terça-feira, 13 de novembro de 2012

Provas: visões distintas



Folha de S. Paulo, 13 de novembro de 2012.
EDITORIAL
Julgamento para a história
Fixadas pelo Supremo Tribunal Federal as penas que recaem sobre os principais acusados do mensalão, o julgamento de um dos maiores escândalos da história republicana vai chegando ao seu desfecho.
A compra de votos de parlamentares, com recursos desviados do patrimônio público, foi capitaneada pelo principal auxiliar do presidente Lula, o então ministro José Dirceu. Na sessão de ontem do STF, sua punição por formação de quadrilha e corrupção ativa, ainda sujeita a ajustes, foi estipulada em dez anos e dez meses de prisão, a ser cumprida inicialmente em regime fechado.
Não é o caso de celebrar, com espírito vindicativo, a decisão do tribunal. Haverá motivos para comemorar o resultado do julgamento apenas se, no futuro, o rigor e o cuidado que o presidiram se tornarem corriqueiros, e não, como ainda acontece, fatos excepcionais na política do país.
Um país em que a indignação dava lugar para o conformismo e em que todo escândalo estava destinado à impunidade e ao esquecimento -talvez esse país comece a ser outro, a partir de agora.
Até pelo ineditismo das circunstâncias, não se pode deixar de observar que o julgamento se deu com alguma dose de improviso. Não havia clareza quanto ao que fazer, por exemplo, no caso de empate entre os magistrados. Foi a meio caminho que se fixaram, ademais, critérios quantitativos para aumentar a pena dos condenados quando o mesmo delito se repetia várias vezes.
As discussões entre os ministros, que frequentemente extravasaram os contornos da serenidade que se espera de um tribunal superior, foram entretanto evidentes demonstrações de que a decisão se deu num clima de liberdade absoluta, com amplo espaço para a divergência.
Um julgamento minucioso, que resulta em condenações fundamentadas solidamente em nexos fatuais e lógicos, expôs-se dia a dia pelas câmeras de TV.
Culminou-se o trabalho do Ministério Público, da Polícia Federal e das CPIs que, deflagrado por revelações da imprensa crítica, desvendou uma das mais complexas e nefastas tramas criminais já urdidas nos bastidores do poder. Outros casos, a começar pelo das relações de Marcos Valério com o PSDB de Minas Gerais, terão de ser examinados sem demora.
Não será num dia que se banirá a impunidade da política brasileira, mas emergiram, como nunca, as condições para que isso aconteça.

Folha de S. Paulo, 13 de novembro de 2012.
Janio de Freitas
A voz das provas
Relator Joaquim Barbosa se expandiu em imputações compostas só de palavras; tem sido um comportamento reiterado
Foi uma das coincidências de tipo raro, por sua oportunidade milimétrica e preciosa. Várias peculiaridades do julgamento no STF, ontem, foram antecedidos pela manchete ao pé da página A6 da Folha de domingo, título de uma entrevista com o eminente jurista alemão Claus Roxin: "Participação no comando de esquema tem de ser provada".
O subtítulo realçava tratar-se de "um dos responsáveis por teoria citada no julgamento do STF", o "domínio do fato". A expressão refere-se ao conhecimento de uma ocorrência, em princípio criminosa, por alguém com posição de realce nas circunstâncias do ocorrido. É um fator fundamental na condenação de José Dirceu, por ocupar o Gabinete Civil na época do esquema Valério/PT.
As jornalistas Cristina Grillo e Denise Menchen perguntaram ao jurista alemão se "o dever de conhecer os atos de um subordinado não implica corresponsabilidade". Claus Roxin: "A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta". E citou, como exemplo, a condenação do ex-presidente peruano Alberto Fujimori, na qual a teoria do "domínio do fato" foi aplicada com a exigência de provas (existentes) do seu comprometimento nos crimes. A teoria de Roxin foi adotada, entre outros, pelo Tribunal Penal Internacional.
Tanto na exposição em que pediu a condenação de José Dirceu como agora no caótico arranjo de fixação das penas, o relator Joaquim Barbosa se expandiu em imputações compostas só de palavras, sem provas. E, em muitos casos, sem sequer a possibilidade de se serem encontradas. Tem sido o comportamento reiterado em relação à quase totalidade dos réus.
Em um dos muitos exemplos que fundamentaram a definição de pena, foi José Dirceu quem "negociou com os bancos os empréstimos". Se assim foi, é preciso reconsiderar a peça de acusação e dispensar Marcos Valério de boa parte dos 40 anos a que está condenado. A alternativa é impossível: seria apresentar alguma comprovação de que os empréstimos bancários tiveram outro negociador -o que não existiu segundo a própria denúncia.
Outro exemplo: a repetida acusação de que José Dirceu pôs "em risco o regime democrático". O regime não sofreu risco algum, em tempo algum desde que o então presidente José Sarney conseguiu neutralizar os saudosos infiltrados no Ministério da Defesa, no Gabinete Militar e no SNI do seu governo. A atribuição de tanto poder a José Dirceu seria até risível, pelo descontrole da deformação, não servisse para encaminhar os votos dos seguidores de Joaquim Barbosa.
Mais um exemplo, só como atestado do método geral. Sobre Simone Vasconcelos foi onerada com a acusação de que "atuou intensamente", fórmula, aliás, repetida de réu em réu. Era uma funcionária da agência de Marcos Valério, por ele mandada levar pacotes com dinheiro a vários dos também processados. Não há prova de que soubesse o motivo real das entregas, mesmo admitindo desde a CPI, com seus depoimentos de sinceridade incomum no caso, suspeitar de motivo imoral. Passou de portadora eventual a membro de quadrilha e condenada nessa condição.
Ignoro se alguém imaginou absolvições de acusados de mensalão. Não faltam otimistas, nem mal informados. Mas até entre os mais entusiastas de condenações crescem o reconhecimento crítico do descritério dominante, na decisão das condenações, e o mal-estar com o destempero do relator Joaquim Barbosa. Nada disso "tonifica" o Supremo, como disse ontem seu presidente Ayres Britto. Decepciona e deprecia-o -o que é péssimo para dentro e para fora do país.

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