O Estado de S. Paulo 29 abril 2011
Conceito de ética
Dora Kramer
Seria impreciso dizer que o Senado chegou ao fundo do poço quando decidiu constituir um Conselho de Ética ao arrepio do decoro indispensável à atividade parlamentar. Isso porque o poço em que o Poder Legislativo resolveu já há algum tempo jogar sua credibilidade parece não ter fundo.Entra ano, sai ano, entra escândalo, sai escândalo, os acontecimentos bizarros não têm fim, medida nem limites.
A presença de oito processados na Justiça entre os 15 titulares do conselho soa como uma contradição em termos. Agride à lógica da vida normal, mas está absolutamente de acordo com as regras do Congresso.
Mais: compõe perfeitamente o cenário da degradação. Todos os integrantes do conselho destinado a zelar pela ética na Casa são tão senadores quanto qualquer outro. A partir do momento em que seus pares não impuseram reparos a condutas julgadas no passado e os eleitores lhes confiaram delegação, podem participar de todas as atividades sem restrição.
A questão não é o que Renan Calheiros, que trocou a renúncia à presidência do Senado pela absolvição em processos por quebra de decoro, ou Gim Argello, investigado pela Polícia Federal e obrigado recentemente a renunciar à relatoria do Orçamento da União por suspeita de desvios na distribuição de emendas, estão fazendo no Conselho de Ética.
A pergunta correta é o que esses e outros estão fazendo no Senado e o que o Senado faz consigo ao, entre outras façanhas, reconduzir à presidência da Casa José Sarney e seu manancial de escândalos, cuja mais recente leva data de dois anos atrás.
Esse episódio do conselho ganhou repercussão, é tratado como um grande problema, mas é apenas parte do infortúnio que assola o Parlamento e, em boa medida, a sociedade que não exerce ela mesma o voto limpo enquanto não se institui de vez a obrigatoriedade legal da ficha limpa: a indiferença à ética, ao conjunto de valores que disciplinam o comportamento humano como atributo essencial à vida civilizada. Pública ou privada.
Embora a completa ausência de pudor, ainda que em grau apenas suficiente para a manutenção das aparências em colegiado presumidamente ético, fira os espíritos mais sensíveis, não se configura uma novidade em face da revogação geral de quaisquer valores balizadores de condutas.
Em ambiente onde um senador pode roubar um gravador - como fez Roberto Requião ao surrupiar o equipamento pertencente à rádio Bandeirantes e apagar do cartão de memória uma entrevista que não lhe interessava ver divulgada - e ainda assim ser defendido pelo presidente da Casa, não há poço que seja fundo o bastante para delimitar a fronteira entre a civilidade de fachada e a selvageria total.
Terra arrasada. Aos arquitetos do PSD não falta ousadia para cogitar da possibilidade de atrair políticos aparentemente inamovíveis do DEM.
O senador Demóstenes Torres já recebeu convite e, segundo consta, ficou de pensar. Ninguém menos que o presidente do DEM, senador Agripino Maia, integra a lista das próximas investidas.
Não se pode dizer que o plano do PSD seja deixar que os últimos dos moicanos apaguem a luz, porque a ideia é que não reste luz para ser apagada.
Precedente. A decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da posse de suplentes de deputados levando-se em conta o cálculo da coligação e não do partido, foi ao encontro do entendimento da Mesa da Câmara, que resolveu adotar esse critério mesmo antes da sentença do colegiado.
Descumprindo, portanto, a decisão liminar que estava em vigor até então instruindo exatamente o oposto: que a posse dos suplentes deveria levar em conta o partido e não a coligação.
A Câmara venceu no final, mas durante três meses ignorou o imperativo da obediência a determinações judiciais. Um desapreço mediante o qual o Poder Legislativo subtrai de si e das demais instituições relevância na sustentação do Estado de Direito.
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