O Estado de S. Paulo, 27 de
setembro de 2012.
A teoria política da
corrupção
Demétrio
Magnoli
Nos idos
de 2005 o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos formulou o discurso
adotado pelo PT em face do escândalo do mensalão. O noticiário, ensinou,
constituiria uma tentativa de "golpe das elites" contra o
"governo popular" de Lula. No ano passado o autor da tese assumiu a
presidência da Casa de Rui Barbosa, cargo de confiança subordinado ao
Ministério da Cultura. É nessa condição que, em entrevista ao jornal Valor
(21/9), ele reativa sua linha de montagem de discursos "científicos"
adaptados às conveniências do lulismo. Desta vez, para crismar o julgamento do
mensalão como "julgamento de exceção" conduzido por uma Corte
"pré-democrática".
A
entrevista diz algo sobre o jornalismo do Valor. As perguntas não são
indagações, no sentido preciso do termo, mas introduções propícias à exposição
da tese do entrevistado - como se (oh, não, impossível!) jornalista e intelectual
engajado preparassem o texto a quatro mãos. Mas a peça diz uma coisa mais
importante sobre o tema do compromisso entre os intelectuais e o poder: o
discurso científico sucumbe no pântano da fraude quando é rebaixado ao estatuto
de ferramenta política de ocasião.
Os
ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) narraram uma história de
apropriação criminosa de recursos públicos e de fabricação de empréstimos
fraudulentos pela direção do PT, que se utilizou para tanto das prerrogativas
de quem detém o poder de Estado. Wanderley Guilherme, contudo, transita em
universo paralelo, circundando o tema da origem do dinheiro e repetindo a
versão desmoralizada da defesa: "O que os ministros expuseram até agora é
a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais (...). Isso eles se recusam a
discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum (...), como se
fosse algum projeto maligno".
Wanderley
Guilherme não parece incomodado com a condenação dos operadores financeiros do
esquema, mas interpreta os veredictos dos ministros contra os operadores
políticos (ou seja, os dirigentes do PT) como frutos de um "desprezo
aristocrático" pela "política profissional". O dinheiro desviado
serviu para construir uma coalizão governista destituída de um mínimo de consenso
político, explicou a maioria do STF. O cientista político, porém, atribui o
diagnóstico a uma natureza "pré-democrática" de juízes incapazes de
compreender tanto os defeitos da legislação eleitoral brasileira quanto o
funcionamento dos "sistemas de representação proporcional", que
"são governados por coalizões das mais variadas".
O núcleo
do argumento serviria para a defesa de todo e qualquer "mensalão". Os
acusados tucanos do "mensalão mineiro" e os acusados do DEM do
"mensalão de Brasília" estão tão amparados quanto os petistas por uma
concepção da "política profissional" que invoca a democracia para
justificar a fraude do sistema de representação popular e qualifica como
aristocráticos os esforços para separar a esfera pública da esfera privada. A teoria
política da corrupção formulada pelo intelectual deve ser lida como um
manifesto em defesa de privilégios de impunidade judicial do conjunto da elite
política brasileira.
Mas,
obviamente, o argumento perde a força persuasiva se for lido como o que, de
fato, é. Para ocultar seu sentido, conferindo à obra uma coloração
"progressista", Wanderley Guilherme acrescenta-lhe uma camada de
tinta fresca. A insurreição "aristocrática" do STF contra a
"política democrática" derivaria da rejeição a uma novidade histórica:
a irrupção da "política popular de mobilização", representada pelo
PT. A Corte Suprema estaria "reagindo à democracia em ação" por meio
de um "julgamento de exceção", um evento singular que "jamais
vai acontecer de novo".
É nesse
ponto do raciocínio que a teoria política da corrupção se transforma na
corrupção da teoria política. Uma regra inviolável do discurso científico,
explicou Karl Popper, é a exigência de consistência interna. Um discurso só tem
estatuto científico se estiver aberto a argumentos racionais contrários. Quando
apela à profecia de que os tribunais não julgarão outros casos com base na
jurisprudência estabelecida nos veredictos do mensalão, Wanderley Guilherme
embrenha-se pela vereda da fraude científica. A sua hipótese sobre o futuro -
que, logicamente, não pode ser confirmada ou falseada - impede a aplicação do
teste de Popper.
Há duas
leituras contrastantes, ambas coerentes, sobre o "mensalão do PT". A
primeira acusa o partido de agir "como os outros", entregando-se às
práticas convencionais da tradição patrimonial brasileira e levando-as a
consequências extremas. O diagnóstico, uma "crítica pela esquerda",
interpreta o extenso arco de alianças organizado pelo lulismo como fonte de
corrupção e atestado da falência da natureza transformadora do PT. A segunda
acusa o partido de operar, sob o impulso de um projeto de poder autoritário,
com a finalidade de quebrar os contrapesos parlamentares ao Executivo e se
perpetuar no governo. A "crítica pela direita" distingue o "mensalão
do PT" de outros casos de corrupção política, enfatizando o caráter
centralizado e as metas de longo prazo do conjunto da operação.
A leitura
corrompida de Wanderley Guilherme forma uma curiosa alternativa às duas
interpretações. Seu núcleo é uma celebração da corrupção inerente à política
patrimonial tradicional, que seria a "política profissional" nos
"sistemas de representação proporcional". Seu verniz aparente, por
outro lado, é um elogio exclusivo da corrupção petista, que expressaria a
"irrupção da política de mobilização popular" e a "democracia em
ação". Na fronteira em que o pensamento acadêmico se conecta com a
empulhação militante, o paradoxo pode até ser batizado como dialética. Contudo
mais apropriado é reconhecê-lo como um reflexo especular da fotografia na qual
Paulo Maluf e Lula da Silva reelaboram os significados dos termos
"direita" e "esquerda".
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