Folha de S. Paulo, 21
de novembro de 2012.
Luiz
Moreira
Ação
penal 470: sem provas e sem teoria
Judiciário
em democracia tem de ser garantista. O STF ignorou essa tradição. Direito penal
com deduções não deve existir, por mais clamor popular que exista
Em 11 de
novembro, a Folha publicou entrevista com o jurista Claus Roxin em que
são estabelecidas duas premissas para a atuação do Judiciário em matéria penal.
Uma é a comprovação da autoria para designar o dolo. A outra é e que o
Judiciário, nas democracias, é garantista.
Roxin
consubstancia essas premissas nas seguintes afirmações:
1)
"A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o
domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever
de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do
Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os
sequestros e homicídios realizados."
2)
"É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas,
mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao
direito".
Na seara
penal, portanto, o Judiciário age como a instância que garante as liberdades
dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de forma inequívoca o que
alega.
Assim,
atribui-se ao Judiciário o desempenho de um papel previamente estabelecido,
pelo qual "fazer justiça" significa o cumprimento correto dos
procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Com
Roxin, sustento que cabe ao Judiciário se circunscrever ao cumprimento de seu
papel constitucional, de se distanciar da tentativa de se submeter ao clamor
popular e de aplicar aos jurisdicionados os direitos e as garantias
fundamentais.
Nesse
sentido, penso que, durante o julgamento da ação penal 470, o STF se distanciou
do papel que lhe foi confiado pela Constituição de 1988, optando em adotar uma
posição não garantista, contornando uma tradição liberal que remonta à
Revolução Francesa.
Esses
equívocos conceituais transformaram, no meu entender, a ação penal 470 num
processo altamente sujeito a contestações várias, pois o STF não adotou
corretamente nem sequer o domínio do fato como fundamento teórico apropriado.
Tais vícios, conceitual e metodológico, se efetivaram do seguinte modo:
1) O
relator criou um paralelo entre seu voto e um silogismo, utilizando-se do mesmo
método da acusação. O relator vinculou o consequente ao antecedente,
presumindo-se assim a culpabilidade dos réus.
2) Em
muitas ocasiões no julgamento, foi explicitada a ausência de provas. Falou-se
até em um genérico "conjunto probatório", mas nunca se apontou em que
prova o dolo foi demonstrado.
Por isso,
partiu-se para uma narrativa em que se gerou uma verossimilhança entre a ficção
e a realidade. Foi substituída a necessária comprovação das teses da acusação
por deduções, em que não se delineia a acusação a cada um dos réus nem as
provas, limitando-se a inseri-los numa narrativa para chegar à conclusão de
suas condenações em blocos.
3) Por
fim, como demonstrado na entrevista de Roxin, como as provas não são
suficientes para fundamentar condenações na seara penal, substituíram o dolo
penal pela culpa do direito civil.
A
inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a criar relações entre
as partes de modo que se chegava à suspeita de que algo realmente acontecera.
Ocorre que essas deduções são próprias ao que no direito se chama
responsabilidade civil, inaplicável ao direto penal.
-
LUIZ
MOREIRA, 43,
doutor em direito e mestre em filosofia pela UFMG, é diretor acadêmico da
Faculdade de Direito de Contagem
http://www.conjur.com.br/2012-nov-19/mensalao-esclarecimento-claus-roxin-publico-brasileiro
DOMÍNIO DO FATO
Roxin faz esclarecimento ao público sobre mensalão
É de conhecimento
geral que o professor Claus Roxin esteve no Rio de Janeiro para receber um
título de doutor honoris causa da
Universidade Gama Filho e para participar do Seminário Internacional de Direito
Penal e Criminologia ocorrido na Escola da Magistratura entre os dias 30 de
outubro e 1o de novembro, em convite formulado por intermédio
do professor Juarez Tavares. Por ocasião dessa visita, alguns meios de
comunicação pediram a concessão de entrevistas, o que foi feito de bom grado.
Em nome do professor Roxin e a pedido dele, na condição de seus alunos,
gostaríamos de repassar ao público brasileiro os esclarecimentos feitos pelo
professor em relação a alguns fatos divulgados nos últimos dias:
O professor
manifesta, em primeiro lugar, o seu desgosto ao observar que a entrevista dada
ao jornal Folha de São Paulo, concedida em 29
de outubro de 2012 e publicada em 11 de novembro de 2012,[1] ocasionou grande repercussão,
mas em sentido errôneo. As palavras do professor, que se referiam apenas a
aspectos gerais da teoria por ele formulada, foram, segundo ele, transformadas,
por conta exclusiva do referido veículo, em uma manifestação concreta sobre a
aplicação da teoria ao caso conhecido como “mensalão”. O professor declara,
ademais, sua mais absoluta surpresa ao ler, no dia 18 de novembro de 2012,
notícia do mesmo jornal, em que consta que ele teria manifestado “interesse em
assessorar defesa de Dirceu”.[2] O professor afirma tratar-se de
uma inverdade.
A redação final
dada pela Folha de S.Paulo à referida
entrevista publicada em 11 de novembro de 2012 é imprecisa, segundo o
professor, as respostas não seriam mais do que repetições das opiniões gerais
que ele já defende desde 1963, data em que publicou a monografia sobre “Autoria
e domínio do fato” (Täterschaft und Tatherrschaft). A imprecisão deve-se ao
título ambíguo conferido à matéria, que faz supor que houvesse uma manifestação
sobre o caso ora em curso no Supremo Tribunal Federal brasileiro: “Participação
no comando do mensalão tem de ser
provada, diz jurista”. O professor não disse a seguinte frase a ele atribuída:
“Roxin diz que essa decisão precisa ser provada, não basta que haja indícios de
que ela possa ter ocorrido”, que é inclusive juridicamente duvidosa. A
entrevista foi concluída com uma declaração posta fora de contexto, a respeito
da necessária independência do juiz em face da opinião pública. Essa pergunta
foi a ele dirigida não pela Folha de S.Paulo, e sim pelo
magistrado aposentado Luiz Gustavo Grandinetti, na presença do professor Juarez
Tavares, de Luís Greco e de Alaor Leite, estes dois últimos seus alunos.
A Folha já havia
terminado suas perguntas quando Grandinetti, em razão de uma palestra em uma
escola para juízes (a EMERJ) que Roxin proferiria, indagou se havia alguma
mensagem para futuros juízes, que, muitas vezes, sofrem sob a pressão da
opinião pública. O professor respondeu a obviedade de que o dever do juiz é com
a lei e o direito, não com a opinião pública.
A Folha, contudo, ao retirar essa declaração de seu contexto, criou,
segundo o professor, a aparência de que ele estaria colocando em dúvida a
própria isenção e integridade do Supremo Tribunal Federal brasileiro no
julgamento do referido caso. A notícia do dia 18 de novembro vai além,
afirmando: “O jurista alemão disse à Folha que os magistrados que julgam o mensalão ‘não tem (sic) que ficar ao lado da opinião pública, mesmo que haja o clamor da opinião
pública por condenações severas’”. O professor recorda que nenhuma dessas
ambiguidades existe na entrevista publicada pela Tribuna do Advogado do mês de novembro, entrevista essa
concedida, inclusive, na mesma ocasião, à mesma mesa redonda, que a entrevista
concedida à Folha.[3]
O professor declara
tampouco ter interesse em participar na defesa de qualquer dos réus. Segundo
ele, não só não houve, até o presente momento, nenhum contato de nenhum dos
réus ou de qualquer pessoa a eles próxima; ainda que houvesse, o professor
comunica que se recusaria a emitir parecer sobre o caso. Em primeiro lugar, o
professor desconhece o caso quase por completo. Em segundo lugar, afirma que,
pelo pouco que ouviu, o caso não desperta o seu interesse científico. O
professor recorda que interesses políticos ou financeiros lhe são alheios, e
que não foi sobre tais alicerces que ele construiu sua vida, sua obra e sua
reputação. Por fim, o professor declara que não se manifestou sobre o resultado
da decisão e que não tem a intenção de fazê-lo. Além disso, não está em
condições de afirmar se os fundamentos da decisão são ou não corretos, sendo
esta uma tarefa que incumbe, primariamente, à ciência do Direito Penal
brasileira.
Estes são os
esclarecimentos que o professor Claus Roxin gostaria de fazer ao público
brasileiro, na esperança de que, com a presente nota, possa pôr um fim a essas
desagradáveis especulações.
Munique, Alemanha,
18/11/2012.