Quando menino, minha avô Emerentina me
solicitou um palpite para o jogo do bicho, uma atividade que ela
praticava com a mesma religiosidade com que fazia as suas orações
matinais. Pensei num filme de Tarzan e chutei: elefante! O elefante deu
na cabeça e dela recebi um dinheiro que virou bombons de chocolate.
São 25 bichos, conforme determinou o cânone do Barão de Drummond, o
inventor disso que Gilberto Freyre dizia ser um "brasileirismo". Algo
genuinamente brasileiro, ao lado da feijoada, das almas do outro mundo,
do samba, da corrupção oficial, do suposto orgasmo das prostitutas e do
"rouba mas faz". Quanta inocência existe entre nós. É de enternecer.
Palpite 1 (avestruz)
O ministro Joaquim Barbosa tem sido tratado como um Drácula brasileiro
por dizer o que pensa e sente. Mas, no Brasil, eis o meu primeiro
palpite, somos todos treinados a não dizer o que pensamos. Seja porque
seríamos presos por corrupção ou tomados como desmanchadores de prazer;
seja porque faz parte de nossa persistente camada aristocrática não
confrontar o outro com a tal "franqueza rude" a ser reprimida por
sinalizar não o desrespeito, mas um igualitarismo a ser evitado
justamente porque nivela e subverte hierarquias.
Somos a sociedade da casa e da rua. Em casa somos reacionários e
sinceros; na rua viramos revolucionários e ninjas - a cara encoberta.
Somos imperais em casa, quando se trata das nossas filhas, e fervorosos
feministas em público, com as "meninas" dos outros. Observo que, quando
há hierarquia, não há debate nem discórdias; já o bate-boca é
igualitário e nivelador. Por isso ele é execrado entre nós, alérgicos a
todas as igualdades. Discutir é igualar, de modo que as reações de
Joaquim Barbosa assustam e surpreendem. Afinal, ele é um ministro. Como
pode se permitir tamanha sinceridade? O superior não deveria discutir,
mas ignorar e suprimir.
Palpite 2 (águia)
Um presidente da instância legal mais importante do país que esconde por
educação suas valores seria um poltrão? E isso, leitor, é justamente o
que esse Joaquim Barbosa, negro e livre, não é e não quer ou pode ser.
Na nossa sociedade, você está fora do eixo (ou da curva) até o eixo
entrar nos eixos. Ai você vira celebridade e começa a ser fino como um
aristocrata. Na oposição seu senso crítico é gigantesco, mas no dia em
que você vira governo surgem as etiquetas reacionárias. Eu queria ir,
você diz, mas a minha assessoria impediu. Não ficaria bem...
Afinal ator e papel não podem operar como um conjunto? Ou devem agir se
autoenganando para serem permanentemente elogiados como "espertos" ou
"malandros"? Esse apanágio do nosso sistema político que glorifica a
hipocrisia e condena a opinião pessoal sincera que, em circunstâncias
gravíssimas como a que estamos vivendo no momento, exige o confronto e
consequentemente a desagradável rispidez da discórdia?
Palpite 3 (burro)
Como ter democracia sem conflito? Se passamos a mão na cabeça dos mais
gritantes conflitos de interesse nesta nossa sociedade de vizinhos de
bairro e de parentelas adocicadas pelos compadrios, porque temos de nos
sentir aporrinhados porque um juiz confrontou de modo direto um colega
cujo objetivo óbvio era o de protelar o arremate de um processo que, no
meu entender, vai definir o caráter de nossa democracia liberal e
representativa?
Palpite 4 (borboleta)
Pergunto ao leitor: existe sinceridade sem emoção? Existe honestidade
sem estremecimento? Existe algum regime ético no qual se troca convicção
por boas maneiras? Afinal de contas o que seria uma pessoa com "bons
modos"? Seria um cagão sem espinha dorsal? Como, pergunto, mudar um país
com essa maldita tradição de dizer que somos assim, mas no fundo somos
assado sem dissensões? Afinal o que preferimos: o golpe que
silenciosamente suprime o bate-boca ou o bate-boca que é a única arma
democrática contra o golpe?
Um amigo me diz que o ministro Barbosa estava certo no conteúdo, mas
errado na forma; e que o ministro Levandowski estava errado no conteúdo e
certo na forma. Mas, palpito eu, como separar forma de conteúdo quando
se trata do futuro da democracia ou de um grande amor? Seria possível
uma noite de núpcias com um noivo certo no conteúdo, mas sem traduzir
esse conteúdo formalmente?
O sinal dos tempos no Supremo tem sido, precisamente, o estilo sincero e
desabrido - honesto pela raiz - do estruturalismo de Joaquim Barbosa.
Nele, forma e conteúdo estão juntos como estiveram em todos aqueles que
tentam ser uma só pessoa na casa e na rua, na intimidade e no púlpito,
entre os amigos e os colegas de tribunal.
Para se ter uma democracia é preciso juntar forma e conteúdo. Não se
pode condenar a discórdia e o direito à diferença como somente um gesto
de má educação ou de egoísmo autoritário. É preciso abrir um lugar para o
bate-boca no sistema moral brasileiro caso se queira terminar com a
sujeição e a autocondescendência que nos caracteriza como uma sociedade
metade aristocrática, metade igualitária. Prova isso o agravante de que,
quando essas metades entram em choque, tendemos a ficar do lado
aristocrático ou do bom comportamento. Do formal e do legalmente
correto, sem nos perguntarmos se o confronto não seria a maior prova de
igualdade e de respeito pelo outro.
Será que acertei novamente no elefante, ou deu burro e avestruz? |
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