O longo prazo chegou
O que
restará do lulismo quando a bolha de consumo estourar?
por CÉSAR
BENJAMIN
O PT
assumiu o governo federal há dez anos, propondo-se inaugurar um novo ciclo de
desenvolvimento centrado no mercado interno; em vez disso, criou uma bolha de
consumo que já não se sustenta. Prometeu aprofundar a democracia e resgatar os valores republicanos; em
vez disso, atolou o Estado no fisiologismo, fortaleceu as oligarquias e
desmoralizou a política. São aspectos gêmeos de um ciclo que está perto
do fim, deixando o Brasil em voo cego.
Começo
pela economia. Com o esgotamento do velho desenvolvimentismo, no início da
década de 80, acentuou-se o debate sobre a necessidade de buscarmos
alternativas estratégicas para o país. Duas áreas apareciam como candidatas à
posição de locomotiva de um novo modelo econômico: as exportações, pois o
Brasil não desenvolvera uma indústria dotada de “espírito animal” para disputar
o mercado mundial, e o mercado interno, historicamente atrofiado pela má
distribuição da renda nacional. Não eram posições excludentes, é claro, mas
havia entre elas uma diferença de ênfase. Ambas estavam presentes no jovem PT,
no qual eu militava. O segundo caminho me parecia mais ajustado à nossa
meta de compatibilizar crescimento econômico e justiça social.
A
prolongada crise inflacionária, que durou até a primeira metade da década de
90, e o experimento neoliberal, que se seguiu, adiaram esse passo por vinte
anos. Instalado em 2003, o governo do PT, depositário da memória desse debate,
representou a chance de finalmente romper o impasse, ajudado pelo fato de que
logo se instalou uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável ao
Brasil: nos anos seguintes, a disparada dos preços dos produtos que exportamos
abriu espaço para um incremento veloz do mercado interno sem que isso gerasse
grandes pressões sobre as contas externas, nosso gargalo tradicional. A
conjuntura permaneceu favorável mesmo depois da crise financeira de 2008: a
China continuou a crescer, demandando grande quantidade de produtos
brasileiros, enquanto os Estados Unidos irrigavam o mundo com dinheiro barato.
Continuamos a contar com um comércio exterior em ascensão e financiamento
externo abundante.
O governo
Lula aproveitou a maré e deu alguns passos na boa direção: manteve a política
de aumentos reais para o salário mínimo, iniciada cerca de dez anos antes;
expandiu os programas de transferência de renda, agora agrupados no Bolsa
Família; patrocinou maior formalização no mercado de trabalho, o que ajudou a
garantir um aumento na renda média dos assalariados; expandiu o crédito.
Essa combinação, tornada possível pela ausência
momentânea de restrições externas, criou uma sensação de bem-estar e obteve
grande êxito político. O PT considerou que havia lançado as bases do novo ciclo
de desenvolvimento que tinha sido objeto de tanto debate entre nós. Mantive-me
em posição crítica: os instrumentos usados pelo governo eram, em geral,
positivos, mas insuficientes. Deveriam ser apenas o “motor de arranque”. Se
outras questões não fossem enfrentadas, viveríamos uma frustração.
Acumulavam-se, pelo menos, cinco elementos regressivos:
(a) As
políticas governamentais privilegiavam, de longe, a disseminação de bens de
consumo individual, como eletrodomésticos e automóveis, praticamente ignorando
os equipamentos de uso coletivo que são essenciais para a qualidade de vida da
população, especialmente nas grandes cidades: saneamento, transporte de massas,
educação, saúde, segurança;
(b) O
câmbio desalinhado e outros fatores produziam sinais de uma desindustrialização
precoce, desassociada do crescimento da renda per capita;
(c) A
inserção internacional do Brasil regredia, com a reprimarização da pauta de
exportações;
(d) A
geração de empregos permanecia concentrada em atividades de baixa qualificação
e baixa remuneração, com dificuldades tanto no lado da oferta, pela má
qualidade do sistema educacional, quanto da demanda, pois os novos postos de
trabalho se concentravam no setor de serviços não ligado à produção
(balconistas, motoboys, vigilantes) e na construção civil. Em pleno século XXI,
a população brasileira se deslocava para setores de baixa produtividade,
incapazes de garantir um mercado de trabalho dinâmico, em quantidade e
qualidade, condição essencial para uma elevação consistente dos rendimentos do
trabalho;
(e) A
infraestrutura econômica foi abandonada, com acúmulo de problemas na malha
rodoviária (entregue aos políticos do PR), descalabro no setor elétrico
(entregue ao PMDB de José Sarney), desgoverno na área de combustíveis líquidos
e assim por diante.
Essas
cinco grandes áreas reatualizavam desafios históricos que o Brasil havia
superado, ou estava em condições de fazê-lo, e sinalizavam problemas à frente.
Mas não adiantava propor o debate: assim como Collor, na expressão de Chico de
Oliveira, foi a “falsificação da ira”, um Lula onipresente e falante encarnava
a falsificação do otimismo. Os que permaneceram fiéis ao pensamento crítico e a
uma ideia de nação eram sempre colocados sob a suspeita de agir movidos por
rancor ou defender interesses inconfessáveis. Não havia motivos reais para a
crítica. Os adesistas, mesmo que de última hora, entraram na moda.
Os problemas negligenciados nos dez
últimos anos têm algo em comum: são difíceis, exigem capacidade técnica e
planejamento sério, plurianual. São de longa maturação. Por isso, tendem a ser
postergados por um arranjo político que só enxerga o curtíssimo prazo, movido
no compasso do calendário eleitoral bianual. Hoje, 2014 é o limite. Depois será
a vez de pensar em 2016. Questões como educação e infraestrutura não cabem
nesse horizonte de tempo.
Ao
optarem pelos caminhos mais fáceis, os governos do PT, em vez de abrirem um
ciclo longo de desenvolvimento para o país, como desejávamos, aproveitaram a bonança
internacional para criar uma bolha de consumo que está chegando ao fim, pois
doravante não contaremos mais com o bônus que o mundo nos deu nos últimos anos.
A China desacelera seu crescimento e diversifica seus fornecedores, enquanto os
Estados Unidos anunciam o fim da política monetária frouxa que nos trazia
dinheiro barato. Nosso saldo comercial, construído com produtos primários,
desaba, enquanto o déficit em serviços e rendas continua em expansão, como um
dos subprodutos da gigantesca desnacionalização da economia. Com o
desequilíbrio externo, o Banco Central reinicia um novo ciclo de alta nos
juros, o que conspira contra o crescimento, já medíocre, e agrava o quadro
fiscal. Haverá, inevitavelmente, ajustes para baixo na renda e no emprego, num
contexto em que o endividamento das famílias se tornou muito alto.
A única
resposta do governo, até aqui, são ações pontuais para sustentar a demanda,
ações inócuas, pois a indústria brasileira perdeu a capacidade de capturá-la.
Ela, simplesmente, vaza para o exterior, sob a forma de aumento nas
importações. A desindustrialização prossegue a tal ponto que a participação da
indústria na economia brasileira está abaixo dos níveis da década de 40.
Libertados da histriônica cacofonia
de Lula, fomos aos poucos descobrindo que a qualidade de vida dos brasileiros
continua muito ruim. A “nova classe média”, inventada pelos marqueteiros, não
tem saneamento, transporte, educação, saúde e segurança. E o Estado está
completamente desaparelhado para fazer frente a tais demandas coletivas, pois
se tornou incapaz de conduzir projetos minimamente complexos e que exigem
esforço continuado. Muita coisa se anuncia, pouca coisa começa, e o que começa
não anda. A disseminação
do fisiologismo levou ao colapso a capacidade técnica e gerencial do setor
público, em que imperam a improvisação, o marketing e a corrupção. Dilma
Rousseff discursa, promete e tira fotos, mas nitidamente não comanda governo
nenhum. Ano a ano, um abismo separa as medidas divulgadas e os resultados
consolidados.
Coadjuvantes no mesmo espetáculo burlesco, o
Executivo não executa e o Legislativo não legisla. Um cartel de políticos,
donos de partidos desfibrados, em vez de governar a nação, governa a si mesmo.
O cidadão sabe que está fora do jogo. Qualquer reforma política que não quebre
a espinha desse cartel será um engodo, uma infindável e inútil discussão sobre
regras, quando a nação pede, em primeiro lugar, que se definam objetivos e fins
verdadeiros.
Minha
crítica a essa forma de fazer política nada tem de udenismo. É uma crítica
política: governos assim constituídos, incapazes de cuidar das grandes
questões, não conseguem oferecer um rumo à nação. A governabilidade de curto prazo, garantida pelo
loteamento do Estado, constrói-se à custa de uma crescente ingovernabilidade no
longo prazo, pelo acúmulo de problemas não enfrentados. As manifestações de
junho parecem indicar que o longo prazo chegou.
O lulismo não legou ao Brasil nenhuma iniciativa
estruturante, nem no domínio da economia física nem no do aperfeiçoamento das
instituições republicanas. Compará-lo ao getulismo, como o próprio Lula gosta
de fazer, é um disparate. Falando de cabeça, Getúlio Vargas encontrou o Brasil
na condição de uma fazenda de café, comandada pelos velhos “coronéis”, com
eleições feitas a bico de pena, e nos legou quase todas as instituições que
criaram o Brasil moderno: Petrobras, Vale do Rio Doce, BNDE (hoje BNDES),
Álcalis, Companhia Siderúrgica Nacional, Fábrica Nacional de Motores, IBGE,
Furnas (embrião da Eletrobras), DASP – além do voto feminino e secreto, dos
direitos do trabalho, do salário mínimo, do Código de Águas, do conceito de
serviço público... Tudo isso com uma espantosa mobilidade social ascendente
– da qual o próprio Lula se beneficiou quando jovem –, que foi uma das
marcas do período desenvolvimentista. Mobilidade sólida e vigorosa, pois
associada, antes de tudo, à modernização do sistema produtivo, à ampliação das
oportunidades de trabalho e à expansão da escola pública. Que diferença em
relação aos tempos de hoje! Chega de boçalidades. O Brasil, definitivamente,
não começou em 2003.
Lula, de
certa forma, foi o anti-Getúlio, reforçando os coronéis que manejam o Bolsa
Família e quase nos transformando em uma gigantesca fazenda de soja. Se o
lulismo não se reciclar profundamente – não creio que isso possa acontecer –,
terá sido uma experiência efêmera e pouco importante na história do
Brasil. Afinal, o que restará delequando a bolha de consumo estourar?
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