quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Barbosa vs. Barroso (II)

O Globo, 27 de fevereiro de 2014.

Barbosa vê voto político de Barroso, que o acusa de 'déficit civilizatório'

Presidente do STF reedita polêmicas discussões em plenário e fala de 'fórmula pronta'

André de Souza e Carolina Brígido


BRASÍLIA - Protagonista de vários embates durante o julgamento do processo do mensalão nos últimos dois anos, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, voltou à carga ontem. O alvo desta vez foi o ministro Luís Roberto Barroso, o primeiro a votar pela absolvição dos réus do crime de formação de quadrilha.
Barroso havia afirmado que o STF exagerou na pena dos réus por quadrilha apenas para aumentar o tempo de cadeia. Irritado, Barbosa acusou seu colega de dar um voto político, sem argumentos jurídicos. Também insinuou que Barroso, nomeado para a Corte depois do julgamento do mensalão, já tinha uma fórmula pronta para o julgamento antes de ser ministro.
Em seu voto, ao criticar o tamanho das penas por formação de quadrilha, Barroso disse que é natural se indignar contra a "histórica impunidade das classes dirigentes no Brasil", mas argumentou que o STF não pode confundir o discurso político com o discurso jurídico:
- O Supremo Tribunal Federal é um espaço da razão pública, e não das paixões inflamadas. Antes de ser exemplar e simbólica, a Justiça precisa ser justa, sob pena de não poder ser nem um bom exemplo nem um bom signo.
Barbosa contra-atacou, lembrando que o mensalão somou mais de R$ 70 milhões.
- O tempo em que essa quadrilha movimentou toda essa montanha de dinheiro, a forma como esse dinheiro era distribuído aos parlamentares, tudo isso foi objeto de debate intenso aqui neste plenário. Agora, Vossa Excelência me chega aqui com uma fórmula prontinha, não é? Já proclamou inclusive o resultado do julgamento. Vossa Excelência já disse qual é o placar antes mesmo de o colegiado ter votado. A sua decisão não é técnica. É simplesmente política. É isso que estou dizendo.
Em tom sereno, Barroso, rebateu:
- Para mal dos pecados de Vossa Excelência, o meu voto vale tanto quanto de Vossa Excelência. O esforço para depreciar quem pensa diferentemente, com todo o respeito, é um déficit civilizatório. Quem pensa diferente de mim só pode estar mal intencionado ou com motivação indevida: é errada essa forma de pensar. Precisamos evoluir. Discutir o argumento e não a pessoa. É assim que se vive civilizadamente.
Barbosa começou a se irritar quando Barroso disse que o STF aumentou a pena de quadrilha numa proporção maior.
- Em que dispositivo do Código Penal se encontram esses parâmetros tarifários que Vossa Excelência está utilizando no seu voto? Isso não existe. É pura discricionariedade de Vossa Excelência. Admita isso - reclamou Barbosa.
Dias Toffoli, que votou pela absolvição, saiu em defesa de Barroso.
- Presidente, vamos ouvir o voto do colega. Todos nós ouvimos Vossa Excelência votar horas e horas, dias e dias, sem interrompê-lo - afirmou Toffoli.
- Não seja hipócrita - disse Barbosa.
- Vossa Excelência não quer presidir deixando ele proferir o voto. Só porque o voto discorda da opinião de Vossa Excelência! - reagiu Toffoli.
À noite, Barroso evitou polemizar e disse que divergências são naturais.

Judiciário vencido?

Folha de S. Paulo, 27 de fevereiro de 2014.

Roberto Delmanto Junior
Efeito mensalão
O descrédito que o fenômeno da vaquinha trouxe à pena de multa poderá estimular tribunais a enaltecer ainda mais a pena de prisão
 
A punição criminal, com suas penas de privação de liberdade e multa, há de ser sempre individualizada. O juiz, quando as estabelece, deve considerar as circunstâncias específicas dos fatos e a culpabilidade da pessoa que é condenada.
Embora soe óbvio, nem sempre foi assim. Na antiga Grécia, por exemplo, a punição estendia-se a toda família do criminoso. Atualmente, punições coletivas, vedadas por nossa Lei de Execução Penal, ainda são uma realidade.
Quanto à pena criminal de multa, é fato que nossas leis, para a maioria dos crimes, a preveem conjuntamente com a pena de reclusão. E quando a pena privativa de liberdade é igual ou inferior a quatro anos e o crime é cometido sem violência, sendo o condenado primário, a prisão será substituída por penas alternativas, que variam desde a prestação de serviço à comunidade a até mesmo uma outra pena de multa --a chamada prestação pecuniária--, que se soma à outra pena de multa originariamente prevista.
É fato também que na atual redação de nosso Código Penal, toda punição pecuniária, que nada tem a ver com a reparação do dano, é considerada dívida de valor, sendo certo que a inadimplência não leva o condenado ao cárcere. Ele sofrerá penhora de bens, não podendo a execução alcançar terceiros, salvo se tiver havido fraude ou simulação para evitar que o Estado satisfaça o seu crédito.
Estabelecidas essas premissas, gostaríamos de compartilhar com o leitor uma reflexão sobre as vaquinhas realizadas para o pagamento das penas pecuniárias impostas pelo Supremo Tribunal Federal aos condenados do caso mensalão.
Não se discute, por certo, que as doações foram realizadas por pessoas de bem, alguns com depósitos módicos, outros substanciosos, tendo todos ampla liberdade para doar a quem quiser o seu dinheiro. Se doaram por convicção ideológica-partidária, por entender que o julgamento foi injusto, por amizade ou por admiração, não cabe a ninguém questionar. E certamente os condenados beneficiários das doações pagarão os impostos devidos, como o de transmissão de valores entre vivos.
Porém, como todo dinheiro precisa ter origem, os depósitos deverão estar todos identificados, para a própria segurança daqueles que deles se beneficiaram.
Por outro lado, embora insista-se no óbvio, como fez o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), de que não há lei que proíba doações para tal fim, atacando o ministro Gilmar Mendes, que levantou dúvidas diante do volume milionário e da rapidez da arrecadação, o fenômeno da vaquinha literalmente esvaziou a punição pecuniária imposta pelo Supremo, deturpando o caráter personalíssimo da sanção criminal.
Aqueles que doam estão, no fundo, solidarizando-se e, de certa forma, cumprindo a pena no lugar do outro, o que traz para o Poder Judiciário grande desconforto.
Ao mesmo tempo, réus mais humildes e menos politicamente influentes que se envolveram nos mesmos fatos certamente sentirão no bolso, com o arresto de seus bens, a implacável punição criminal pecuniária. A desigualdade de situações e de efetivo cumprimento de suas penas também gera uma incômoda sensação.
Outro fato que nos chama a atenção é o de que esse episódio poderá gerar um efeito bumerangue em matéria de aumento do encarceramento. Isso porque o descrédito que o fenômeno da vaquinha trouxe à pena de multa poderá estimular que tribunais enalteçam ainda mais a pena de prisão como única resposta penal, certos de que, neste caso, a pena não poderá ser cumprida mediante vaquinha.
Com isso, a situação das cadeias brasileiras --que hoje são a maior violação humanitária do continente americano-- poderá piorar ainda mais. De tudo, uma coisa é certa: o Judiciário, como Poder, foi desafiado e de certa forma vencido.
ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 45, doutor em direito pela USP, é advogado e conselheiro da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo)

Orçamento paralelo?

Folha de S. Paulo, 27 de fevereiro de 2014

Orçamento paralelo
Inúmeros incentivos para o setor privado não constam da programação de despesas do Executivo, o que dificulta análises de custo-benefício
Assegurar aos cidadãos o direito de conhecer e influenciar o destino dos impostos que pagam é uma saudável maneira de reforçar a legitimidade das políticas públicas implementadas pelo governo.
No Brasil, contudo, isso nem sempre ocorre. O Orçamento da União, além de não constituir descrição fiel dos gastos que serão efetuados, ainda deixa de contemplar dispêndios dos mais relevantes.
Os inúmeros incentivos que o Executivo concede ao setor privado na forma de renúncias tributárias e subsídios financeiros e creditícios não constam da programação de despesas do poder central. Compromete-se, assim, a transparência da alocação de recursos públicos, dificultando a análise de custo-benefício de cada iniciativa.
As renúncias ocorrem quando se decide diminuir os impostos de um determinado segmento, como como no caso do IPI para automóveis. Já os subsídios financeiros decorrem de empréstimos a juros menores que os de mercado, cuja diferença é bancada pelo governo. Em ambos os casos, o objetivo é estimular a atividade econômica.
O estudo "Benefícios Fiscais Concedidos (e Mensurados) pelo Governo Federal", de Érica Diniz e José Roberto Afonso, consolida esses gastos nos últimos anos.
São cifras astronômicas. Segundo os autores, o montante estimado para 2014 chega a R$ 323 bilhões, dos quais apenas 9% transita diretamente pelo Orçamento.
Tal valor só é inferior às despesas com a Previdência Social (R$ 401,5 bilhões); supera, por exemplo, em 67% os dispêndios dos ministérios da Saúde e da Educação.
Verdade que, nos últimos anos, houve avanços para explicitar os incentivos, em parte por exigência do Tribunal de Contas da União. Permanece, porém, a questão de fundo: 91% dos recursos passam ao largo da peça orçamentária e são concedidos pelo Executivo sem que haja avaliação sistemática a respeito da eficácia de cada decisão.
No caso dos subsídios dos financiamentos do BNDES, o país gastará R$ 14,8 bilhões em 2014. Para quem e com qual objetivo? Algumas informações se tornarão conhecidas caso a Folha consiga acesso a relatórios internos sobre grandes empréstimos feitos pelo banco --o jornal, que já obteve vitórias nas várias instâncias judiciais, aguarda decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal.
Mas o que dizer da Zona Franca de Manaus, para a qual a renúncia tributária prevista é de R$ 23,6 bilhões? Qual é o impacto de tal ação no desenvolvimento regional?
Reforçar a transparência do processo orçamentário é essencial para garantir o melhor uso dos impostos e fortalecer a democracia. Infelizmente, o governo não se mostra interessado em conduzir avanços institucionais dessa envergadura.

PM bateu em delegado

http://blogs.estadao.com.br/sp-no-diva/a-historia-do-pm-que-bateu-no-delegado-revela-como-e-profunda-a-crise-na-seguranca/?fb_action_ids=836908072991195&fb_action_types=og.recommends

BRUNO PAES MANSO

A história do PM que bateu no delegado revela como é profunda a crise na segurança em SP

Poderia ser mais um fato isolado, resultado do cotidiano estressante da carreira dos policiais que atuam em São Paulo. Mas não é só isso. A história do delegado de 49 anos que apanhou de policiais militares da Rota na última quinta-feira, em Rio Claro, no interior de São Paulo, revela a profundidade da crise estrutural de nossas polícias e a necessidade de reformas. As promessas de aproximação entre as corporações são antigas, tem quase 40 anos, mas policiais militares e civis ainda agem como se fossem rivais.
Eram 19 horas da última quinta-feira quando PMs da Rota chegaram à delegacia em Rio Claro levando um suspeito que eles acreditavam ser procurado pela Justiça. O delegado fez a pesquisa no sistema e viu que os PMs estavam enganados. Um mandado havia sido expedido em junho e foi cumprido dois meses depois. Não havia nenhum novo pedido na Justiça, o que significava que o suspeito não podia ser preso. Era o motivo para o clima começar a esquentar na sala do plantão. O soldado da Rota insistiu e disse que o sistema havia se enganado. O delgado mostrou os dados ao policial, que não se deu por satisfeito.
O tenente da Rota que acompanhava a cena ao lado começou a rir e a debochar do delegado, que perguntou o motivo das risadas. Ouviu em resposta: “Aqui é Rota e aí é bandido. Água e óleo não se misturam”. Ao mesmo tempo, o tenente apontou uma pistola ponto 40 para o delegado. Advogados e cidadãos que estavam na delegacia acompanharam o barraco. O oficial disse ainda que o delegado era um “bost..” e saiu junto com seus comandados para a varanda da delegacia.
O delegado foi atrás dos PMs para se certificar do nome dos que o agrediam. O tenente fez menção de esfregar seu uniforme na cara do delegado. Em seguida, empurrou o delegado com as duas mãos contra seu peito. O óculos do delegado caiu no chão. Nesse momento, os outros policiais pisaram nos óculos, que quebrou. Alguns advogados no plantão chegaram a filmar a cena com celulares, mas também foram ameaçados pelos PMs. Apesar de agredido, o delegado diz que não deu voz de prisão aos militares por causa das ameaças e pressões que sofreu.
O delegado registrou o boletim de ocorrência, que este blog teve acesso e usou para descrever a cena. Este registro também foi enviado aos comandos e corregedorias das duas polícias. O blog entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública e com a PM para saber dos desdobramentos do caso.
Quando, em 2006, eu escrevi o livro O Homem X – Uma reportagem sobre a alma do assassino em SP, entrevistei policiais que mataram e participaram de grupos de extermínio nos anos 1980 e 1990. Alguns explicaram que a desconfiança dos policiais civis era um dos motivos para que eles “matassem os ladrões”. Na crença dos PMs, de nada adiantava prender ”o vagabundo”, que depois seria solto na delegacia em troca de propina. Depoimento semelhante foi dado depois ao coronel Adilson Paes de Souza, que também entrevistou PMs homicidas em sua dissertação no curso de direito do Largo S. Francisco da USP. Matando, eles faziam justiça privada, ação que encaravam como um atalho para a lentidão da justiça.
Os PMs não tiravam essa ideia da estratosfera, mas da realidade observada nas ruas. Não era à toa a desconfiança junto aos delegados.
O grave é que tudo continua igual, assim como essa tensão entre as corporações permanece até hoje. A briga entre Rota e delegado foi só a explosão de um sintoma do problema. Não é à toa que permanece caótica a capacidade do Estado em punir aqueles que praticam crimes graves. E não é por menos que os roubos seguem em ascensão contínua, como mostram mensalmente os dados oficiais do Governo de SP.
A reforma das Polícias e temas relacionados à segurança pública é um tema que este ano devem fazer parte dos debates para presidente. Os três últimos presidentes se omitiram temendo prejuízos políticos que o assunto poderia trazer aos seus mandatos. Não é mais possível se omitir.
Para aqueles que se interessam pela discussão, segue abaixo uma das propostas de reformas atualmente debatidas. Outras estão na ordem do dia e o blog também abrirá espaço para que possamos debate-las.

Barbosa vs. Barroso

Folha de S. Paulo, 27 de fevereiro de 2014

No STF, 4 votam por absolver réus de crime de quadrilha
Em julgamento tenso, Barbosa acusou Barroso de proferir voto político
Placar abre caminho para tribunal derrubar hoje as penas deste crime para oito réus, entre eles José Dirceu
SEVERINO MOTTA FILIPE COUTINHO DE BRASÍLIA
 
Acusado de proferir um voto "político" em vez de técnico, o ministro Luís Roberto Barroso considerou que não houve formação quadrilha no mensalão e abriu caminho para o STF (Supremo Tribunal Federal) derrubar hoje as penas deste crime para oito réus, entre eles o ex-ministro José Dirceu.
Em um clima tenso, com troca de acusações entre ministros que lembrou os primórdios do julgamento, em 2012, o tribunal começou ontem a analisar o recurso de réus que pediram a reconsideração das condenações por formação de quadrilha.
Além de Barroso, os ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que em tese só deveriam falar hoje, se anteciparam e também votaram pela absolvição dos réus.
Na primeira fase do julgamento, o placar pela condenação por formação de quadrilha ficou em 6 a 4. Como a votação foi apertada, o grupo de réus teve direito a uma reanálise de sua situação.
O tribunal chega à ultima etapa do maior julgamento de sua história com uma nova formação --dois ministros que foram favoráveis à condenação por quadrilha saíram e foram substituídos por Barroso e Teori Zavascki.
A absolvição dos réus depende agora do voto de Teori, que será dado hoje e também deve ser pela derrubada do delito, consolidando um placar de 6 a 5.
Confirmada a absolvição, os integrantes da antiga cúpula do PT, entre eles Dirceu e o ex-tesoureiro Delúbio Soares, evitarão a prisão em regime fechado e seguirão no semiaberto em que já estão presos devido ao crime de corrupção ativa.
A existência de uma quadrilha, um crime menos grave em termos de pena do que o de corrupção ou lavagem de dinheiro, foi o fio condutor da denúncia do Ministério Público Federal. A acusação final usa a palavra "quadrilha" 42 vezes e diz que Dirceu era seu "chefe".
Ontem, o julgamento começou com o voto do relator dos recursos, Luiz Fux. Ele reiterou sua posição dizendo que os réus teriam se unido de forma estável para cometer crimes, por isso, a quadrilha estava configurada.
Depois foi a vez de Barroso, para quem as penas por quadrilha fixadas em 2012 estavam altas e desproporcionais aos demais crimes pelos quais os réus foram condenados. Ele sugeriu que elas foram aumentadas pela corte para evitar que as condenações prescrevessem.
Logo depois, destacou que votaria pela aceitação dos recursos por entender que não existiu uma quadrilha.
"A causa da discrepância foi o impulso de superar a prescrição do crime de quadrilha (...) Antes de ser exemplar e simbólica, a Justiça precisa ser justa, sob pena de não poder ser nem um bom exemplo nem um bom símbolo".
"No mérito propriamente dito, entendo que a hipótese foi de coautoria e não de quadrilha", completou Barroso.
TOM DE VOZ
Foi interpelado então por Joaquim Barbosa, que o acusou de estar dando um voto político e de já o ter pronto antes mesmo de ter sido nomeado, pela presidente Dilma Rousseff, para compor o STF no ano passado.
"Agora vossa excelência chega aqui com uma formula prontinha, proclamando inclusive o resultado do julgamento. A fórmula já é pronta, como se vossa excelência já tivesse antes de chegar ao tribunal. Parece que sim", disse Barbosa, exaltado.
"Sua decisão não é técnica, é simplesmente política", completou.
Sem alterar o tom de voz, Barroso disse que é "errada" a interpretação e que "quem pensa diferente está mal-intencionado. O esforço para depreciar o voto divergente é um deficit civilizatório".

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Estado terrorista?



Blog do Noblat
25.2.2014
 

Terrorista é o Estado, por Carlos Tautz

Ouriçados talvez pela proximidade do 31 de março, tenebrosa marca do meio século do golpe empresarial-militar de 1964, representantes do autoritarismo que sempre guiou o Estado brasileiro ameaçam, por ação ou omissão, implantar o terror como política pública.
Um general assina artigo n´O Estado de São Paulo – não à toa, em um dos jornais que mais apoiou o golpe e a ditadura...! - para ameaçar o estado democrático de direito; Dilma envia tropas federais para reprimir indígenas baianos; o Secretário de Segurança do Rio propõe normatizar uma legislação supostamente antiterrorista; três deputados assinam projeto de lei no mesmo sentido, para dar segurança jurídica à ilegítima Copa da Fifa...
São incontáveis os casos em que prepostos expõem-se e provam ser o Estado, em verdade, o grande fomentador do terrorismo no Brasil.
No artigo “A árvore boa”, o general Rômulo Bini Pereira abusou de ideias mofadas e ameaçou explicitamente: “(os militares) se necessário, confrontarão regimes que ideólogos gramscistas queiram impor à sociedade brasileira”.
Não se conhece reação alguma da comandante militar suprema do País (Dilma) a essa demonstração frontal de insubordinação e ameaça, pelo terror, à ordem democrática. A presidenta, por seu turno, além de deixar a sublevação da tropa correr solta, ainda botou mais lenha na fogueira do clima de insegurança por que passa o País.
Dilma colocou em prática o manual de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que reencarna o famigerado AI-5, e enviou a Ilhéus, na Bahia, 700 soldados do Exército para atuarem como polícia contra indígenas, em episódio fadado a terminar em violência.
Pensava-se que, após as críticas que a GLO sucitou há quase um mês, quando foi denunciada, o governo tivesse enterrado esse entulho autoritário. Mas, que nada. Já o está utilizando em eventos corriqueiros, quando a política e a legislação deveriam imperar, apontando que o uso esse recurso típico das ditaduras será daqui para a frente perigosamente cotidiano.
Por seu turno, o Secretário de Segurança Beltrame, do Rio, calculadamente opta pela tática do tensionamento social ao tomar a suspeita iniciativa de propor a normatização de legislação antiterrorismo – provavelmente, para legalizar a ferocidade com que a PM trata quem exerce o legítimo direito da discórdia.
Na mesma batida vão três paralamentares federais, de partidos diferentes, que, tal uma organização criminosa, tramam a criminalização de qualquer protesto, numa afronta ao direito constitucional e republicano de manifestação.
Nesse quadro grave de tensionamento social, é fácil identificar de onde partem as iniciativas que explodem na sociedade como bomba de efeito moral. É o Estado, essa invenção do ser humano feita para intermediar de forma comedida e justa as relações sociais, a origem das verdadeiras ações de terror que assustam o Brasil.

Carlos Tautz, jornalista, coordenador do Instituto Mais Democracia – Transparência e controle cidadão de governos e empresas.

Barbosa e o TSE

Folha de S. Paulo, 26 de fevereiro de 2014.

É absurdo advogado virar juiz no TSE, diz Barbosa
Segundo presidente do STF, esses ministros julgam causas com interesses 'entrecortados'
DE BRASÍLIA
 
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, voltou a criticar a existência de advogados que atuam como magistrados na Justiça Eleitoral. Aproximadamente um terço dos juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Tribunal Superior Eleitoral são advogados.
"Há coisa mais absurda que o advogado ter seu escritório durante o dia e à noite se transformar em ministro? Ele cuida de seus clientes durante o dia, tem seus honorários e à noite ele se transforma em juiz. Ele julga às vezes causas que têm interesses entrecortados e de partes sobre cujos interesses ele vai tomar decisões a noite. Estou falando da Justiça Eleitoral, que nada mais é do que isso."
O tema já havia sido abordado por ele em junho. A nova declaração foi dada no Conselho Nacional de Justiça, durante a análise de um processo em que a OAB tentava proibir que um procurador da Fazenda atuasse como assessor de um desembargador.
Barbosa rejeitou o argumento: "O juiz é um débil mental? Ele não toma decisões? Ele é comandado pelo seu assessor?".

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

10,6%

Impunidade contra a vida
21 Fev 2014

Dados do CNJ mostram que só 10,6% dos processos de homicídio recebidos até 2009 foram julgados. Vítimas criticam a demora. Entidades reclamam da falta de juízes

JULIA CHAIB


No país onde a taxa de assassinatos é superior à média preconizada internacionalmente, a impunidade é rotina. No Brasil, ocorrem 27,1 homicídios por 100 mil habitantes, de acordo com o Mapa da Violência 2013, sendo que o índice aceito pela Organização das Nações Unidas (ONU) é de 10 mortes pelo mesmo grupo de pessoas. Para piorar a situação, dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) obtidos pelo Correio mostram que os tribunais estaduais só conseguiram julgar 10,6% do total de ações de homicídios dolosos (com a intenção de matar) de denúncias recebidas até 2009. Ainda falta desfecho para 58,5 mil processos. O acúmulo de casos representa um desafio para as cortes, que terão de se esforçar, e muito, para cumprir a meta estabelecida pela Estratégia Nacional de Segurança Pública (Enasp): julgar 80% dessas ações até outubro.
O objetivo foi estabelecido pela Enasp em julho do ano passado e, dos 27 tribunais do país, apenas três conseguiram passar da metade da meta. A Corte que tem o melhor índice é a do Acre, com 60% das ações julgadas no estado. Até em regiões mais desenvolvidas, como é o caso do Distrito Federal, o desempenho é pífio: apenas 11,9% dos processos com desfecho. Em março, haverá um mutirão para agilizar esses processos no tribunal do júri, onde crimes dolosos contra a vida são julgados. A lentidão nas análises se repete a cada ano. Por causa da demora, casos como a da aluna de direito Suênia Farias, 24 anos, assassinada em 2011 pelo advogado e professor do curso Rendrik Vieira, 35, seguem sem ponto final. A jovem foi morta com um tiro na cabeça dentro do carro do acusado.
A irmã de Suênia, Cilene Farias, conta que, até hoje, foi realizada apenas uma audiência do caso, em 2012. "A gente fica com o sentimento de impunidade, porque ele é advogado. Parece que está sendo encoberto, talvez. Esquecer-se dela a gente não esquece em momento nenhum, mas sofremos mais em saber que a nossa Justiça é muito falha, porque, se ela funcionasse, talvez não houvesse tanto crimes quanto os que temos."
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), José Ricardo Costa, afirma que há hoje cerca de 20 mil juízes no Brasil. A quantidade, no entanto, não é proporcional às ações. "Teríamos de triplicar a quantidade de magistrados para regular com a demanda", admite Cunha. O conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, Guilherme Calmon, reconhece que o acúmulo e a demora estão presentes em todo o território nacional, e ressalta que, no interior, a situação é ainda pior. "No interior, há um número pequeno de magistrados e é difícil que cada vara tenha o próprio juiz, defensor ou promotor", afirma o conselheiro, que também é representante do CNJ no conselho gestor da Enasp. Depois de um tempo de experiência, esses profissionais migram para as capitais.
Calmon comenta que esse é só um dos vários fatores que levam ao acúmulo e à demora no julgamento das ações. Para o conselheiro, há muita lentidão nas etapas que antecedem a apreciação, como a dificuldade de se encontrar testemunhas. Há pessoas que desaparecem ou têm medo de depor. Outro motivo apontado pelo conselheiro é a má gestão dos processos. "É necessário ter profissionais atuantes", diz. O Código de Processo Penal estabelece prazos para a fase preliminar do julgamento, como a realização da audiência e o chamamento de testemunhas, assim que a Justiça acate a denúncia. O tempo máximo de conclusão do processo seria de 90 dias. Na prática, no entanto, esses períodos não são levados em conta. Para o juiz, não há nenhuma consequência caso ele descumpra o prazo. Já o promotor, pode ser alvo de uma representação ético-disciplinar.
Na avaliação do conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público, Walter Agra, os casos de júri nunca foram vistos como prioritários, mas isso vem ocorrendo há cerca de dois anos a partir do momento em que se começou a estabelecer metas na área. "Fizemos esforços, e boa parte das ações de crimes dolosos contra a vida já estão em ponto para o julgamento. Acredito que as metas serão cumpridas e que o mutirão que será feito no próximo mês ajudará nisso", diz. (JC)

Processômetro

A Enasp é formada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e pelo Ministério da Justiça. O grupo é responsável por se comunicar com os órgãos de segurança pública e traçar metas do combate à violência. A que prevê a erradicação de ações de crimes dolosos contra a vida é a 4ª delas e é atualizada a cada ano. Além de retomar e julgar ações que tramitam na Justiça, os tribunais devem dar desfecho para processos de homicídio que foram suspensos no meio do caminho. Os dados dos tribunais são repassados ao CNJ e compilados em uma ferramenta chamada Processomêtro.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Dilma, FFAA e a Copa

Folha de S. Paulo, 13 de fevereiro de 2014.

Dilma cogita usar Forças Armadas contra atos de vandalismo na Copa
Após protestos violentos, presidente afirma que, se for necessário, mobilizará os militares
Ministério da Defesa diz que 21 mil homens estarão em quartéis como 'contingência' e poderão ser acionados
DE SÃO PAULO (REYNALDO TUROLLO JR., PATRÍCIA BRITTO E FILIPE CO DE BRASÍLIA
 
A presidente Dilma Rousseff afirmou ontem que poderá usar até as Forças Armadas para conter protestos violentos durante a Copa do Mundo, que começa em junho.
"A Polícia Federal, a Força Nacional, a Polícia Rodoviária, enfim, todos os órgãos do governo federal estão prontos e orientados para agir dentro de suas competências. Se e quando for necessário nós mobilizaremos também as Forças Armadas", disse Dilma, em entrevista a rádios de Alagoas, ao ser questionada sobre atos de vandalismo.
A declaração ocorre após protestos violentos recentes pelo país --incluindo a morte do cinegrafista da Band Santiago Andrade, atingido por um rojão de manifestantes no último dia 6 no Rio.
O Ministério da Defesa informou que haverá 21 mil homens das Forças Armadas (incluindo Exército, Marinha e Aeronáutica) aguardando em quartéis como "força de contingência". Esse contingente poderá, entre outras coisas, atuar em protestos.
A ideia é que eles possam ser acionados se houver avaliação de que as polícias dos Estados não estejam dando conta de conter os atos.
Durante a operação, as autoridades estaduais têm de "transferir o controle operacional dos órgãos de segurança" para as Forças Armadas.
Além dos 21 mil aquartelados, que ficarão nas 12 cidades-sede da Copa e em Alagoas, Espírito Santo e Sergipe, outros 36 mil homens farão atividades regulares das Forças Armadas, como controle do espaço aéreo e segurança de portos e aeroportos.
O quadro das Forças é de 357 mil homens na ativa.
"Vamos estar muito bem preparados para garantir a segurança de todos os torcedores, dos turistas, das seleções, dos chefes de Estado que vão nos visitar. E tenho certeza que vamos fazer a Copa das Copas", disse Dilma.
Apesar de a lei permitir uma decisão exclusiva da Presidência, um possível acionamento das Forças Armadas contra protestos deverá ser negociado de comum acordo entre os governos federal e dos Estados --a quem competem questões de segurança pública.
O Ministério da Defesa publicou no último dia 3 uma nova versão do Manual de Garantia da Lei e da Ordem, que estipula as regras para acionamento dos militares em situações de emergência.
O primeiro texto, publicado em dezembro, havia causado polêmica ao classificar organizações sociais como "forças oponentes".
As Operações de Garantia da Lei e da Ordem, como são chamadas as ações com participação das Forças Armadas, servem para que haja a "preservação da ordem e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos".
Como acionar os militares requer procedimentos burocráticos que podem levar dias, isso não deve servir para conter um protesto específico que, durante seu percurso, tenha saído do controle.
Por essa razão, será preciso um trabalho de inteligência para prever riscos antes de a violência ocorrer.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A árvore e as raízes

O Estado de S. Paulo, 19 de fevereiro de 2014.

A árvore boa

19 de fevereiro de 2014 | 7h 04

Rômulo Bini Pereira* - O Estado de S. Paulo
"Quando cortam uma árvore boa e não arrancam suas raízes, brotos teimosos vão nascer sempre no que sobrou do tronco a dizerem que ela pode ressurgir e ficar mais alta, porque a sua seiva não se extinguiu e nem se extinguirá!"
Carmelo Regis

A Revolução Democrática de 31 de Março completa 50 anos este ano e já se observa elevado número de reportagens e artigos sobre esse fato histórico. Nesse diapasão, nas esferas federal, estaduais e até municipais avultam as diversas Comissões da Verdade criadas no País, a levantarem fatos que vão repercutir na opinião pública com uma visão num só sentido. Seu escopo maior é denegrir o fato histórico, cujo combustível veio do coração nacionalista do povo brasileiro no limiar do outono de 1964. Ao passo que os crimes cometidos pelas esquerdas radicais são nefanda e irresponsavelmente acobertados por essas comissões.
A atual "presidenta" da República, que participou ativamente da luta armada, em recente visita à paradisíaca Ilha de Cuba demonstrou ao mundo sua prestimosa submissão ao líder comunista Fidel Castro. Esse seu ato mostra que, se a revolução não fosse vitoriosa, estaríamos sob a vigência de uma "democracia sanguinária", semelhante à que ainda escraviza e aterroriza o povo cubano.
Após 30 anos da Nova República e de cinco governos civis, notam-se análises negativas quanto ao presente e ao futuro do Brasil. Os três Poderes da República, base de todo regime democrático, vivem hoje momentos sensíveis e preocupantes - corrupção e mordomias em todos os seus níveis.
O Legislativo é a instituição mais desacreditada, segundo pesquisas confiáveis. Legisla quase sempre em favor dos direitos, mas nem sempre se lembra dos deveres. O interesse nacional é secundário e, em consequência, temas de capital importância para o Brasil são postergados, só pelo simples fato de que podem trazer reflexos indesejados nas urnas.
O Judiciário passou a ser a esperança dos brasileiros por ter-se sobressaído sobremaneira no processo conhecido como mensalão, conduzido pela Suprema Corte. Esta, em seus debates, demonstrou, entretanto, que há áreas de atritos de cunho ideológico e partidário entre seus membros. Não fossem a morosidade no julgar e os longos trâmites nos processos jurídicos, seu conceito seria mais positivo.
O Executivo passa por sérias dificuldades, pois a "presidenta" demonstra ser incapaz de governar com seriedade, equilíbrio e competência. Diante de qualquer obstáculo, convoca especialistas em propaganda e marqueteiros para que façam diminuir ou mascarar os pontos negativos que poderão surgir, pois só o que ela e seu partido querem é conseguir a reeleição. Em relação à política externa, o anseio do governo é fazer o Brasil ter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. e isso está afastado. Nosso país está sendo ridicularizado em todo o mundo por tantos escândalos. País assim não pode postular distinção de tamanha expressão mundial.
Nos dias atuais o País vive momentos conturbados, que se vêm agravando desde os surpreendentes movimentos populares de junho de 2013. A Copa do Mundo traz efetivas preocupações ao povo brasileiro.
Manifestações ininterruptas conduzidas por vândalos transformaram algumas cidades, principalmente as capitais, em verdadeiras praças de guerra. Os "rolezinhos", já bastante disseminados, trazem em seu bojo indícios de luta de classes. A criminalidade já é endêmica entre nós e isso faz com que não mais sejamos vistos como um povo pacífico e cordato. Nossos índices de crimes anuais já atingem a cifra de 50 mil mortos/ano, próximos aos de países onde há guerra civil.
As autoridades constituídas pouco fazem para reverter essa situação. Propalam promessas vãs, são incompetentes, demonstram desinteresse e má-fé. Seu aparato policial está sempre pressionado, pois suas ações são consideradas agressivas. As soluções não surgem e o País vive uma situação de descalabro político e moral, com manifestos sinais de incipiente desobediência civil. É essa a democracia que desejamos?
Finalmente, um enorme paradoxo. As Forças Armadas continuam sendo a instituição de maior credibilidade no País, e isso é se deve não apenas à eficiência, à noção de responsabilidade, ao trato da coisa pública, mas, sobretudo, aos valores morais que são cultivados em todos os seus escalões. A honestidade, a probidade, a disciplina e o empenho no cumprimento da missão são algumas virtudes que norteiam as Forças Armadas e que deveriam também ser exercidas pelos diversos mandatários dos governos de nosso país. O que, infelizmente, não ocorre.
Na área militar nota-se ainda repulsa aos atos das citadas comissões. Ela é flagrante, crescente e de silenciosa revolta. Pensam que os integrantes das Forças Armadas - quietos, calados e parecendo subservientes - assistem passivamente aos acontecimentos atuais com sua consciência adormecida. Não é bem isso que está acontecendo!
As esquerdas sempre alardeiam que os "militares de hoje" não são como "os de 1964". Sem dúvida! Aqueles, mais preparados cultural e profissionalmente e mais informados que estes, mantêm, contudo, bem viva a mesma chama que seus predecessores possuíam e lhes legaram: o amor à liberdade, aos princípios democráticos, à instituição e ao Brasil. Também não aceitarão e, se necessário, confrontarão regimes que ideólogos gramscistas queiram impor à sociedade brasileira, preconizados pelo Foro de São Paulo, órgão orientador do partido que nos governa e de alguns países da América do Sul que se dizem democratas.
Mesmo sendo vilipendiada, devemos saudar a Revolução Democrática. É voz geral entre os esquerdistas que 64 jamais será esquecido. Ótimo, nós, civis e militares que a apoiamos, também não a esqueceremos. A Revolução de 1964 será sempre uma "árvore boa"!
*Rômulo Bini Pereira é general de Exército e foi chefe do Estado Maior de Defesa.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Baixa qualidade

  O Globo, 18 de fevereiro de 2014.

 

Democracia de baixa qualidade

Merval Pereira, O Globo
A discussão sobre a lei antiterrorismo brasileira fica emperrada pelo temor de que uma definição muito ampla do que seja o crime possa permitir uma ação autoritária do governo da ocasião para enquadrar movimentos sociais legítimos nas duras penas que seriam aplicadas aos terroristas. E todos aqueles que defendem um rigor na punição passam a ser considerados white blocs, reacionários, saudosistas da ditadura militar.
Os dois acusados da morte do cinegrafista Santiago Andrade responderão por homicídio doloso (com intenção de matar) triplamente qualificado: motivo torpe, que a vítima não teve possibilidade de defesa e que foi usado um artefato explosivo para tirar a vida da vítima, o que demonstra como é preciso recorrer a estratagemas jurídicos para punir com rigor os autores desses atos criminosos, pois a legislação atual é muito branda.
Quando não há mortes, então, aí o melhor é liberar os vândalos, que dá menos aborrecimento político. O tal do “Fox” já havia sido preso duas vezes em manifestações. A pena existente hoje para danos ao patrimônio público, por exemplo, é de seis meses a um ano de reclusão. Os dois ainda responderão pelo crime de explosão em área pública — com pena de até quatro anos.
O projeto antiterrorismo inclui previsão de pena maior quando há emprego de “explosivo, fogo, arma química, biológica ou radioativa, ou outro meio capaz de causar danos ou promover destruição em massa”.
A preocupação de proteger as manifestações populares é legítima, mas seria desnecessária se nosso sistema democrático estivesse já mais consolidado. Ou se o sistema jurídico funcionasse com eficiência e rapidez.
Em democracias maduras, a legislação antiterrorismo não impede grandes demonstrações populares a favor ou contra qualquer coisa, com o detalhe de que essas manifestações têm dia e hora marcados com as autoridades locais, que definem a área em que poderão ser feitas. Esse detalhe é fundamental para que o dia a dia das pessoas seja protegido.
Essa discussão toda deixa claro que ainda estamos em uma democracia incipiente, de baixa qualidade, na qual quem se julga “de esquerda” sente-se protegido por suas supostas boas intenções, e quem é considerado “de direita” é automaticamente um ser inferior, culpado de todos os males sobre a terra.
Por isso os black blocs foram tratados, e ainda o são, por setores de nossa intelectualidade e por políticos como uma vanguarda do progresso, e os primeiros movimentos no sentido de enquadrá-los em legislação mais dura encontraram resistência de partidos e intelectuais “de esquerda” que consideram ainda, a despeito da morte do cinegrafista, uma estética de luta adequada à pós-modernidade.
Desde os anos 1980, esse tipo de ação política vem sendo combatido com rigor na Europa e países democráticos como a Alemanha e a Holanda já proibiram os mascarados em manifestações há muito tempo, e nós aqui ficamos brincando de democracia, preocupados com a proteção de pessoas que a desprezam e estão nas ruas para tentar destruí-la.
Se já tivéssemos tido uma ação mais rigorosa, talvez não acontecesse a tragédia que agora todos lamentam. Se partidos políticos de extrema esquerda em vez de apoiar a tática dos black blocs tivessem repelido as ações violentas, talvez a tragédia não se consumasse.
Se direitistas empenhados em tumultuar o ambiente político não tivessem utilizado o lumpesinato para promover arruaças pelas ruas do Rio ou se fossem repelidos desde o primeiro momento, talvez a ação dos black blocs não chegasse onde chegou. Mas todos, no íntimo, achavam que a confusão generalizada serviria a seus interesses imediatos, e foram lenientes na condenação dos atos de vandalismos.
Agora, mais uma vez, nos vemos envolvidos em uma discussão banal sobre a proibição de mascarados em manifestações. O ministro da Justiça José Eduardo Cardozo a muito custo aceitou a proibição das máscaras, mas ainda insiste na possibilidade de os mascarados serem abordados pelos policiais para que se identifiquem e só depois da recusa poderiam ser detidos.
Ora, quem vai mascarado para um protesto está disposto a se esconder, a fugir de suas responsabilidades. Não há por que aceitar esse tipo de procedimento.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Democracia ameaçada?

Folha de S. Paulo, 17 de fevereiro de 2014.

Aécio Neves
Democracia
A morte estúpida do cinegrafista Santiago Andrade, vítima de um ato inconsequente em pleno exercício de seu trabalho, deve inspirar uma profunda reflexão em todos nós, especialmente em quem tem responsabilidade com as decisões que definem os rumos do país.
A verdade é que o Brasil mudou. O país de hoje, com mais de 160 milhões de pessoas vivendo nas cidades, é um imenso território de contradições e desafios, onde antigas mazelas permanecem intocadas e insanáveis.
Fruto de políticas sociais implementadas há pelo menos duas décadas, milhões de brasileiros tiveram inegável melhoria em suas condições de vida. No entanto, a ascensão social alcançada ainda mantém inalterada uma estrutura secular de desigualdade.
A cada dia, desde o último ano, fica claro que uma crescente intolerância vem se instalando entre nós. De um lado, a intolerância com o outro --são exemplos disso as inaceitáveis perseguições às minorias sociais e as ações dos grupos de justiçamento. Na outra ponta, a intolerância no discurso virulento contra as instituições democráticas do país, presente com assiduidade espantosa nas redes sociais, muitas vezes em espaços sob o patrocínio direto de verbas públicas federais.
A hostilidade parece insuflada por um sectarismo que identifica inimigos onde deveria enxergar apenas a diferença e mina o equilíbrio democrático, que pressupõe, fundamentalmente, o respeito ao direito e às ideias do outro.
Devemos dizer "não" a este estado de coisas. A legitimidade das manifestações populares deve ser respeitada, mas é fundamental que seja garantida a integridade física das pessoas e do patrimônio público. Assim, precisa ser investigada com rigor a denúncia de que partidos políticos estariam financiando atos de violência que colocam em risco a segurança da população.
Limite não é sinônimo de autoritarismo. Muitas vezes significa compromisso com a sociedade democrática.
Democracia implica instituições sólidas, estáveis; Legislativo e Executivo eleitos de forma direta e no pleno exercício das suas responsabilidades; Judiciário independente; imprensa livre e partidos políticos representativos de ideias e princípios de grupos sociais. Essas são conquistas das quais não podemos abdicar.
Ouso dizer que, nos 30 anos das Diretas-Já e nos quase 50 anos do golpe militar, mais do que nunca, precisamos estar vigilantes e mobilizados em defesa do Estado de direito. Em defesa do respeito às leis e às instituições.
Só os valores democráticos são capazes de apontar o caminho a uma sociedade em crise de confiança, frustrada em seus sonhos e insegura com o seu futuro. E, principalmente, indignada com a realidade que vivencia.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Direitos Humanos seletivos?

Blog do Noblat,  15 de fevereiro de 2014.

Direitos humanos seletivos

Ruy Fabiano
A defesa dos direitos humanos, imperativo civilizatório, perde sentido e substância quando contaminada pelo viés ideológico. Direitos humanos não são nem de direita, nem de esquerda; ou se aplicam a todos ou apenas instrumentalizam um projeto de poder, o que configura mais um tipo de violação.
É o que tem ocorrido no Brasil há já muitos anos, ao ponto de sua simples menção provocar mais suspeita que conforto em grande parte da sociedade. Isso porque raramente as organizações humanitárias preocupam-se com o destino das vítimas, concentrando-se habitualmente nos agressores ou naqueles que personificam a luta política que consideram emblemática.
Vejamos os fatos mais recentes. O ajudante de pedreiro Amarildo de Souza desapareceu de sua residência, na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em julho do ano passado.
As investigações indicam que foi morto por PMs. Mas, bem antes de sua morte estar evidenciada, fez-se campanha nacional, de grande repercussão, para denunciá-la. Muito justo e necessário. Artistas interrompiam shows para reclamar de seu paradeiro.
Porém, dia 2 passado, a PM Alda Rafael Castilho, de 22 anos, foi covardemente assassinada, com um tiro no estômago, em seu posto na UPP de Vila Cruzeiro, no Rio.
Eram 15 os bandidos, que balearam outro PM, Melquisedeque Basílio, de 29 anos, e atingiram, com balas perdidas, um casal, sendo que a moça, Elaine Mariano, ferida na cabeça, está em estado grave no hospital. Alda foi o oitavo policial morto desde que as UPPs se instalaram, em 2008.
Alguma manifestação? Algum artista interrompeu seu show para reclamar sua morte? Algum muro na cidade para lembrar o crime? Alguma ONG empenhada em auxiliar a família das vítimas? Alguma declaração da ministra dos Direitos Humanos? Não.
O episódio circunscreveu-se ao noticiário de jornal. Policial, segundo se depreende de tal silêncio, não é humano – e, portanto, não tem direitos. Vamos em frente.
No dia 3 passado, em São Luís, Maranhão, bandidos tocaram fogo em um ônibus cheio de passageiros. Vários feridos e uma criança de seis anos, Ana Clara Santos Souza, carbonizada. O crime chocou a opinião pública, mas não se tem notícia de qualquer protesto por parte das ONGs humanitárias ou qualquer pronunciamento da ministra dos Direitos Humanos.
Dia 11, Kaíque Augusto Batista dos Santos, de 17 anos, foi encontrado morto em São Paulo, embaixo de um viaduto, com o rosto deformado e uma fratura exposta na perna.
Antes que a perícia se manifestasse, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, ao saber que se tratava de um negro e homossexual, resolveu todo o enigma: o rapaz fora assassinado por homofóbicos racistas. Aproveitou, em nota oficial, para pedir rapidez na aprovação da lei que criminaliza a homofobia.
Ato contínuo, organizações de homossexuais, ONGs de direitos humanos e partidos de esquerda entraram em cena para reverberar as palavras da ministra. Chegaram a fazer uma manifestação de protesto no local. Dias depois, o diagnóstico da polícia, reconhecido pela família, silenciou o protesto: Kaíque se suicidara. Seu cadáver perdeu então importância.
No dia 31 passado, um adolescente negro foi espancado e amarrado a um poste no bairro do Flamengo, Rio. Ele teria praticado roubos nas redondezas e fora justiçado por rapazes de classe média, que, na ausência da polícia, decidiram agir como milicianos. Um absurdo, claro.
Porém, o alarido que as mesmas organizações promoveram em defesa do rapaz – justa, diga-se – contrasta com o silêncio em torno da morte da PM Alda e da menina Ana Clara.
Em São Paulo, dia 25 passado, a polícia baleou o black bloc Fabrício Proteus Chaves, de 22 anos, que investira contra um policial com um estilete na mão. A mesma turma dos direitos humanos, antes que as imagens colhidas do episódio viessem à tona – e comprovassem que a polícia agiu em legítima defesa – julgaram e condenaram os PMs.
Fabrício tinha em sua mochila, entre outros artefatos, duas bombas caseiras e uma chave inglesa, usada para quebrar vitrines e caixas eletrônicos. O episódio serviu também para que diversos personagens do meio político e artístico reiterassem a legitimidade da ação predadora dos black bloc.
No Rio, dois black bloc mataram o cinegrafista Santiago Andrade. Antes que as imagens fossem divulgadas – e mostrassem a autoria efetiva -, um repórter de TV disse ter visto a polícia jogar a bomba. Abriu-se uma discussão para atenuar o crime. Os rapazes não queriam matar o cinegrafista. Quem então? Um policial? Talvez. Não haveria tanto barulho. Polícia não é gente.
Esta semana, em Brasília, uma manifestação do MST feriu 30 PMs, sendo oito em estado grave. Alguma solidariedade às famílias, alguma declaração da ministra contra a violência? Nada.
Indignação seletiva é sempre falsa – e, em vez de combater a violência, realimenta-a.

Ruy Fabiano é jornalista.

Jornalistas mortos

Folha de S. Paulo, 15 de fevereiro de 2014.


Dono de jornal no Rio é morto com três tiros
Pedro Palma apontou irregularidades em prefeituras no Estado; ANJ repudia assassinato
DO RIO O jornalista Pedro Palma, 47, foi morto com três tiros no município de Miguel Pereira, no sul do Estado do Rio. Pereira estava chegando em sua casa por volta de 19h30 quando foi alvejado no portão, enquanto aguardava sua filha abrir a porta da residência.
O caso foi registrado na 96ª DP, em Miguel Pereira. Segundo o delegado Murilo Montanha, Pereira foi atingido por dois tiros no peito e um no ombro direito. Ele morreu na hora. Os disparos foram feitos por dois homens, que fugiram em uma motocicleta.
O jornalista era dono do jornal "Panorama Regional", no município de Paty do Alferes (a 117 km do Rio), e vinha denunciando irregularidades em prefeituras da região. Além de Paty do Alferes, o jornal circula em Miguel Pereira, Vassouras, Mendes, Engenheiro Paulo de Frontin, Barra do Piraí, Piraí, Valença, Paracambi e Paraíba do Sul.
O delegado disse que por enquanto não há suspeitos. Ele aguarda depoimento dos familiares do jornalista.
Em nota, a ANJ (Associação Nacional de Jornais) disse que repudia veementemente o assassinato de Pedro Palma, que vem a ser "a terceira morte registrada nesta semana envolvendo profissionais de imprensa". No último dia 10 morreu o cinegrafista Santiago Andrade, no Rio, e no dia 11 o radialista Edy Wilson da Silva Dias, no Espírito Santo.
Segundo a entidade, "tais fatos, além da cruel perda de vidas humanas e de sofrimentos às famílias dos profissionais, se impunes, representam grave ameaça à liberdade de expressão e à vigência da democracia no país".

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Exército e segurança pública

O Globo, 13 abril de 30014.

EXÉRCITO TENTA CONTER PROTESTO NA BA
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Em Buerarema, na Bahia, um comando do Exército com 150 soldados chegou ontem para tentar protestos de pequenos produtores que, desde a manhã da terçafeira, estão revoltados com a morte do pequeno fazendeiro Juraci dos Santos de Santana. Um conflito entre ruralistas e índios Tupinambás causa tensão na região desde o ano passado. Na noite de terça, cerca de cem pessoas fizeram um quebra- quebra no comércio de Buerarema.
Ao longo do dia eles já haviam bloqueado a BR-101, próximo ao trevo de entrada da cidade. Foram dispersados na rodovia pela PM. À noite, entraram em confronto com a Força Nacional, que usou balas de borracha e bombas de efeito moral. Cerca de 10 mil pessoas ocuparam a Praça Domingos Cabral, em Buerarema, para velar o corpo do produtor rural.

Estranha estatística sobre mortes em São Paulo

Folha de S. Paulo, 9 de fevereiro de 3014.

Clóvis Rossi
Não éramos cordiais?
O nível impressionante de violência no cotidiano está cada vez mais próximo de uma barbárie intolerável
 
A morte do cinegrafista Santiago Andrade não configura um atentado à liberdade de imprensa, ao contrário do que tantos apregoam.
É muito pior que isso: é um atentado ao convívio civilizado entre brasileiros, um degrau a mais na escalada impressionante de violência que está empurrando o país para um teor ainda mais exacerbado de barbárie.
O incidente com o cinegrafista é parte de uma coreografia de violência crescente que se dá por onde quer que se olhe.
Nunca se matou com tanta facilidade em assaltos. Nunca se apertou o gatilho com tanta facilidade. É até curioso que as estatísticas policiais no Estado de São Paulo apontem uma redução no número de homicídios dolosos, como se fosse um avanço, quando aumenta o número de vítimas de latrocínio, que não passa de homicídio precedido de roubo.
De fato, em 2013, o número de latrocínios (379) foi o mais alto em nove anos, com aumento de 10% em relação aos 344 casos do ano anterior.
Mas a violência não é um fenômeno restrito à criminalidade. A polícia age muitas vezes com uma violência desproporcional.
A vida nas cidades e, cada vez mais, no interior é de uma violência inacreditável. O trânsito é uma violência contra a mente humana. O transporte público violenta dia após dia. Não é um atentado aos direitos humanos perder às vezes três horas entre ir e voltar do trabalho?
A saúde é uma violência contra o usuário. A educação violenta, pela sua baixa qualidade, o natural anseio de ascensão social.
A existência de moradias em zonas de risco é outra violência.
A contaminação do ar mata ou fere de maneira invisível os habitantes das cidades em que o nível de poluição supera o mínimo tolerável.
Não adianta, agora, culpar o governo do PT ou a suposta herança maldita legada pelo PSDB, ou os crimes praticados pela ditadura militar ou a turbulência que precedeu o golpe de 1964. O país foi sendo construído de maneira torta, irresponsável, sem o mais leve sinal de planejamento, de preparação para o futuro.
Acumularam-se violências em todas as áreas de vida. A explosão no consumo de drogas exacerbou, por sua vez, a violência da criminalidade comum. Não há "coitadinhos" nessa história. Há delinquentes e vítimas e há a incompetência do poder público.
É como escreveu, para Carta Capital, esse impecável humanista chamado Luiz Gonzaga Belluzzo:
"O descumprimento do dever de punir pelo ente público termina por solapar a solidariedade que cimenta a vida civilizada, lançando a sociedade no desamparo e na violência sem quartel".
Antes que o desamparo e a violência sem quartel se tornem completamente descontrolados, seria desejável o surgimento de lideranças capazes de pensar na coisa pública, em vez de se dedicarem a seus interesses pessoais, mesmo os legítimos.
Alguém precisa aparecer com um projeto de país, em vez de projetos de poder. Não é por acaso que 60% dos brasileiros querem mudanças, ainda que não as definam claramente. A encruzilhada agora é entre ideias e rojões.

STF suspende sessão de trabalhos

Folha de S. Paulo, 9 de fevereiro de 2014,

Marcha do MST acaba em confronto e com mais de 30 feridos em Brasília
Após tentativa de invasão, sessão do Supremo chegou a ser suspensa por quase uma hora
Movimento critica governo Dilma pelo ritmo mais lento de desapropriações na reforma agrária
DE BRASÍLIA
 
Uma marcha de integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) terminou ontem em confronto com a Polícia Militar, tentativa de invasão de órgãos públicos e mais de 30 feridos na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.
Uma sessão do STF (Supremo Tribunal Federal) chegou a ser suspensa por quase uma hora pelos ministros, que alegaram falta de segurança para continuar os trabalhos.
A marcha estava na programação do 6º Congresso Nacional do MST, que ocorre desde o início da semana na capital. Cerca de 15 mil pessoas participaram, segundo estimativas da Polícia Militar e dos organizadores.
A primeira confusão começou quando os manifestantes tentaram invadir o STF. Eles levavam faixas pedindo a reforma agrária e melhorias na educação, além de criticar o julgamento do mensalão.
Impedidos pelos seguranças e policiais, os manifestantes seguiram para o Palácio do Planalto com o objetivo de entregar uma carta de reivindicações à presidente Dilma Rousseff, criticada pelo ritmo mais lento de desapropriações na reforma agrária e que ontem comemorou os resultados do agronegócio em Mato Grosso --o MST elege o setor como vilão.
Ao chegar ao local, os sem-terra derrubaram as grades de proteção, mas foram contidos pela barreira de policiais que fazia a segurança.
Quando a situação se acalmou, o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, desceu até o local e recebeu a carta de reivindicações --agilização da reforma e mais estrutura nos assentamentos.
"Eles têm que fazer pressão mesmo", comentou Carvalho. Segundo sua assessoria, Dilma receberá hoje integrantes do movimento.
Em nota, a PM diz que dos 30 policiais atendidos em hospitais, 8 ficaram ficaram feridos mais gravemente depois de serem atingidos por pedras, pedaços de pau e barras de ferro. À noite, todos foram liberados.
Dois integrantes do movimento também se feriram e um foi detido. Os sem-terra dizem que os policiais começaram a confusão ao impedir que eles utilizassem materiais, guardados em um ônibus, que seriam utilizados em performances teatrais.
Policiais usaram balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e armas taser, que imobilizam por meio de choques, para dispersar a multidão.
Durante o momento mais crítico do confronto, em frente ao Palácio do Planalto, havia 250 PMs fazendo a segurança do local, segundo o coronel Florisvaldo César, comandante do policiamento metropolitano. Alguns grupos foram encurralados pelos sem-terra.
Durante a marcha, segundo a PM, cerca de 600 policiais estavam em diferentes pontos do percurso. (AGUIRRE TALENTO, FILIPE COUTINHO, MARIANA HAUBERT E SEVERINO MOTTA)

O quanto de desigualdade uma democracia tolera?

Folha de S. Paulo, 9 de fevereiro de 2014.

Eduardo Giannetti
Igualdade de quê?
A desigualdade não é um mal em si --o que importa é a legitimidade do caminho até ela. A justiça depende do enredo subjacente
 
O filósofo grego Diógenes fez do controle das paixões e da autossuficiência os valores centrais de sua vida: um casaco, uma mochila e uma cisterna de argila na qual pernoitava eram suas posses.
Intrigado, o imperador Alexandre Magno foi até ele e propôs: "Sou o homem mais poderoso do mundo. Peça o que desejar e lhe atenderei". Diógenes não titubeou: "O senhor poderia sair um pouco de lado, pois sua sombra está bloqueando o meu banho de sol".
O filósofo e o imperador são casos extremos, mas ambos ilustram a tese socrática de que, entre os mortais, o mais próximo dos deuses em felicidade é aquele que de menos coisas carece. Alexandre, ex-pupilo e mecenas de Aristóteles, aprendeu a lição. Quando um cortesão zombava do filósofo por ter "desperdiçado" a oferta que lhe fora feita, o imperador retrucou: "Pois saiba, então, que se eu não fosse Alexandre, eu desejaria ser Diógenes". Os extremos se tocam.
O que há de errado com a desigualdade do ponto de vista ético? Como o exemplo revela, a desigualdade não é um mal em si --o que importa é a legitimidade do caminho até ela.
A justiça --ou não-- de um resultado distributivo depende do enredo subjacente. A questão crucial é: a desigualdade observada reflete essencialmente os talentos, esforços e valores diferenciados dos indivíduos ou, ao contrário, ela resulta de um jogo viciado na origem --de uma profunda falta de equidade nas condições iniciais de vida, da privação de direitos elementares e/ou da discriminação racial, sexual ou religiosa?
O Brasil fez avanços reais nos últimos 20 anos, graças à conquista da estabilidade econômica e das políticas de inclusão social. Continuamos, porém, sendo um dos países mais desiguais do planeta. No ranking da distribuição de renda, somos a segunda nação mais desigual do G-20, a quarta da América Latina e a 12º do mundo.
Mas não devemos confundir o sintoma com a moléstia. Nossa péssima distribuição de renda é fruto de uma grave anomalia: a brutal disparidade nas condições iniciais de vida e nas oportunidades das nossas crianças e jovens de desenvolverem adequadamente suas capacidades e talentos de modo a ampliar o seu leque de escolhas possíveis e eleger seus projetos, apostas e sonhos de vida.
Nossa "nova classe média" ascendeu ao consumo, mas não ascendeu à cidadania. Em pleno século 21, metade dos domicílios não tem coleta de esgoto; a educação e a saúde públicas estão em situação deplorável; o transporte coletivo é um pesadelo diário; cerca de 5% de todas as mortes --em sua maioria pobres, jovens e negros-- são causadas por homicídios e um terço dos egressos do ensino superior (se o termo é cabível) é analfabeta funcional.
Faltam recursos? Não parece ser o caso, pelo menos quando se trata de adquirir uma nova frota de jatos supersônicos suecos; ou financiar a construção de estádios "padrão Fifa" (boa parte fadada à ociosidade); ou licitar a construção de um trem-bala de R$ 40 bilhões ou bancar um programa de submarinos nucleares de R$ 16 bilhões. O valor dos subsídios cedidos anualmente pelo BNDES a um seleto grupo de grandes empresas-parceiras supera o valor total do Bolsa Família. O que falta é juízo.
O Brasil continuará sendo um país violento e absurdamente injusto, vexado de sua desigualdade, enquanto a condição da família em que uma criança tiver a sorte ou o infortúnio de nascer exercer um papel mais decisivo na definição do seu futuro do que qualquer outra coisa ou escolha que ela possa fazer.
A diversidade humana nos dá Diógenes e Alexandre. Mas a falta de um mínimo de equidade nas condições iniciais e na capacitação para a vida tolhe a margem de escolha, vicia o jogo distributivo e envenena os valores da nossa convivência. A desigualdade nas oportunidades de autorrealização, ouso crer, é a raiz dos males brasileiros.
EDUARDO GIANNETTI, 56, é economista, doutor pela Universidade de Cambridge e escritor

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Terrorismo?

Folha de S. Paulo, 11 de fevereiro de 2014.

Elio Gaspari
A histeria dos comissários
Manifestante é manifestante, delinquente é delinquente, bandido é bandido e terrorista é terrorista
Os surtos histéricos diante da violência urbana dão em nada. Se dessem, ela já teria acabado há décadas. Já os surtos de histeria política, quando dão em alguma coisa, acabam mutilando as liberdades públicas.
O senador Jorge Viana defendeu a aprovação em regime de urgência de um projeto de seu colega petista Paulo Paim que classifica como terrorismo os atos de violência física praticados durante manifestações de rua. Depredações e mesmo desacato à autoridade policial são delitos previstos no Código Penal. Isso para não se mencionar o homicídio do cinegrafista Santiago Andrade.
O projeto petista define assim o ato terrorista:
"Provocar ou difundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoas".
A pena iria de 15 a 30 anos de prisão. Se a ação resultar em morte, sobe de 24 a até 30 anos. Fica por aí porque esse é o limite máximo da pena de reclusão nas leis brasileiras.
Deixando-se de lado o caráter vago do que seria "provocar ou difundir terror ou pânico generalizado" e a precisão da pena mínima (15 anos de reclusão), pode-se buscar um caso semelhante de histeria, com danos historicamente conhecidos.
Que tal assim?
Será crime "comprometer a segurança nacional, sabotando quaisquer instalações militares, navios, aviões, material utilizável pelas Forças Armadas, ou ainda meios de comunicação e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, depósitos e outras instalações:
Pena: reclusão de 8 a 30 anos."
Essa era a redação do artigo 11º da Lei de Segurança Nacional, baixada a 21 de outubro de 1969, no auge da ditadura, pouco depois do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick.
A pena mínima para um sabotador de quartel ou aeroporto (imputações específicas) era de 8 anos. Para assalto a banco ou sequestro de avião ela ia de 10 a 24 anos. Nos dois casos, as penas eram inferiores às que prevê o surto petista. Caso o delito resultasse em morte, a pena seria de fuzilamento. Apesar de ter havido uma condenação, ninguém foi executado dentro das normas legais.
O comissariado quer expandir a definição de terrorismo precisamente numa época em que sexagenários que militaram em organizações da esquerda armada aborrecem-se quando alguns de seus atos são chamados de ações terroristas. O atentado do aeroporto dos Guararapes, por exemplo, quando explodiu uma bomba no saguão, matando duas pessoas e ferindo 14. Ele ocorreu em 1966, dois anos antes da edição do Ato Institucional nº 5. Oito meses antes do AI-5, um documento do Comando de Libertação Nacional, o Colina, dizia que "o terrorismo, como execução (nas cidades e nos campos) de esbirros da reação, deverá obedecer a um rígido critério político". Assim, quatro meses antes da edição do AI-5 mataram um major alemão que pensavam ser o capitão boliviano que estivera na operação que resultou no assassinato do Che Guevara. Nessa organização militava, com o codinome de Wanda, a doutora Dilma Rousseff. Tinha seus 20 anos e nunca foi acusada de ter participado de ação armada.
Como diria Ancelmo Gois: "Calma, gente".

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Impassse na gestão pública?


Falta transparência na administração pública
José Matias Pereira
O Globo - 10/02/2014

É relevante alertar que o Brasil — diante da gravidade da informação de que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não repassa dados necessários para permitir que o Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF) possam aferir suas operações mais volumosas — está caminhando para inquietante e iminente cenário de conflitos políticos e institucionais.
Conforme se depreende das informações veiculadas pela mídia, o BNDES — que recebeu, desde o início da crise econômica mundial, volume superior a R$ 400 bilhões do Tesouro Nacional — vem dificultando de forma sistemática, desde junho de 2013, o acesso a informações detalhadas que permitam ao TCU realizar auditoria para verificar a regularidade do uso de recursos do banco na construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, bem como em outras duas obras de concessionárias de serviços públicos: uma linha de transmissão para distribuir energia no Centro-Oeste e um terminal portuário em Salvador.
No caso específico da hidrelétrica de Belo Monte, conforme assinala o presidente do TCU, não foram disponibilizadas informações básicas, como relatórios de análise, fontes de publicações e sites especializados que serviram de base para o orçamento e a análise da capacidade de pagamento do consórcio. O total do empréstimo concedido pelo BNDES para o consórcio Norte Energia S.A. para a construção da usina é de R$ 22,5 bilhões.
É sabido que onde existe fumaça há fogo. A resistência do BNDES em facilitar o acesso aos dados solicitados pelo MPF e pela auditoria do TCU sinaliza a possibilidade da existência de indícios que podem revelar desvios e irregularidades na concessão de grandes empréstimos subsidiados.
Frente a esse contexto obscuro, torna-se recomendável fazer duas perguntas. A primeira é se a recusa do BNDES em dar informações detalhadas para permitir uma avaliação da consistência dos megaempréstimos concedidos a diversas empresas atenta contra os dispositivos constitucionais que tratam do controle e da transparência na administração pública. A segunda, se essa postura da intituição é indício de que, por trás das operações, teria havido eventual colaboração, parceria ou conivência de dirigentes, políticos e empresários para viabilizar as transações.
A notícia de que a Procuradoria da República enviou ofício ao BNDES para saber, entre outros dados, quais os 10 maiores valores de projetos de financiamento aprovados revela, em princípio, que as instituições brasileiras, notadamente as da área de controle, estão empenhadas em cumprir suas funções constitucionais.
Registre-se que a recusa do BNDES, considerando a pouca relevância que um dirigente de uma instituição financeira tem na estrutura hierárquica do governo, evidencia indícios de que a ordem para dificultar o acesso às informações vem de autoridades que estão no topo da estrutura governamental.
Assim, em que pese a retórica dos discursos oficiais — favoráveis ao acesso às informações das ações e atividades do Estado, sem restrições, facilitando o controle social —, a recusa do BNDES em responder de forma detalhada e tempestiva os questionamentos do MPF, alegando que os atos referentes à sua gestão bancária, exceto em casos previstos em lei, devem ser mantidos privados, indica que, na prática, prevalece um preocupante desprezo dos dirigentes pelas instituições, em especial, pelos órgãos de controle.
Deve-se recordar que os esquemas montados pelo governo para viabilizar grandes projetos com recursos públicos, tendo como principal financiador o BNDES, começou a desmoronar com o pedido de falência, em 2013, das empresas X. A recusa do banco em fornecer os dados revela fortes indícios de que existe uma preocupação por parte dos dirigentes em resguardar o governo, os políticos e os empresários beneficiados por esses volumosos — e até o momento obscuros — empréstimos.
É relevante alertar: caso os governantes e os políticos continuem nessa escalada insana — recusando-se a se submeterem à Constituição e aos órgãos de controle e negando-se a dar maior transparência às ações e atividades da administração pública —, vislumbra-se, em horizonte não muito distante, uma crise de governabilidade que pode levar o país a vivenciar indesejada situação de impasse na gestão pública.

Economista e advogado, doutor em ciência política e pós-doutor em administração, é professor de administração pública e pesquisador associado do programa de pós-graduação em contabilidade da Universidade de Brasília (UnB)