terça-feira, 27 de novembro de 2012

A violência do medo

Folha de S. Paulo, 27 de novembro de 2012 (editorial)

A violência do medo

Eram previsíveis, mas não por isso menos preocupantes, os resultados da pesquisa Datafolha sobre a violência em São Paulo. O levantamento, publicado no domingo, mostra que o paulistano se sente inseguro e desconfia das instituições que deveriam protegê-lo.
Não é por acaso que despencou a aprovação do governador Geraldo Alckmin (PSDB). Em setembro, sua gestão era considerada ótima ou boa por 40% dos paulistanos. Agora, o índice é de 29%. Os que consideram a administração do tucano péssima ou ruim passaram de 17%, há dois meses, para 25%.
Na área da segurança, a atuação de Alckmin é pior: 63% a avaliam como péssima ou ruim, contra 12% que a julgam ótima ou boa.
A escalada de violência começou em junho e se intensificou a partir de outubro. Nos últimos 30 dias, foram mortas mais de 300 pessoas. Até setembro, a média diária era de seis homicídios. Tais estatísticas sinistras, por si sós, já são inquietantes. Aliadas a suas consequências sobre a opinião pública, mostram que algo vai mal no combate à criminalidade em São Paulo.
Chama a atenção, por exemplo, que 71% dos entrevistados acreditem que o governo esteja escondendo informações sobre as mortes ocorridas nos últimos meses. E, de fato, a transparência não tem sido a regra nesses episódios.
Além disso, para muitos paulistanos, a polícia não é garantia de segurança: 53% dos entrevistados sentem, em relação à Polícia Militar, mais medo do que confiança (46% no caso da Polícia Civil).
Quase nove em cada grupo de dez paulistanos também pensam que as duas polícias têm responsabilidade pela onda de violência. Para alguns deles, paradoxalmente, mesmo a violência ilegal parece justificável: 43% acham que, se um policial participasse de um grupo de extermínio e matasse um criminoso, ele não deveria ser punido.
Nesse cenário de violência e desinformação, não surpreende que 61% se sintam muito inseguros em caminhadas noturnas no seu bairro. Em agosto, esse índice era de 26%. O medo é tão disseminado que 92% temem ser atingidos -pessoalmente, ou alguém da família- pela atual onda de mortes.
Não será apenas com uma troca de secretário que o governador conseguirá tranquilizar a população. Fernando Grella Vieira, o novo responsável pela Segurança Pública, precisa recuperar a confiança do paulistano nas instituições do Estado de Direito.
A tarefa é complexa, mas inadiável, e será mais facilmente levada adiante se o secretário eleger a transparência como aliada.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

'auxílio bélico' do PCC

Facção paulista oferece 'auxílio bélico' e empréstimos de até R$ 5 mil para ex-detentos
26 Nov 2012

Polícia Civil apreendeu documento que detalha como organização criminosa ajuda integrantes do grupo

Thiago Herdy

Sérgio Roxo

SÃO PAULO


Os detalhes da criação de um "banco de apoio dos irmão (sic)", com direito a "auxílio bélico" e ajuda financeira para "necessidades emergenciais" a ex-detentos da maior facção criminosa brasileira, nascida nos presídios paulistas, constam de arquivos da organização apreendidos pela Polícia Civil durante a crise de segurança em São Paulo. Em sete páginas, o comando descreve o papel do banco e como integrantes do grupo que estivessem nas ruas até seis meses depois de sair de prisão poderiam obter armas e um crédito de até R$ 5 mil.
Para a polícia, o documento é uma das evidências da complexidade e do grau de organização da facção que já se expandiu para 21 estados, além do Distrito Federal, conforme relatório reservado da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), vinculada ao Ministério da Justiça, revelado ontem por O GLOBO.
Os documentos trazem detalhes da contabilidade de setores do grupo que estão fora dos presídios. Há registro em planilhas de despesas como chips de telefonia móvel, aluguel de ônibus e vans para a vista de parentes de detentos às unidades prisionais, gasolina, venda de cocaína, maconha, crack e até equipamentos como computadores e celulares.
"O crime fortalece o crime, é dando que se recebe", diz o documento que detalha o funcionamento do "banco de apoio", citando como objetivo da iniciativa "fortalecer aqueles irmãos que estão totalmente descabelados saindo da prisão".
Para obter auxílio financeiro ou armas, o integrante deve buscar a "Sintonia da Rua" de sua região. Sintonia é como a facção se refere aos setores de divisão de atribuições da organização. Em São Paulo, há uma para cada uma das cinco regiões (Leste, Oeste, Sul, Norte e Centro), além do ABC, Baixada e interior. Cada regional de fora de do estado conta com um responsável pelas atividades na rua.
Na proposta da organização, para emprestar uma "ferramenta" (arma) é analisado até o objetivo declarado. Quem pega até R$ 5 mil emprestados tem 90 dias para pagar, sem precisar pagar juros. O prazo para devolução da arma é de 30 dias. Empréstimos de valores maiores são negociados caso a caso, por isso não constam da proposta do "banco". Pelo menos R$ 500 mil foram provisionados pela facção para colocar a iniciativa em prática.
A facção alerta não admitir a prorrogação da devolução das armas. A proposta explica que o "auxílio bélico" inclui "todo tipo de material: fuzil, metralhadora, pistolas, granadas e revólver". É necessário devolver os itens em boas condições. "No caso de infelicidade de perca (sic), a compreensão vai até o limite da responsabilidade do irmão beneficiado". Isso significa que a "Sintonia" avaliará se a arma foi usada na situação informada e se a perda ocorreu durante a ação. Nesses casos, o prazo para reposição é de um ano. Mesmo tempo para o caso de ser preso e estar devendo dinheiro à facção. "O único retorno que a família irá exigir será um maior comprometimento dentro das responsabilidades já existentes na organização", explica a proposta.
Segundo o relatório da Senasp, a facção movimenta pelo menos R$ 72 milhões anuais com o comércio de drogas e mensalidades pagas por 13 mil integrantes, dos quais 6 mil estão presos em São Paulo, 2 mil nas ruas e 5 mil em outros estados.

Tropa de Elite 3

Folha de S. Paulo, 26 de novembro de 2012.

Marcos Augusto Gonçalves
Tropa de Elite 3

Violência em São Paulo é parte de um problema nacional, que precisa ser enfrentado com coragem
A notícia não é que o Estado de São Paulo reduziu sua taxa de homicídios ao patamar de 10 a 11 mortes por 100 mil habitantes, o mais baixo do país, metade da média nacional. Isso já havia acontecido há cinco anos. Numa trajetória notável de queda, em 2007 a taxa chegava a 11,7 e, em 2008, a 10,8 por grupo de 100 mil. Desde então, os índices paulistas -um pouquinho mais, um pouquinho menos- se estabilizaram nessa faixa.
A notícia é que no mês passado o total de homicídios dobrou na cidade de São Paulo e subiu quase 40% no Estado. Note-se que são "ocorrências". Se alguém entrar num boteco e matar dez pessoas, é apenas uma ocorrência. Quando contamos a quantidade de vítimas, o aumento, o terceiro seguido na cidade, foi de 114%, um salto de 82 para 176 mortos na comparação com outubro do ano passado.
Esse surto, assim como os famigerados ataques de 2006, sugerem uma situação de equilíbrio precário na segurança. É como naquelas cenas de westerns em que a troca de olhares e palavras ríspidas entre os valentões do saloon de repente explode. Alguém saca a arma e a matança se consuma.
Ao que tudo indica, essa cena de saloon teria ocorrido, no dia 28 de maio, num estacionamento da zona leste, quando policiais da Rota e membros do PCC se enfrentaram. O episódio, aliás, seria a abertura do meu roteiro imaginário para um possível "Tropa de Elite 3 - Entradas e Bandeiras". O epílogo a partir do qual a história se desdobra e para o qual volta a convergir.
No lugar do Bope, a Rota. Um efetivo de 26 policiais, em seis veículos, desloca-se do quartel até o local onde um grupo ligado ao PCC reúne-se para planejar o resgate de um preso que seria transferido para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no oeste do Estado. Os policiais descem das viaturas e se aproximam a pé. Tensão. De repente a gritaria e o tiroteio. Bala pra lá e pra cá. Saldo: seis bandidos mortos. Um deles teria sido torturado e executado, mas a testemunha cai em contradição no tribunal e a Justiça inocenta os acusados meses depois.
O que exatamente teria ocorrido ali?
Não se sabe. O que se sabe é que logo a seguir teve início a onda de assassinatos de policiais e a espiral que assusta a população paulista. Não havia na origem da escalada nada que se parecesse com "terrorismo" da mídia -a eterna vítima das guerrinhas político-ideológicas paroquiais.
É evidente que há um grave problema nacional na segurança pública, que vem sendo empurrado com a barriga. O sistema, de um modo geral, é ineficiente, brutal e contaminado pela corrupção. Mesmo na São Paulo maravilha, onde se investiu para obter ganhos incrementais importantes, a população, como mostrou o Datafolha, não confia na polícia e tolera execuções.
Além de planejar e investir, é preciso considerar uma mudança na Constituição para flexibilizar as regras atuais. Volto ao tema: por que a segurança tem de ser necessariamente da alçada dos Estados e exercida por meio das polícias civil e militar? É preciso reconhecer as diferenças num país que tem as dimensões da Europa. Em São Paulo, por exemplo, onde esse modelo parece encontrar seus limites, seria razoável pensar numa polícia municipal ou metropolitana, mais bem preparada e equipada para atuar na área urbana da capital.
Há décadas a segurança pública bate à porta da agenda nacional. É hora de atendê-la -com coragem e imaginação.

Diretto constitucional à segurança


http://www.conjur.com.br/2012-nov-25/segunda-leitura-brasileiros-direito-constitucional-seguranca
Segunda Leitura

Brasileiros têm direito constitucional à segurança

Poucos sabem, mas os arts. 5º “caput” e 144 da Constituição dispõem que o direito à segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Se temos ao nosso lado a Constituição, analisemos quatro perguntas: 1ª.) O Estado está cumprindo o seu dever? 2ª.) O nosso direito está sendo garantido? 3ª.) Por termos também responsabilidade, estamos colaborando de alguma forma para a segurança? 4ª.) Quais os custos da falta de segurança? Vejamos.
1ª.) O Brasil é um país cada dia mais inseguro. E fico nestas 9 palavras. Quem tiver alguma dúvida, ligue a TV, acesse um site de notícias ou leia o jornal.
O enfrentamento entre PMs em São Paulo e o crime organizado contabiliza dezenas de mortos, muitos deles vítimas ocasionais, sem vínculo com o conflito. Segundo o jornal Folha de S.Paulo (1.10.2012, C1) a principal facção criminosa encontra-se em 123 cidades do estado, algumas com menos de 5.000 habitantes.
Os que supunham ser a criminalidade urbana privilégio do RJ e SP surpreenderam-se com mortes e incêndios em Santa Catarina, estado pouco populoso e com excelente nível de vida. Mas, para os mais atentos tudo isto não é novidade. O jornal A Tarde, de Salvador, BA, noticiava em 17.5.2007 que 10 homens encapuzados atacaram dois módulos da PM no bairro Nordeste de Amaralina.
Na base do crescimento da violência está o tráfico de drogas, cujos lucros são enormes. Cada vez mais, pessoas de distintas classes sociais procuram-nas para aliviar suas tensões, seus anseios e receios. Viciados em crack perambulam pelas ruas das cidades e ninguém sabe que destino lhes dar. Os resultados dos projetos de recuperação são pífios. Discussões sobre se devem ou não ser internados compulsoriamente para tratamento se eternizam, sem solução.
Assim, a resposta à primeira pergunta é: o Estado não cumpre a Constituição, pois não fornece segurança pública aos brasileiros.
2ª.) A segunda indagação é sobre estar sendo respeitado o nosso direito constitucional à segurança. A resposta mescla-se com a anterior. As pessoas têm, hoje, suas vidas pautadas pelo medo. Temem parar seus carros nos semáforos, caminhar pelas ruas à noite, sacar dinheiro no caixa eletrônico ou levar crianças a praças públicas.
Os ricos encerram-se em condomínios fechados, verticais ou horizontais, vivendo em um mundo à parte. Seus filhos, muitas vezes, não conhecem o centro de sua cidade. Os pobres enfrentam a violência de perto, dela são as principais vítimas, não sendo raro perderem parentes em meio a tiroteios.
Os policiais, principalmente os PMS, também sofrem pela falta de segurança. Muitos são forçados a morar em bairros populares e escondem suas fardas temendo vingança. Outros sucumbem diante das permanentes situações de perigo, passando por problemas psicológicos.
Portanto, a resposta é não.
3ª.) A terceira pergunta diz respeito ao nosso papel como cidadãos, uma vez que a Constituição dá-nos, simultaneamente, o direito e a responsabilidade pela segurança. Óbvio que, por não sermos agentes do Estado, esse dever é limitado. Mas nem por isso menos importante. Vejamos.
O cidadão pode atuar como voluntário em uma ONG que fiscalize e cobre atos do Poder Público (p. ex., proteção de vítimas), inclusive ingressando em Juízo. Da mesma forma, pode ser voluntário em uma ONG ligada a carências sociais (p. ex., crianças abandonadas), o que é uma forma indireta de colaborar para a paz social.
Os professores de Direito podem estimular estudos ligados à matéria. Sabidamente, não há monografias de fim de curso (TCC) sobre segurança. Ninguém estuda ou discute. No entanto, temas outros (p. ex., guarda compartilhada de filhos) abarrotam os arquivos das Faculdades de Direito. A PUC/PR introduziu em 2012 a cadeira de “Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública” no seu programa de mestrado e doutorado em Direito.
Editoras podem dar sua colaboração, promovendo publicações na área, mesmo que elas não sejam as que revelem maior lucro. Empresas podem auxiliar na doação de equipamentos. O Ministério Público deve atuar ao lado dos órgãos de segurança e não limitar-se à cômoda posição de criticar ou realizar uma audiência pública. O Poder Judiciário deve introduzir o estudo do tema nas suas Escolas da Magistratura, capacitar os juízes e desembargadores para esta nova fase da vida nacional. A participação de Ministros dos Tribunais Superiores seria muito oportuna, pois depois de dois anos no Distrito Federal o conhecimento da realidade brasileira fica cada vez mais distante.
A resposta, portanto, é, a colaboração existe mas é pequena.
4ª.) As consequências e os custos do estado de insegurança em que se vive são pouco discutidas. Quanto gasta o SUS no atendimento aos feridos? E os parentes das vítimas, que física ou psicologicamente adoecem em razão de atos de violência? Quanto despende o INSS no pagamento de benefícios? E a locomoção dos réus presídio-Fórum para a participação em atos da instrução dos processos, dispensando-se o uso da vídeo-conferência? E os ônibus queimados, quem paga? Quanto se gasta com a ocupação da Força Nacional nos morros do Rio de Janeiro?
Segundo Cláudia Bredarioli, baseada em estudos do IPEA, “é possível estimar que o Brasil gaste mais de R$ 200 bilhões anuais para suprir os custos impostos ao país pela escalada da violência” (http://www.brasileconomico.ig.com.br/noticias/custo-da-violencia-ultrapassa-r-200-bi-por-ano-no-brasil_120306.html).
A resposta a última indagação, portanto, é que a violência causa um enorme prejuízo ao Brasil.
Com estas breves considerações, fácil é concluir que o Direito Constitucional à Segurança Pùblica não é cumprido. Não se pode negar que alguns passos vêm sendo dados, a preocupação é maior. Por exemplo, o 6º Anuário Brasileiro de Segurança Pùblica que dá a conhecer dados concretos, permitindo um mapeamento do Brasil. Mas, revela, também, que em termos gerais os gastos com segurança pública de cada estado foi 0,76% menor em 2011 do que em 2010 (Tabela 16).
Muito embora seja óbvio, sempre é bom lembrar que o problema vai bem além da atividade policial. A violência não se resume a um fator isolado. Ela é, mais do que tudo, consequência de um fato social, ou seja, a migração campo-cidade, fruto da mecanização da agricultura. Surgiram aglomerados urbanos, por vezes sem estrutura de serviços públicos e localizados em áreas de risco, onde a presença do Estado é mínima. Palco ideal para o surgimento de lideranças ligadas a atividades criminosas.
O combate a esta situação, que deve ser realizado combinando segurança e políticas públicas a essa grande massa de carentes sociais, não pode ser feito com a quebra da legalidade, execuções por vingança de supostos criminosos. Óbvio que não é fácil controlar todas as situações que surgem no policiamento de rua. Mas é preciso que o comando tenha liderança sobre os seus subordinados e controle da situação.
Por outro lado, é imprescindível unir esforços de órgãos diversos (p. ex., COAF e Receita Federal), além de investir na tecnologia e na estrutura dos órgãos policiais (p. ex., exames científicos), ainda, em sua maioria, distantes da modernidade.
 
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 25 de novembro de 2012

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Domínio do fato: divergências



Folha de S. Paulo, 21 de novembro de 2012.

Luiz Moreira
Ação penal 470: sem provas e sem teoria

Judiciário em democracia tem de ser garantista. O STF ignorou essa tradição. Direito penal com deduções não deve existir, por mais clamor popular que exista
Em 11 de novembro, a Folha publicou entrevista com o jurista Claus Roxin em que são estabelecidas duas premissas para a atuação do Judiciário em matéria penal. Uma é a comprovação da autoria para designar o dolo. A outra é e que o Judiciário, nas democracias, é garantista.
Roxin consubstancia essas premissas nas seguintes afirmações:
1) "A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados."
2) "É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito".
Na seara penal, portanto, o Judiciário age como a instância que garante as liberdades dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de forma inequívoca o que alega.
Assim, atribui-se ao Judiciário o desempenho de um papel previamente estabelecido, pelo qual "fazer justiça" significa o cumprimento correto dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Com Roxin, sustento que cabe ao Judiciário se circunscrever ao cumprimento de seu papel constitucional, de se distanciar da tentativa de se submeter ao clamor popular e de aplicar aos jurisdicionados os direitos e as garantias fundamentais.
Nesse sentido, penso que, durante o julgamento da ação penal 470, o STF se distanciou do papel que lhe foi confiado pela Constituição de 1988, optando em adotar uma posição não garantista, contornando uma tradição liberal que remonta à Revolução Francesa.
Esses equívocos conceituais transformaram, no meu entender, a ação penal 470 num processo altamente sujeito a contestações várias, pois o STF não adotou corretamente nem sequer o domínio do fato como fundamento teórico apropriado. Tais vícios, conceitual e metodológico, se efetivaram do seguinte modo:
1) O relator criou um paralelo entre seu voto e um silogismo, utilizando-se do mesmo método da acusação. O relator vinculou o consequente ao antecedente, presumindo-se assim a culpabilidade dos réus.
2) Em muitas ocasiões no julgamento, foi explicitada a ausência de provas. Falou-se até em um genérico "conjunto probatório", mas nunca se apontou em que prova o dolo foi demonstrado.
Por isso, partiu-se para uma narrativa em que se gerou uma verossimilhança entre a ficção e a realidade. Foi substituída a necessária comprovação das teses da acusação por deduções, em que não se delineia a acusação a cada um dos réus nem as provas, limitando-se a inseri-los numa narrativa para chegar à conclusão de suas condenações em blocos.
3) Por fim, como demonstrado na entrevista de Roxin, como as provas não são suficientes para fundamentar condenações na seara penal, substituíram o dolo penal pela culpa do direito civil.
A inexistência de provas gerou uma ficção que se prestou a criar relações entre as partes de modo que se chegava à suspeita de que algo realmente acontecera. Ocorre que essas deduções são próprias ao que no direito se chama responsabilidade civil, inaplicável ao direto penal.
-
LUIZ MOREIRA, 43, doutor em direito e mestre em filosofia pela UFMG, é diretor acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem

http://www.conjur.com.br/2012-nov-19/mensalao-esclarecimento-claus-roxin-publico-brasileiro
DOMÍNIO DO FATO
Roxin faz esclarecimento ao público sobre mensalão
É de conhecimento geral que o professor Claus Roxin esteve no Rio de Janeiro para receber um título de doutor honoris causa da Universidade Gama Filho e para participar do Seminário Internacional de Direito Penal e Criminologia ocorrido na Escola da Magistratura entre os dias 30 de outubro e 1o de novembro, em convite formulado por intermédio do professor Juarez Tavares. Por ocasião dessa visita, alguns meios de comunicação pediram a concessão de entrevistas, o que foi feito de bom grado. Em nome do professor Roxin e a pedido dele, na condição de seus alunos, gostaríamos de repassar ao público brasileiro os esclarecimentos feitos pelo professor em relação a alguns fatos divulgados nos últimos dias:
O professor manifesta, em primeiro lugar, o seu desgosto ao observar que a entrevista dada ao jornal Folha de São Paulo, concedida em 29 de outubro de 2012 e publicada em 11 de novembro de 2012,[1] ocasionou grande repercussão, mas em sentido errôneo. As palavras do professor, que se referiam apenas a aspectos gerais da teoria por ele formulada, foram, segundo ele, transformadas, por conta exclusiva do referido veículo, em uma manifestação concreta sobre a aplicação da teoria ao caso conhecido como “mensalão”. O professor declara, ademais, sua mais absoluta surpresa ao ler, no dia 18 de novembro de 2012, notícia do mesmo jornal, em que consta que ele teria manifestado “interesse em assessorar defesa de Dirceu”.[2] O professor afirma tratar-se de uma inverdade.
A redação final dada pela Folha de S.Paulo à referida entrevista publicada em 11 de novembro de 2012 é imprecisa, segundo o professor, as respostas não seriam mais do que repetições das opiniões gerais que ele já defende desde 1963, data em que publicou a monografia sobre “Autoria e domínio do fato” (Täterschaft und Tatherrschaft). A imprecisão deve-se ao título ambíguo conferido à matéria, que faz supor que houvesse uma manifestação sobre o caso ora em curso no Supremo Tribunal Federal brasileiro: “Participação no comando do mensalão tem de ser provada, diz jurista”. O professor não disse a seguinte frase a ele atribuída: “Roxin diz que essa decisão precisa ser provada, não basta que haja indícios de que ela possa ter ocorrido”, que é inclusive juridicamente duvidosa. A entrevista foi concluída com uma declaração posta fora de contexto, a respeito da necessária independência do juiz em face da opinião pública. Essa pergunta foi a ele dirigida não pela Folha de S.Paulo, e sim pelo magistrado aposentado Luiz Gustavo Grandinetti, na presença do professor Juarez Tavares, de Luís Greco e de Alaor Leite, estes dois últimos seus alunos. A Folha já havia terminado suas perguntas quando Grandinetti, em razão de uma palestra em uma escola para juízes (a EMERJ) que Roxin proferiria, indagou se havia alguma mensagem para futuros juízes, que, muitas vezes, sofrem sob a pressão da opinião pública. O professor respondeu a obviedade de que o dever do juiz é com a lei e o direito, não com a opinião pública.
Folha, contudo, ao retirar essa declaração de seu contexto, criou, segundo o professor, a aparência de que ele estaria colocando em dúvida a própria isenção e integridade do Supremo Tribunal Federal brasileiro no julgamento do referido caso. A notícia do dia 18 de novembro vai além, afirmando: “O jurista alemão disse à Folha que os magistrados que julgam o mensalão ‘não tem (sic) que ficar ao lado da opinião pública, mesmo que haja o clamor da opinião pública por condenações severas’”. O professor recorda que nenhuma dessas ambiguidades existe na entrevista publicada pela Tribuna do Advogado do mês de novembro, entrevista essa concedida, inclusive, na mesma ocasião, à mesma mesa redonda, que a entrevista concedida à Folha.[3]
O professor declara tampouco ter interesse em participar na defesa de qualquer dos réus. Segundo ele, não só não houve, até o presente momento, nenhum contato de nenhum dos réus ou de qualquer pessoa a eles próxima; ainda que houvesse, o professor comunica que se recusaria a emitir parecer sobre o caso. Em primeiro lugar, o professor desconhece o caso quase por completo. Em segundo lugar, afirma que, pelo pouco que ouviu, o caso não desperta o seu interesse científico. O professor recorda que interesses políticos ou financeiros lhe são alheios, e que não foi sobre tais alicerces que ele construiu sua vida, sua obra e sua reputação. Por fim, o professor declara que não se manifestou sobre o resultado da decisão e que não tem a intenção de fazê-lo. Além disso, não está em condições de afirmar se os fundamentos da decisão são ou não corretos, sendo esta uma tarefa que incumbe, primariamente, à ciência do Direito Penal brasileira.
Estes são os esclarecimentos que o professor Claus Roxin gostaria de fazer ao público brasileiro, na esperança de que, com a presente nota, possa pôr um fim a essas desagradáveis especulações.
Munique, Alemanha, 18/11/2012.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Entrevista com Claus Roxin



http://www.oabrj.org.br/detalheConteudo/499/Entrevista-do-jurista-alemao-Claus-Roxin-sobre-teoria-do-dominio-do-fato.html

Entrevista do jurista alemão Claus Roxin sobre teoria do domínio do fato
Fonte: redação da Tribuna do Advogado
A teoria do domínio do fato foi citada recentemente no julgamento da Ação Penal 470. Poderia discorrer sobre seu histórico, fazendo uma breve apresentação?

A teoria do domínio do fato não foi criada por mim, mas fui eu quem a desenvolveu em todos os seus detalhes na década de 1960, em um livro com cerca de 700 páginas. Minha motivação foram os crimes cometidos à época do nacional-socialismo.  

A jurisprudência alemã costumava condenar como partícipes os que haviam cometido delitos pelas próprias mãos - por exemplo, o disparo contra judeus -, enquanto sempre achei que, ao praticar um delito diretamente, o indivíduo deveria ser responsabilizado como autor. E quem ocupa uma posição dentro de um aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute a ação criminosa também deve responder como autor, e não como mero partícipe, como rezava a doutrina da época.  
http://administrativo.oabrj.org.br/arquivos/images/-Imagens_internas/olho_aspas.jpg
Teoria foi aplicada com sucesso no processo contra a junta militar argentina do governo Rafael Videla, assim como na responsabilização de Alberto Fujimori por crimes cometidos durante seu governo

De início, a jurisprudência alemã ignorou a teoria, que, no entanto, foi cada vez mais aceita pela literatura jurídica. Ao longo do tempo, grandes êxitos foram obtidos, sobretudo na América do Sul, onde a teoria foi aplicada com sucesso no processo contra a junta militar argentina do governo Rafael Videla, considerando seus integrantes autores, assim como na responsabilização do ex-presidente peruano Alberto Fujimori por diversos crimes cometidos durante seu governo.  

Posteriormente, o Bundesgerichtshof [equivalente alemão de nosso Superior Tribunal de Justiça, o STJ] também adotou a teoria para julgar os casos de crimes na Alemanha Oriental, especialmente as ordens para disparar contra aqueles que tentassem fugir para a Alemanha Ocidental atravessando a fronteira entre os dois países. A teoria também foi adotada pelo Tribunal Penal Internacional e consta em seu estatuto.  

Seria possível utilizar a teoria do domínio do fato para fundamentar a condenação de um acusado, presumindo-se a sua participação no crime a partir do entendimento de que ele dominaria o fato típico por ocupar determinada posição hierárquica?  

Não, de forma nenhuma. A pessoa que ocupa uma posição no topo de uma organização qualquer tem que ter dirigido esses fatos e comandado os acontecimentos, ter emitido uma ordem. Ocupar posição de destaque não fundamenta o domínio do fato. O 'ter de saber' não é suficiente para o dolo, que é o conhecimento real e não um conhecimento que meramente deveria existir. Essa construção de um suposto conhecimento vem do direito anglo-saxônico. Não a considero correta.  

No caso de Fujimori, por exemplo, ele controlou os sequestros e homicídios que foram realizados. Ele deu as ordens. A Corte Suprema do Peru exigiu as provas desses fatos para condená-lo. No caso dos atiradores do muro, na Alemanha Oriental, os acusados foram os membros do Conselho Nacional de Segurança, já que foram eles que deram a ordem para que se atirasse em quem estivesse a ponto de cruzar a fronteira e fugir para a Alemanha Ocidental.  

É possível a adoção da teoria dos aparelhos organizados de poder para fundamentar a condenação por crimes supostamente praticados por dirigentes governamentais em uma democracia?

Em princípio, não. A não ser que se trate de uma democracia de fachada, onde é possível imaginar alguém que domine os fatos específicos praticados dentro deste aparato de poder. Numa democracia real, a teoria não é aplicável à criminalidade de agentes do Estado. O critério com que trabalho é a dissociação do Direito (Rechtsgelöstheit). A característica de todos os aparatos organizados de poder é que estejam fora da ordem jurídica.  

Em uma democracia, quando é dado o comando de que se pratique algo ilícito, as pessoas têm o conhecimento de que poderão responder por isso. Somente em um regime autoritário pode-se atuar com a certeza de que nada vai acontecer, com a garantia da ditadura.

Entrevista concedida à Tirbuna do Advogado de novembro.


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Mensalão: novas divergências



Folha de S. Paulo, 17 de novembro de 2012.
André Singer
Rever a pena

A rigor, seria preciso aguardar o fim da ação penal 470 para iniciar a análise de conjunto que o assunto requer. Se às autoridades cabe acatar os vereditos do STF, que para tanto é soberano, à opinião pública -ou o que dela resta em tempos de acelerada massificação- cumpre discutir com autonomia e desassombro as conclusões proferidas pelo tribunal.
No entanto, em face da inopinada inversão de pauta operada pelo relator, que resultou em sentença de alto impacto político na segunda-feira passada, impõe-se avaliar de imediato a pena de dez anos e dez meses aplicada a José Dirceu. Sobretudo pela desproporção deste ficar recluso pelo menos um ano e nove meses em penitenciária de segurança máxima.
O respeito ao Estado de direito garantiu ampla liberdade e independência ao procurador e aos juízes -assim como aos advogados de defesa, diga-se- no decurso dos trabalhos. Tal apego às regras, e também ao contraditório no andamento dos debates televisionados, conferiu legitimidade às decisões da corte. A dosimetria aplicada ao ex-chefe da Casa Civil, contudo, modificou a imagem projetada pelo Supremo.
Tendo inegável papel na história do PT, a prisão do ex-presidente da sigla atingirá o partido, ocasionando imagem forte para a posteridade. A suspeita que paira é se o exagero punitivo não mirou tal alvo, distorcendo, assim, a finalidade do processo. Isto é, se, no caso, os preceitos de equilíbrio e razoabilidade foram deixados de lado com o fito de ferir um símbolo partidário.
Note-se que a reclusão de Dirceu em regime fechado deriva da soma de duas acusações, a decorrente de corrupção ativa e a concernente à polêmica tese de formação de quadrilha. Caso tivesse sido condenado apenas pela primeira -ela própria objeto de disputa sobre a ausência de provas-, o líder petista teria direito à modalidade semiaberta.
Acresce que o debate sobre o segundo tema dividiu a corte. Não somente Lewandowski e Toffoli absolveram Dirceu, como também o fizeram, nesse tópico, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Esta última, que havia realizado o ataque mais duro à argumentação do caixa dois quinze dias antes, lembrou que quadrilheiros típicos eram Lampião e seu grupo, não os envolvidos na AP 470.
O confronto de 22 de outubro no plenário do STF mostrou o quanto, nas circunstâncias, há de duvidoso no su-posto crime de formação de quadrilha, o qual, todavia, gerou uma pena (no item) quase máxima para o acusado. Como o princípio do "in dubio pro reo" é fundamental no espírito da Justiça, que não é o de retaliar, mas o de garantir o acatamento da lei, faz-se necessário rever a punição imposta a José Dirceu.

Folha de S. Paulo, 19 de novembro de 2012.
Igor Gielow
Golpismo contra o STF

BRASÍLIA - Quem acompanhou os excruciantes debates do julgamento do mensalão, especialmente aqueles entre Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello, sabe que a temperatura no Supremo Tribunal Federal irá elevar-se após a saída do zen Ayres Britto da presidência da corte.
Mas a gestão de Barbosa, que começa nesta semana, não terá sua estabilidade ameaçada apenas pelo temperamento mercurial do presidente, ou pelas brigas algo pueris entre senhores que se detestam. O perigo também vem de fora.
Defensores de réus têm obrigação de ir até o fim. O advogado de José Dirceu tem toda a legitimidade para tentar reduzir a pena do seu cliente.
Ele pode também ventilar que a teoria do domínio do fato foi deturpada e contratar o alemão que a formulou para tentar anular a condenação por formação de quadrilha -o que deixaria Dirceu "só" culpado por corrupção, mas fora do regime fechado.
Tudo bem que a chance de sucesso pareça remota. O próprio jurista teutônico só deu frases genéricas, que já viraram a seguinte "verdade" nas redes sociais e entre os "progressistas": Dirceu teria sido condenado sem provas. Isso é um disparate.
O problema é o corolário petista: o STF quis atingir o PT. E a tese não vem só dos hidrófobos de sempre, como os que elaboraram a perniciosa nota do partido sobre o caso.
Porta-voz de Lula à época do mensalão, o habitualmente cordato André Singer argumentou sábado em sua coluna nesta Folha, após constatar que a prisão de Dirceu manchará o PT, que "a suspeita que paira é se o exagero punitivo não mirou tal alvo [prejudicar o partido], distorcendo, assim, a finalidade do processo".
O Judiciário é falho, claro, e tem de ser objeto de escrutínio. Sua cúpula é formada por humanos, demasiadamente, como está explícito. Mas tentar imputar ao Supremo a pecha de tribunal de exceção é desrespeito institucional e, no limite, golpismo.