Janaína Conceição Paschoal
República esquizofrênica?
Vivemos uma democracia em que todos são livres para concordar. Quem
discorda recebe carreiras truncadas, representações e sindicâncias
No lugar de conceder asilo a indivíduos tratados como mercadoria, compactua-se com um dos mais longos regimes de exceção.
Paralelamente às campanhas que visam coibir o crime de redução a condição análoga à de escravos, bem como o tráfico de pessoas, impõe-se um programa que possui elementos caracterizadores desses delitos; não sendo poucas as denúncias de supostas ameaças por parte da Advocacia-Geral da União aos conselhos de medicina.
Intrigantemente, o mesmo governo que peita os Estados Unidos e o Canadá, rejeitando até convite para visita de Estado, sem qualquer evidência efetiva de ataque à nossa soberania, curva-se à Bolívia, inclusive calando-se diante da apropriação de patrimônio público nacional.
Pessoas que chegaram a pegar em armas para lutar contra a censura, hoje no poder, entendem que um diplomata, que apenas cumpriu seu papel institucional, deva ser punido por ter concedido entrevista defendendo suas convicções.
Um olhar inocente pode diagnosticar esquizofrenia. Análise mais realista mostra que as contradições são apenas aparentes. Já há um bom tempo vivemos uma democracia em que todos são livres para concordar.
Nesse tipo de república (com r minúsculo), há ditaduras e ditaduras, torturas e torturas, censuras e censuras. Os procedimentos não são ruins em si. São rechaçados, ou festejados, a depender dos envolvidos.
Nesse contexto, resta coerente que votos indiscutivelmente técnicos, prolatados por cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (um deles professor de processo), sejam estigmatizados como políticos; e que os réus que mais gozaram de defesa e garantias neste país sejam tratados como mártires perseguidos.
Importante destacar que, apesar de toda ode feita ao duplo grau de jurisdição, não há notícias de que as ações originárias em trâmite --ou as condenações definitivas delas oriundas-- tenham sido anuladas.
Nesse tipo de democracia (com d minúsculo), resta compreensível que dezenas de criminalistas tenham se manifestado a respeito do histórico julgamento do mensalão e apenas um deles, dos únicos que ousou mostrar que garantismo não guarda relação com impunidade, seja intimidado com a possibilidade de representação a seu órgão de classe.
Esses assuntos podem parecer desconexos. Mas estão intimamente relacionados. O modelo seguido pelo partido que nos governa é a Venezuela. Na Venezuela, os oposicionistas estão literalmente apanhando. No Brasil, praticamente não há oposição. Mas a intolerância é tanta que não é difícil que os poucos oposicionistas comecem a apanhar também fisicamente. Quem insiste em incomodar discordando, ainda que timidamente, recebe rostos virados, carreiras truncadas, representações e sindicâncias.
Fala-se em respeitar as diferenças, mas só se respeita as diferenças dos iguais. Totalitarismos não se fazem apenas por meio do governo central, mas mediante a adoção irrefletida do discurso central pela maioria. A corroborar esse cenário sombrio, tem-se um clima de anomia instalado por protestos violentos e desordenados, muito convenientes a ímpetos ditatoriais.
JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 39, é advogada e professora livre-docente de direito penal na USP
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