sábado, 5 de outubro de 2013

Democracia consolidada?

[Sem dúvida a Constituição de 1988 foi um grande avanço. Note-se no editorial da Folha que não há menção ao papel das Forças Armadas nem das Polícias na Carta Magna. Este papel constitucional é muito similar à Constituição de 1967/69. Depois das manifestações de junho de 2013, pesquisas mostram que a população passou a descrer ainda mais das instituições brasileiras. Havia, inclusive, o receio de um retrocesso autoritário. A palavra golpe (não necessariamente militar) aparece cotidianamente nos jornais. E este blog procura reproduzir tais declarações de lideranças políticas relevantes. Se estiver correto, a democracia no Brasil é um conceito ainda não enraizado e, por isso mesmo, é usado instrumentalmente. Ora, se uma democracia é avaliada pela qualidade de suas instituições, seria possível dizer que a democracia brasileira está consolidada?]


Constituição em vigor
Carta de 1988 consolidou democratização brasileira e, apesar dos defeitos, firmou-se como referência para os principais debates públicos
 
Os 25 anos da Constituição brasileira, que se comemoram hoje, talvez contenham em si mesmos --pela mera menção de sua durabilidade-- o maior elogio ao texto atualmente em vigor.
Quando foi promulgada, em 5 de outubro de 1988, não faltaram advertências quanto aos riscos de inviabilidade que a nova Carta projetava sobre os governos do futuro, dado seu detalhismo e sua prodigalidade ao acomodar demandas das mais distintas corporações.
Para os padrões brasileiros, entretanto, a Constituição se prova duradoura. O período anterior de plena democracia constitucional, iniciado em 1946, vigorou por 18 anos --marcados, como se sabe, por ameaças de instabilidade civil e de intervenção militar, até produzir-se a crise final de 1964.
Não está na qualidade abstrata de um texto legal a vacina para impasses de tal tipo. Ainda assim, o maior mérito da Carta de 1988 foi o de expressar, depois de um extenso período de debates, um consenso básico da sociedade brasileira, no sentido de superar suas imensas desigualdades dentro de uma moldura democrática.
Refutava-se concepção que, paradoxalmente, havia sido compartilhada por adeptos da direita e da esquerda ao longo do século 20.
A criação de um "Brasil potência" e a construção de uma "pátria socialista" haviam tomado os princípios da liberdade individual e da alternância de poder como nada mais que empecilhos ao exercício da razão de Estado.
A democratização brasileira, coincidindo com o declínio dos totalitarismos de esquerda, inscreveu na Constituição algo que não se resumiria a uma mera enunciação formal de princípios. Mais do que restaurar a democracia, tratou-se de ampliá-la, incluindo novos direitos sociais e mecanismos para cobrar sua execução.
O papel renovado do Ministério Público assinala-se como exemplo eloquente desse intuito. Uma ampla liberdade partidária, um constante fortalecimento dos órgãos judiciários, o rumo aberto para os direitos do consumidor, da criança, do idoso, nada disso ficou no plano da teoria --embora não faltem aspectos em que a prática continua aquém do aceitável.
Ironicamente, se a nova Carta veio a ser elaborada em consonância com um clima internacional marcado pelo descrédito do autoritarismo político, a crise dos sistemas socialistas surpreendeu o legislador brasileiro numa espécie de contrapé ideológico.
A Constituição de 1988 resistiu, na letra e na realidade, a preparar o país para o ambiente da globalização econômica e da redução do papel do Estado. Ficou entregue a reformas posteriores, ainda incompletas ou negligenciadas, a tarefa de abrir a um modelo concorrencial vastas áreas da economia, como as comunicações, os transportes, os serviços essenciais.
Mais do que isso, faltam ainda as modificações incontornáveis da desburocratização, da plena liberdade sindical, da simplificação tributária, da adaptação do sistema previdenciário à reviravolta demográfica já em curso no país.
Aspectos que, ao exprimir insatisfações represadas pela ditadura, a Constituição Federal terminou engessando em dispositivos de difícil modificação.
Além desses dois eixos básicos --os direitos dos cidadãos e a organização econômico-social--, a Carta de 1988 tratou de encontrar solução em outras vertentes, que incidem sobre a arquitetura institucional republicana.
Correspondem aos temas clássicos da divisão dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), da representação popular, das relações entre União, Estados e municípios. O saldo não é inequívoco.
Vê-se o enfraquecimento do Legislativo perante a atuação do governo central. O processo, porém, é comum às democracias ao longo dos últimos cem anos, pelo menos. Dificilmente, sob as precaríssimas determinantes da cultura política brasileira, um texto constitucional poderia estancá-lo.
A representatividade do Parlamento --e dos políticos em seu conjunto-- sofre ademais com o voto obrigatório, a desproporção entre bancadas estaduais na Câmara dos Deputados, o sistema proporcional puro --que leva o eleitor a escolher entre centenas, ou milhares, de candidatos numa verdadeira barafunda partidária.
As reformas ainda a promover, bem como as incontáveis disposições que carecem de regulamentação, testemunham, entretanto, a vitalidade de uma Carta já longeva, mas ainda nova.
Sobretudo, é sempre à Constituição que se recorre quando estão em disputa os interesses mais diversos, das células-tronco aos territórios indígenas, da realidade carcerária à liberdade de imprensa.
É por estar viva que a Constituição se faz objeto de polêmica e de contradição. É porque regula, dentro da ordem, tantos conflitos, que seu caráter democrático sobressai, acima dos grupos, das pressões e das circunstâncias do momento.

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