Anomia
Rodrigo Constantino“Estado de uma sociedade caracterizada pela desintegração das normas que regem a conduta dos homens e asseguram a ordem social.” Assim o dicionário define o termo anomia, cunhado pelo sociólogo Durkheim. É a palavra que melhor define o perigoso momento que vivemos atualmente.
Que as normas de conduta no Brasil sempre foram elásticas, isso todos sabemos. Afinal, esse é o país do “jeitinho”. Só que há algo novo no ar. Agora, muitos acreditam que a violência e a criminalidade são recursos legítimos para suas causas, vistas como nobres.
A tarifa do ônibus incomoda? Os hospitais públicos não são “padrão Fifa”? O salário dos professores é baixo? Cães são usados em pesquisas de laboratórios? As causas são as mais diversas possíveis, mas os métodos se repetem: vandalismo, depredação, coquetéis molotov, ruas fechadas, gente mascarada atacando policiais.
O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, que acompanhou os terríveis anos nazistas de Berlim, escreveu em 1985 um livro chamado “A Lei e a Ordem”, que o Instituto Liberal traduziu, no qual traçou alguns paralelos entre a situação que estavam vivendo os países desenvolvidos nessa época e a era que antecedeu o nazismo.
Seu principal alerta era quanto ao caminho para a anomia, que costuma anteceder regimes totalitários. Afinal, os índices de criminalidade estavam em alta nesses países desenvolvidos, ameaçando a paz e a ordem dos cidadãos.
Dahrendorf estava preocupado com a incidência da impunidade, cuja consequência é a anomia, “quando um número elevado e crescente de violações de normas torna-se conhecido e é relatado, mas não é punido”.
A anomia é, pois, “uma condição em que tanto a eficácia social como a moralidade cultural das normas tendem a zero”. Tudo passa a ser visto como permitido, já que nada é punido.
Quando atos criminosos são praticados à luz do dia, carros da polícia são incendiados, cachorros são furtados, e ninguém é preso, ou se é, logo acaba sendo solto, isso é um convite para novos e mais ousados atos criminosos.
Nova York já foi a capital do crime na década de 1970, e foi somente quando as autoridades compreenderam a teoria da “janela quebrada” que as coisas começaram a mudar. Haveria tolerância zero, mesmo com pequenos delitos, como grafiteiros no metrô. O respeito à lei e à ordem deveria ser pleno.
Reparem que sequer entrei no mérito das bandeiras que esses vândalos e criminosos levantam. Isso é secundário. São os métodos que estão sendo julgados, e condenados. Cada um pode achar que sua causa é a mais justa, mas, se todos pensarem que isso justifica atos ilegais, então estaremos perdidos na completa anomia.
Reinaldo Azevedo, em sua coluna de estreia na “Folha”, foi preciso quando disse: “Em política, quando o fim justifica os meios, o que se tem é a brutalidade dos meios com um fim sempre desastroso.” E não foi assim em toda revolução cheia de boas intenções?
Não resta dúvida de que nossa democracia está bastante disfuncional. Para começo de conversa, há uma completa hegemonia de esquerda. Além disso, há mais legendas de aluguel do que partidos. Por fim, o corporativismo e a corrupção são as marcas registradas na política nacional.
Dito isso, ainda temos uma democracia, por mais imperfeita que seja. E isso deve ser valorizado. Aqueles que estão insatisfeitos, como eu, devem lutar pelas vias legais e democráticas por mudanças. A linguagem da violência é a dos bárbaros, e nunca traz bons resultados.
Por isso considero tão temerária a reação de muitos artistas e intelectuais frente à escalada de atos violentos desses baderneiros. Tentam justificá-los, quando não endossá-los, alguns chegando a se fantasiar de “Black Bloc”. Acabam jogando lenha na fogueira da anomia, ameaçando nossa frágil democracia.
Disse que havia algo novo, mas me enganei. Maio de 1968 foi parecido. Escrevendo nesse mesmo ano para esse mesmo jornal, Nelson Rodrigues dissecou o “velho mito” de que as ruas são a voz divina:
“Hoje, todo mundo protesta. Há sujeitos que acordam indignados e não sabem contra quem, nem por quê. [...] Não existe, hoje, palavra mais vã, mais sem caráter, e, direi mesmo, mais pulha do que ‘liberdade’. Como a corromperam em todos os idiomas! [...] Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simplesmente de pensar, os homens se aglomeram. As unanimidades decidem por nós, sonham por nós, berram por nós. Qualquer idiota sobe num para-lama de automóvel, esbraveja e faz uma multidão.”
Rodrigo Constantino é economista e presidente do Instituto Liberal.
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