Marcos Lisboa: "No Brasil, o privilégio é a norma"
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12 Ago 2013
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Entrevista
O economista diz por que o país virou a "república da meia-entrada"
Marcos Coronato e Guilherme Evelin
O
economista Marcos Lisboa integrou a equipe do então ministro da
Fazenda, Antonio Palocci, e foi um dos principais formuladores da
política econômica no primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula
da Silva. Ao deixar o governo, Lisboa trabalhou no Banco Itaú. Há quatro
meses, voltou aos círculos acadêmicos como vice-presidente do Insper,
escola de administração, economia e negócios de São Paulo. Publicou um
artigo em inglês, com a mulher, Zeina Latif, sobre "Democracia e
crescimento no Brasil". Nele, descrevem o processo, disseminado na
sociedade brasileira por meio do qual "grupos especiais conseguem obter
privilégios e benefícios do governo" e debilitam a economia. O artigo
aponta a existência de uma "república da meia-entrada" no Brasil. Virou
tema de debate quente entre os economistas desde as manifestações de
junho.
ÉPOCA - Por que o Brasil é uma república da meia-entrada?
Marcos Lisboa
- Noutros países, a concessão de privilégios e o tratamento diferente
são algo excepcional. No Brasil é parte da própria regra. A escolha de
vencedores, setores ou empresas, é um aspecto central de nossa política
de desenvolvimento desde Vargas.
ÉPOCA - Como isso se reflete no cotidiano da economia brasileira?
Lisboa -
Isso se reflete no crédito dirigido. Há um Brasil que paga spread
(diferença entre a taxa de juros paga pelos bancos e a taxa de juros
cobrada de seus clientes) de 2%, e há um Brasil que paga spread de 20%. O
spread de 20% subsidia o de 2%. Isso se reflete na multiplicidade de
alíquotas e sistemas tributários. As desonerações do governo federal
para setores específicos chegam a 5% do PIB. Isso se reflete nas
distorções de preços que permeiam um número surpreendente de setores. Em
outros países, as tarifas de importação giram em torno de 5% a 10%. No
Brasil, são de 30% a 40%. Isso se reflete no Estado surpreendentemente
grande, se comparado com países parecidos com o Brasil. No Brasil, a
carga tributária é 37% do PIB. Estamos quase 10% acima de outros países.
Isso tudo se traduz numa economia bastante cara e ineficiente, com
custos maiores de produção, impostos mais altos, taxas de juros mais
elevadas, menor renda real e menor capacidade de crescimento.
ÉPOCA
- O cidadão assalariado costuma associar os privilégios aos políticos,
aos altos funcionários públicos e aos grandes empresários. Seu artigo
lista outros privilégios, como a Zona Franca de Manaus e a meia-entrada
no cinema. Por que eles não são encarados da mesma forma?
Lisboa
- Nos regimes autoritários, como o de Vargas, os privilégios eram
restritos a alguns grupos. Desde o fim do regime militar, houve uma
democratização dos privilégios. Na área de cultura, eles se refletem nas
desonerações fiscais para o livro de arte e na meia-entrada para o
cinema. Progressivamente, a naturalidade da política pública na
concessão de benefícios aos setores produtivos foi se disseminando. Numa
sociedade profundamente heterogênea como a brasileira, todo mundo tem
algum benefício, vê o que recebe e defende seus interesses. Existe,
porém, um pouco de autoengano. Ao defender a meia-entrada, o pequeno
privilégio, acabam-se preservando o sistema e os grandes custos que
todos pagamos. Ao fim do dia, para muitos o saldo líquido é negativo. O
pouco que se recebe é pequeno, perto do muito que se paga em termos de
efeitos negativos sobre o investimento, a geração de empregos e o
crescimento de nossa economia.
ÉPOCA
- Grupos de pressão em busca de privilégios existem também em
democracias maduras e sociedades educadas. O que distingue o Brasil de
outros países?
Lisboa
- No artigo, usamos o termo "busca por renda institucionalizada" para
ressaltar que essa tendência vai muito além da existência de grupos de
pressão pedindo exceções à regra. Uma das características do Brasil é
que muitas vezes os grupos de pressão são criados pelo próprio governo,
como ocorre com diversas políticas de desenvolvimento. A justificativa é
que um setor precisa de uma proteção temporária, para poder se tornar
competitivo. Infelizmente, muitas vezes a política fracassa. Como
retirar os privilégios e benefícios? Quando você cria grupos de
interesse, muitas vezes uma política que deveria ser temporária se torna
permanente. Foram criadas empresas e empregos, mas a um custo que
empobrece o país. Esse capital e trabalho poderiam ser mais produtivos
em outras atividades. A transição é custosa, e os grupos de pressão
procuram vetar a mudança da política de benefícios. Vivemos isso em
vários setores no passado, como a indústria naval e a informática. O
caso possivelmente mais simbólico é a Zona Franca de Manaus. Talvez
tenhamos de nos resignar em pagar um pouco mais de imposto pelo resto de
nossas vidas para subsidiá-la.
ÉPOCA - Sua crítica também vale para benefícios dirigidos aos pobres, como o Bolsa Família?
Lisboa
- O Bolsa Família é um programa muito meritório. Representa 0,5% do
PIB, um número bastante baixo, quando comparado a outras políticas menos
visíveis. E o Bolsa Família é transparente.
Seria
bom que toda política pública tivesse a clareza e a transparência do
Bolsa Família. Toda sociedade terá exceções e protegerá alguns grupos.
Agora, é preciso fazer isso de forma transparente: Quanto? Para quem?
Quanto a sociedade ganha com essa política? E aí a sociedade faz suas
escolhas de políticas de saúde, educação, ou até mesmo de uma política
industrial para apoiar a inovação tecnológica de determinada área. Mas é
preciso fazer isso com clareza no orçamento, para que as pessoas saibam
quanto custou e qual foi o resultado. Como hoje não há transparência do
custo dos diversos benefícios e privilégios concedidos por meio do
poder público, é muito mais fácil para os interesses localizados ter
tratamento privilegiado. Com o volume de recursos que o BNDES tem, qual o
resultado de suas políticas? O que funcionou e o que não funcionou?
Temos aí décadas de políticas industriais localizadas. Estamos
começando, novamente, uma política para desenvolver a indústria naval.
Novamente, a sociedade paga para tornar viável o desenvolvimento de uma
indústria que, nas últimas duas vezes, custou caro para o país. Hoje,
várias decisões ficam relegadas a agências do governo, sem
transparência. Você paga uma conta que não sabe que paga, porque foi
decidido sem você.
EPOCA
- O senhor esteve no governo. Por que é tão difícil que cada
privilégio, isenção ou proteção sejam claramente apresentados no
orçamento público?
Lisboa
- É extremamente difícil por causa da imensa quantidade de subsídios
cruzados, fora do orçamento, e da complexidade do próprio orçamento e
das regras tributárias. Além do mais, há a resistência dos grupos
beneficiados e da burocracia à transparência e à avaliação independente
das políticas públicas. A gente percebe isso. Não temos a tradição de
medir a eficácia das políticas públicas com indicadores claros. Isso é
parte do problema, que perde visibilidade e fica difuso. Então resta
apenas a percepção dos sinais das dificuldades, como a alta carga
tributária e a sensação de que as coisas no Brasil são mais caras e mais
difíceis que nos outros países - o que é verdade.
ÉPOCA
- O senhor propõe a criação de uma agência independente do governo,
para avaliar custos e benefícios das políticas públicas. Como evitar que
ela seja capturada por interesses específicos ou esvaziada de seu
poder, por um governo interessado em ter a palavra final na concessão de
privilégios?
Lisboa
- Essa experiência existe em vários países da tradição anglo-saxã. Em
alguns, como a Austrália, vai muito bem. Em outros nem tanto. É
importante enfatizar que não seria um órgão de fiscalização, mas sim de
avaliação, mais semelhante a um centro de pesquisa que anotasse o que
cada política se propõe a fazer e medisse seus resultados. Deveria
também estudar outras experiências, em outros países, e comparar
políticas com o mesmo objetivo. Existem boas técnicas para garantir a
avaliação das políticas públicas, até mesmo o saudável hábito de muitas
vezes testá-las com grupos de controle antes de adotá-las
indiscriminadamente. É preciso tratar a política pública com o cuidado
que temos ao introduzir novos medicamentos. E garantir a transparência
dos resultados. Não é uma proposta fácil. Mas esse é um debate que vale a
pena.
ÉPOCA - Seu artigo foi considerado ingênuo por alguns economistas da linha desenvolvimentista. Como o senhor vê essas críticas?
Lisboa
- Há uma visão de mundo, muito forte no Brasil, de que cabe ao Estado
liderar o desenvolvimento. A introdução de distorções para beneficiar
grupos é parte da política pública, aceita na sociedade. Aquilo que, no
resto do mundo, é exceção, aqui é norma. Isso caracteriza a política do
nacional - desenvolvimentismo. Nos demais países, esses mecanismos são
limitados. Há uma série de pesos e contrapesos para evitar que essas
distorções asfixiem o Estado e a sociedade. Talvez seja o caso de
induzir um desenvolvimento institucional, que permita o surgimento de
instituições que tornem possível o controle da sociedade sobre a
quantidade dos beneficiados pelas concessões. Vários beneficiados serão
preservados. Outros talvez não.
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terça-feira, 13 de agosto de 2013
Democratização dos privilégios
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