As farmácias de manipulação, que obedecem a uma legislação sanitária estrita, cujo objetivo consiste em preservar a qua­lidade, a segurança e a eficácia de seus produtos, ver-se-iam confronta­das a uma situação completamente distinta. Seus medicamentos e suas finalidades próprias de individualiza­ção correriam um grande risco, po­dendo afetar a saúde da população. Quem seria responsável? Não pode, portanto, vingar, na farra de negociação de uma MP, que o arbi­trário vença uma regulamentação le­gal vigente, que atende às necessidades da população brasileira. Se for para mudar, que todos sejam ouvidos, que os interessados apresentem os seus argumentos, em um processo le­gislativo adequado aos projetos de lei. Os direitos do cidadão seriam, as­sim, preservados. Urge que a presi­dente da República vete o artigo 36 da Medida Provisória nº 615. • 
Denis Lerrer Rosenfleld é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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