[A entrevista completa de Maria Helena Moreira Alves]
Folha de S. Paulo, 25 de agosto de 2013.
UPPs são estado de exceção e ameaçam democracia, diz socióloga
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) implantadas no Rio de Janeiro
são ocupações militares e significam um estado de exceção que ameaça a
democracia. A avaliação é da socióloga Maria Helena Moreira Alves que
está lançando no Brasil "Vivendo no Fogo Cruzado", livro que traz um
ácido relato sobre o cotidiano de violência policial nas favelas
cariocas.
Doutora em ciência política pelo Massachusetts Institute of Tecnology
(EUA) e professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de
janeiro, ela morou durante seis meses em três diferentes favelas entre
2007 e 2008. Ouviu moradores, lideranças, pesquisadores e políticos
(como FHC, Lula e Cabral). A obra, escrita em parceria com o professor
de história Philip Evanson, defende uma mudança no modelo policial.
"Imagine o Bope chegando num apartamento no Leblon, arrombando a porta e
entrando com metralhadora! É inimaginável na Zona Sul, mas acontece
todos o dias nas regiões que estão sob as UPPs", diz Maria Helena, 69, à
Folha.
Nesta entrevista, ela afirma estar preocupada com a expansão do modelo
de exceção nas cidades da Copa. Fala de milícias, currais eleitorais e
corrupção policial: teme que o Rio vire uma Colômbia. E afirma que o
caso Amarildo mostra que a violência estava escondida na comunidade, que
agora começa a reagir.
Folha - No seu livro a sra. fala do crescimento do número de
desaparecidos no Rio. Por que o caso Amarildo galvanizou a opinião
pública?
Maria Helena Moreira Alves - São cinco mil desaparecidos por ano.
O caso Amarildo chama muita atenção porque a Rocinha foi uma espécie de
vitrine do governo da pacificação. Colocaram a UPP, a Rocinha virou um
ponto turístico. Em lugar estratégico, era o exemplo maior do sucesso da
UPP. Mas a violência estava escondida. De repente, uma pessoa que não
tem nada a ver é presa, levada pelos policiais da UPP. Amarildo está
desaparecido há mais de um mês. Primeiro a polícia disse que família
trabalhava com tráfico. Pegou muito mal isso, tentar colocar a culpa na
vítima. Estavam ameaçando a família. Denunciar é um ato de extrema
coragem para quem está lá dentro. A solidariedade entre todos é que os
faz sobreviverem.
O caso Amarildo e os ataques ao AfroReggae colocam em xeque a política de UPPs?
Terminamos o livro quando estavam começando as UPPs. Mas já dava para
ver o ia ser. O modelo da UPP não é o modelo da policia comunitária. É
uma invasão militar, com cerco da comunidade e permanente ocupação do
território. Com todo dia os policiais saindo com metralhadora, andando
pelos becos e muito abuso de autoridade. Primeiro fazem a invasão com o
Bope, esperando guerra. Em geral morre gente. Recentemente foi na Maré,
quando tentaram fazer uma UPP e não conseguiram. Houve uma chacina de
dez pessoas. Foi uma convulsão enorme. Eles desistiram de fazer a UPP
por causa da reação popular.
A UPP não tem apoio nas comunidades?
As comunidades estão começando a perder o medo um pouco para falar a
verdade. No começo, tinham muito medo. Quando estava pesquisando para o
livro uma pessoa me disse: silêncio não quer dizer aprovação. Hoje há
muita reação e comoção nas comunidades. Estão organizando passeatas, se
juntando com o pessoal que foi para a rua, tendo apoio da classe média.
[Os policiais] arrombam as casas, metem o pé na porta, forçam as
mulheres a cozinhar para eles, as chamam de vagabundas. É permanente
isso. As comunidades foram ocupadas por um grupo militar, o Bope, que é
treinado para matar.
Onde há UPP existe um estado de exceção?
Existe um estado de exceção declarado. Isso não é interpretação, é fato.
Vários direitos civis são suspensos. As pessoas são revistadas, a
polícia entra e sai das casas como quer. Se suspeitam de alguém, levam
embora, como foi o caso de Amarildo. Não existe direito a advogado,
dizem logo que é traficante. A polícia faz coisas que jamais faria em
Ipanema, Copacabana e Leblon. Imagine o Bope chegando num apartamento no
Leblon, arrombando a porta e entrando com metralhadora! É inimaginável
na Zona Sul, mas acontece todos o dias nas regiões que estão sob as
UPPs, que estão de baixo de um cerco militar. E é grave que esse modelo
esteja sendo considerado para o inteiro: a lei da Fifa vai declarar
estado de exceção temporário em todas as cidades onde vai haver jogo. O
estado de exceção quer dizer suspensão do direito constitucional. Isso
foi o que foi feito na ditadura militar.
Mas as UPPs não trouxeram mais segurança, valorização das casas, mais consumo? Não existe algo bom nelas?
A ideia era o projeto do Pronasci (Programa Nacional de Segurança
Pública com Cidadania), que é excelente. Estabelecia policiais treinados
para conviver com a comunidade, não seria militarizado, não teria arma
letal. Sem "caveirão", sem metralhadora e sem fuzil. Junto existiriam
programas sociais, culturais e de esporte, também de treinamento e
capacitação para emprego. Ficou só a parte militar, o resto foi sendo
cortado. Foi criada esperança, houve apoio, mas mudou. As comunidades
estão cada vez mais críticas, participando. Nas passeatas se vê faixas
dizendo: "As mesmas pessoas que batem em vocês são as que matam na
favela".
As UPPs vão fracassar?
Parte da classe média e da classe alta apoia, porque a favela fica
cercada pelos militares, para não ter crime. Mas isso também é falso,
porque homicídio e roubo na Zona Sul aumentaram. A opinião dessas
classes está muito dividida. Há os que dizem que quem está contra a UPP
está a favor da criminalidade. Nada a ver. Critico a UPP porque é um
modelo militar violento, em cima de gente que não pode se defender, que
tira os direitos civis e constitucionais das pessoas. Sou a favor de uma
polícia comunitária com respeito aos direitos civis de todas as
pessoas.
Mas como fazer isso em zonas controladas pelo tráfico?
O controle do tráfico é discutível. Na entrevista que deu para o livro, o
secretário José Beltrame diz que o tráfico organizado não está nas
favelas. O crime organizado está fora delas. Dentro há o microtráfico.
Os chefões não moram na favela. Ser contra a invasão militar não quer
dizer ser a favor do tráfico. Se pode lidar com a criminalidade dentro
da Constituição. Nova York fez isso. Não se pode lidar com a
criminalidade reprimindo a comunidade inteira. Tem que ter inteligência,
capacitar a polícia para buscar quem são os chefes, ir atrás da
corrupção. A polícia é muito corrupta.
No livro está dito que a maioria dos policiais do Rio é corrupta. Pode ser?
Não tem a menor dúvida. Policiais honestos estão sendo ameaçados e dizem
que têm mais medo dos colegas do que do tráfico. Porque podem ser
mortos por colegas, se não entram no esquema da corrupção.
A corrupção está piorando ou melhorando na gestão Sérgio Cabral?
Está chegando a um ponto absolutamente crítico. Porque agora tem uma
junção de milícia com bandido e com o controle da polícia nas áreas. O
comando da venda de gás, do gatonet, das vans está sendo feito agora
pelas milícias. São mais de 720 comunidades com milícia. Com as UPPs
ficou muito fácil para as milícias se juntarem. Como os policiais não
são honestos, eles ficam com o controle, fazem seus arranjos, um dá
dinheiro para o outro. Tem um termo aqui que é "arrego, pedir arrego".
Por exemplo, não pode ter baile funk se não pagar as polícias. Quem for
contra morre.
As UPPs não afetaram o tráfico?
É difícil saber. Afetou o tráfico pequeno, que está ali presente. O
grandão tá fora da favela e continua funcionando igualzinho inclusive
pela junção com políticos. É uma rede muito complexa. Está ficando muito
parecido com a Colômbia; é esse o meu grande medo. Está afetado tudo.
Veja o caso da juíza Patrícia Acioli, que teve a coragem de prender PM.
Foi assassinada ao meio dia. Isso acontecia na Colômbia com frequência.
As UPPs não têm o apoio da população em geral?
A classe média e a alta aceitam e gostam [dessas medidas], mas isso pode
dar apoio a uma nova ditadura. Quebra a Constituição. Estado de exceção
não pode conviver com estado de direito. Ou se tem direito para toda a
população, ou se começa a fazer quase como um buraco dentro da areia,
onde alguns não têm direitos e são [vistos como] danos colaterais. O
estado de direito democrático vai sendo minado e, no fim, não se tem
mais democracia.
A democracia está em risco nesse processo?
A democracia brasileira está em alto risco. E tem coisas muito parecidas
com 1964. Tem gente apoiando, achando ótimo. É aquela historia: está
pegando o meu vizinho, mas não a mim, que não sou comunista nem
favelado. Mas vai pegando todo mundo. Agora já estão batendo na classe
média em plena Cinelândia. Enquanto era só favelado, o pessoal aplaudia:
"Mata no Alemão, bate, faz o que quiser". Ninguém queria saber. Agora
já esta diferente.
Temos que formar uma sociedade baseada em leis para todos. Não dá para
ter leis que funcionam para alguns e não para outros. Enquanto tivermos
uma situação em que existem direitos para alguns e não para outros, não
há Constituição e democracia de verdade.
No livro, a sra. diz que a favela é a senzala do século 21 e que os
ricos da Zona Sul podem ser comparados a antigos senhores da casa
grande. Mas isso não está mudando?
Meu irmão era o Márcio Moreira Alves (1936-2009). Minha família tinha
apoiado o golpe. Quando começaram a aprender os estudantes de classe
média alta, mudou. Quando pegaram o meu irmão, minha mãe virou uma das
maiores combatentes contra a ditadura. Está acontecendo um pouco isso.
Enquanto estavam reprimindo só a população das chamadas "classes
torturáveis"
para usar uma expressão de Graham Greene citada por Paulo Sérgio Pinheiro no prefácio do meu livro,
ninguém falava nada. Por isso fiz a comparação com senzala e casa
grande: enquanto é escravo e classe torturável, tudo bem vem trabalhar
na minha casa, volta para a tua favela, eu não quero saber o que
acontece lá. Quando começam a prender os filhos da classe média e alta a
coisa muda. Por isso a popularidade do Cabral despencou. Mas ainda está
muito dividido.
No livro a sra. trata dos tentáculos do tráfico e das milícias na política. Como está isso?
Os currais eleitorais são muito graves para a democracia. Já se
infiltraram não só na Câmara de Vereadores, mas na Assembleia
Legislativa, no Congresso. Eles têm uma política de eleger pessoas e
também formar para o judiciário. Está ficando parecido com a Colômbia.
Exemplo. Tem milícia vinculada à polícia numa comunidade fechada ocupada
militarmente. Vem o programa social que requer o cadastramento das
famílias. Na hora da eleição, eles batem armados na porta das pessoas e
dizem: o voto é livre e secreto, mas nos gostaríamos que o nosso
candidato tivesse tantos votos. Se não tiver tantos votos para milícia
naquela zona eleitoral, a família esta perdida. Tem que ir embora do
local ou votar como querem. É muito mais eficaz do que como faziam os
coronéis.
A sra. também fala dos cemitérios clandestinos. Eles continuam existindo?
Não são tão clandestinos. As comunidades sabem onde ficam e já levaram a
Anistia Internacional, a ONU. O problema é que ninguém faz nada sobre
isso. São áreas onde não vigora a lei.
Na sua convivência nas favelas, o que foi mais chocante?
Ter descoberto o uso da faca corvo, que foi usada na Operação Condor.
Com a faca se abre a barriga, tira as vísceras e o corpo afunda e
ninguém nunca mais acha. Nem é mais preciso ter cemitério clandestino.
Se joga no mar. É uma explicação para o número de desparecidos. A gente
viu [a faca] nos desenhos das crianças, achamos uma e colocamos a foto
no livro. Isso é gravíssimo. Estão usando a mesma maneira que Pinochet, a
Argentina, o Paraguai, o Brasil usaram para fazer desaparecer os corpos
nos piores períodos das ditaduras.
A sra. se sentiu ameaçada?
Eu me sinto ameaçada agora. Pensei em não fazer um lançamento público
[que será em 28/8 na OAB/RJ]. Tenho uma proteção que é o fato de eu ser
da classe alta. Recebi ameaças quando estava no Chile, telefonemas. Uma
vez mataram duas cachorrinhas que a gente tinha e botaram um bilhete
dizendo que era para eu saber que podiam chegar na minha casa. Eu estava
no meio dessa história desse livro.
O que a impressionou no tempo em que passou nas favelas (ela não identifica os locais por razões de segurança)?
Positivamente, foi a solidariedade forte. É motivo para eles não querem
sair das favelas. Estão lutando contra remoções. Lá têm apoio de seus
vizinhos em tudo.
No livro, a sra. questiona a tese de que o Rio é uma cidade partida. Por quê?
A percepção que a cidade é partida tem uma parte de verdade: só nas
periferias se faz UPP e cerco militar; não se faz na zona sul. Mas ela
não é partida no sentido da dependência econômica e social. Se não
houvesse gente da favela que vai trabalhar barato, a economia do Rio
seria diferente. A lei das domésticas fez a classe média ficar furiosa.
Ainda tem muita essa mentalidade no Rio, onde a nossa historia de
escravidão é muito mais profunda. Posso falar isso porque meu tataravô, o
Visconde de Rio Preto, era dono escravos. Tinha milhares deles em
várias fazendas de café. Minha mãe sempre lutou contra a mentalidade
escravocrata.
A sra. afirma que a política de segurança pouco mudou apesar dos diferentes governos da redemocratização. Por quê?
Porque a Constituição manteve a PM militarizada. Uma das sugestões da
ONU é essa: abolir a PM e ter uma polícia mais consequente, civil. No
Brasil não é tão simples fazer isso porque está tudo muito misturado com
a corrupção geral. Seria um passo importante, mas não sei se é
possível. Teríamos que ter políticos de muita coragem e de muita
honestidade. Os governadores estão muito interessados em ter a PM, um
exército, sob o controle deles. Isso é uma situação perigosa para um
país democrático federativo. A Dilma poderia trazer o Pronasci de volta,
que ela abandonou.