O Estado de S. Paulo,
29 de setembro de 2012.
'Lulismo', um conceito
equívoco
ALDO,
FORNAZIERI - DIRETOR ACADÊMICO DA FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE
SÃO PAULO - O Estado de S.Paulo
Nos
últimos tempos surgiu uma profusão de estudos, menções e referências ao
conceito de "lulismo". Autores das mais variadas tendências
referem-se ao conceito. Basta citar Francisco de Oliveira, Ricardo Vélez
Rodríguez e André Singer. Com Os Sentidos do Lulismo André Singer empreendeu o
mais abrange esforço para entender o suposto fenômeno. Dentre os vários
artigos, reflexões e o livro, há poucas referências inquiridoras sobre a
pertinência ou o significado do conceito.
De modo
geral, a referência ao "lulismo" é como se ele fosse um dado evidente
da realidade. Parece ser predominante a ligação entre o conceito e os processos
eleitorais de que Lula foi candidato ou protagonista importante. Para o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o "lulismo" expressa uma
apelo aos pobres e uma prática de conciliação geral das classes; para Francisco
de Oliveira, trata-se de uma "funcionalização da pobreza" para manter
a exploração; para Vélez Rodríguez, é uma variante do populismo e uma prática
patrimonialista de uso do Estado para fins políticos; e para André Singer, é um
realinhamento eleitoral que implica a articulação dos segmentos mais pobres da
população como a nova base social de apoio a Lula e, em parte, ao PT.
Os bons
dicionários dizem que a função de um conceito é descrever os objetos da
experiência para reconhecê-los, classificá-los e organizá-los. De acordo com o
Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, a partir dos séculos 19 e 20 o uso do
sufixo "ismo" disseminou-se "para designar movimentos sociais,
ideológicos, políticos, opinativos, religiosos e personativos, através de nomes
próprios representativos, ou de nomes locativos de origem...". No campo da
política, portanto, o sufixo "ismo" associa-se a um corpo doutrinário
ideológico, filosófico ou religioso de caráter sistêmico e coerente.
Na medida
em que, no caso em questão, o sufixo "ismo" vem associado ao nome
Lula, sugere-se a existência de um movimento político ou ideológico personativo
configurando numa doutrina ético-política que veicula e enfatiza o valor da
pessoa do ex-presidente e seus laços de solidariedade com um corpo coletivo que
pode ser o "povo brasileiro" ou, particularmente, os
"pobres", para a maior parte das análises.
Na
realidade, tal movimento não existe. Nem mesmo dentro do PT existe uma corrente
doutrinária ou seguidista lulista. O suposto caciquismo ou personalismo de Lula
também não é efetivo. As recentes definições de candidatos passaram por
intrincados processos de negociações e concessões mútuas e construções de
consensos entre as partes.
Restaria
ver se há um movimento lulista personativo na esfera social ou eleitoral. Nem
mesmo nesse plano há evidências capazes de legitimar o suposto lulismo. Lula
não deixou nem teve a intenção de legar um corpo doutrinário dessa natureza e,
menos ainda, um movimento em torno de seu nome. O que houve foi um processo
eleitoral, bem analisado do ponto de vista empírico por André Singer. Tanto as
eleições de Lula quanto os seus dois mandatos devem ser analisados a partir de
suas determinações específicas, sem transcendências ideológicas.
O
fenômeno que aconteceu e vem acontecendo no Brasil tem similaridades, com
formas nuançadas, em outros países da América Latina. O Peru conseguiu
resultados espetaculares na redução da pobreza. Na Colômbia, depois de dois
mandatos de Álvaro Uribe, elegeu-se Juan Manuel Santos, do mesmo partido
político. Na Argentina, depois de um mandato de Néstor Kirchner, está em curso
o segundo mandato de Cristina. O eleitorado reelege ou elege sucessores de
governantes que conseguem bons resultados nas políticas sociais e econômicas.
Mas
existem exceções a essa regra. No Chile, depois de 20 anos de governos
bem-sucedidos da Concertación e mesmo com a ex-presidente Michelle Bachelet
terminando seu governo com mais de 80% de aprovação, o candidato opositor de
centro-direita, Sebastián Piñera, venceu as eleições. No mundo de hoje as
hegemonias partidárias são menos estáveis e menos duráveis em relação ao
passado. A perdurabilidade de projetos de poder depende ora de êxitos e
resultados, ora dos líderes que os representam.
O
eleitorado é pragmático, vota interessado e, na sua maior parte, não segue
ideologias. Se um governo apresenta bons resultados, promove o crescimento,
gera empregos, favorece o consumo, distribui renda, de modo geral o eleitorado
quer a sua continuidade. Uma tabela do livro de Singer mostra que em 2006, no
segundo turno, 44% dos eleitores que ganhavam entre cinco e dez salários
mínimos e 36% dos que ganhavam acima de dez salários mínimos preferiam Lula.
Isso desconstitui qualquer tese de que há uma polarização de classe nas
eleições. Não faz muito sentido perguntar a um eleitor médio brasileiro se ele
é de esquerda ou de direita, pois esses conceitos têm pouca referência prática.
Dilma
mantém uma relação de continuidade e de diferença em relação a Lula e aos seus
governos. Ela constituiu personalidade política própria e uma especificidade de
seu governo, evitando o que muitos temiam: ficar à sombra de Lula. E o próprio
Lula contribuiu para isso, evitando uma presença mais ostensiva no governo
dela. O melhor método para analisar os dois governos é fazer um estudo
comparativo entre ambos.
As
eleições municipais deste ano parecem mostrar que não existe um eleitorado
lulista cativo, configurado em qualquer fração de classe. Embora existam certas
preferências partidárias em determinados setores sociais, o fato é que, em seu
modo pragmático de ser, o eleitorado não é um ativo estocável por ninguém. Cada
eleição é uma nova batalha, com novas circunstâncias e novos atores. Quem
acredita na existência de um eleitorado cativo tende a ver o trem da História
passar sem embarcar nele.
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