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Estado de S. Paulo, 2 de setembro de
2012.
Moedas do escambo: propina,
bola, pedágio
02 de
setembro de 2012 | 3h 06
,
GAUDÊNCIO, TORQUATO, JORNALISTA, PROFESSOR , TITULAR DA USP, É CONSULTOR ,
POLÍTICO, DE COMUNICAÇÃO TWITTER: @GAUDTORQUATO , GAUDÊNCIO, TORQUATO - O
Estado de S.Paulo
Quem
pratica o maior dano às instituições? A ministra Cármen Lúcia, do Supremo
Tribunal Federal, com a franqueza da linguagem mineira, não tem dúvidas: é a
corrupção. E puxa a orelha dos corruptos quando compara a vida a uma estrada:
não adianta uma pessoa andar mil quilômetros em linha reta se entra na
contramão e bate em alguém. E ensina: "Não dá para um cidadão ir dormir
imaginando que no espaço público está fazendo alguma coisa errada".
A
elevação moral que se pinça da peroração da magistrada não chega a comover os
travesseiros dos malfeitores, que continuam, em nossos trópicos cheios de
contramão, a dormir o sono dos justos. Só abrem os olhos quando acordados pelo
ferrão da Justiça. Mesmo assim, quando acordam se mostram dispostos a
"sacudir a poeira e dar a volta por cima". Qualquer semelhança com o
Grupo OK, do ex-senador Luís Estevão, que vai devolver R$ 468 milhões aos
cofres públicos, não é mera coincidência. O fato é que, apesar dos esforços do
Ministério Público e do Judiciário para multiplicar diques de contenção, ondas
de corrupção continuam a devastar o terreno da administração pública nas três
instâncias da Federação.
Eliminar
as manchas de corrupção do corpo do Estado é tarefa complexa. A realidade
mostra que não se muda uma cultura por decreto. O vírus da corrupção, como é
sabido, inoculou-se nas veias da Nação em seu berço civilizatório,
espraiando-se por ciclos históricos, imbricando-se aos governos, adentrando os
compartimentos legislativos e deitando raízes no sagrado corpo da Justiça.
Voltemos ao passado: em 1.º de maio de 1500, na famosa carta do Descobrimento
do Brasil, ao pedir a el-rei a "graça especial" de mandar vir da Ilha
de São Tomé seu genro, Jorge de Osório, que lá estava preso, Pero de Vaz de
Caminha abria o repertório de proveitos, adjutórios e jeitinhos que circundam
(e corroem) a vida de nossas instituições políticas e sociais. Os pequenos
desvios de ontem deram lugar aos gigantescos escândalos atuais, dentre eles os
mensalões, o caso Luís Estevão, os bingos e cartões corporativos, os
sanguessugas (ambulâncias), a CPI das ONGs, etc. Hoje o custo das "coisas
erradas" na administração pública é estratosférico: entre R$ 80 bilhões e
R$ 100 bilhões, segundo estudo da Fiesp, algo em torno de 1,4% do PIB ou mais
de 20% dos recursos movimentados pela corrupção no mundo, que a Transparência
Internacional calcula em US$ 1 trilhão por ano.
A
indagação é rotineira: por que os malfeitores continuam a agir de maneira
desabrida? Conhece-se a resposta: porque as causas que determinam
comportamentos erráticos persistem. Elas abrigam o cenário institucional e as
mazelas abertas pelo Estado, a partir da empedernida burocracia e da
escancarada impunidade. Veja-se esta última. Análise feita pela
Controladoria-Geral da União dá conta de que a probabilidade de um funcionário
corrupto ser punido é de menos de 5%. Logo, a prática de "criar
dificuldades para obter facilidades" ganha corpo na vasta seara das
administrações. Adiantar expedientes, "fabricar" textos de licitações
para beneficiar grupos, liberar recursos estão entre os exercícios que entram
na contramão apontada pela ministra Cármen.
Nesse
ponto, o Estado hipertrofiado sobe a montanha burocrática. Visões obsoletas e
grupos indolentes esbarram nos obstáculos: restrições comerciais; medidas que
desestimulam a produção; vieses protecionistas; fartos subsídios para uns
produtos e regras pesadas contra outros, falta de celeridade da Justiça, farta,
confusa e injusta legislação tributária e ausência de planejamento. Esse é o fertilizante
jogado no terreno da corrupção, onde nasce a equação que junta estruturas
arcaicas e quadros esfomeados. Dessa forma, as florestas da União, de Estados e
municípios garantem a moeda do escambo da res publica: a propina, a bola, o
pedágio, as comissões.
O
exercício da corrupção, oportuno registrar, é também facilitado pelo
contingente de jardineiros dispostos a semear o vírus. Veja-se: o número de
pessoas em cargos de confiança no governo federal, 90 mil, facilita a extensão
de ilícitos (nos EUA não ultrapassa os 10 mil e na Inglaterra não passa de
300). Por último, vale destacar que a temperatura ambiental também propicia a
proliferação da doença. Afinal, mais de 70% da população, segundo o Ibope, se
diz tolerante com a corrupção, enquanto o porcentual que admite ter cometido
algum deslize ético e poderia cair na malha corruptiva, caso fosse nela jogado,
é até maior. Ou seja, o jeitinho para driblar os caminhos da lei e substituir
as retas pelas curvas parece encarnado na alma popular, o que remete a uma
reflexão sobre os valores que formam o ethos nacional, entre eles, a
flexibilidade, a improvisação, a criatividade, a rebeldia, o gosto para fugir à
norma estabelecida.
Sérgio
Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil, já contrapunha nossa tradição
cultural à herança nórdica protestante. Cultivamos um "individualismo
amoral", que descamba na ausência do associativismo racional típico dos
países protestantes, o que explica nosso atraso social. Não conseguimos
cultivar o controle racional dos afetos. A nossa ética joga os interesses de
curto prazo sobre os de longo prazo.
Sob essa
moldura comportamental, o que fazer para tapar os buracos abertos pelos aríetes
da corrupção? A reforma da gestão do Estado, que pressupõe ações que coíbam
práticas ilícitas, como o orçamento impositivo, pelo qual o Executivo se
obrigaria a executar a programação orçamentária aprovada pelo Congresso. Hoje,
com o orçamento autorizativo, a liberação de recursos passa por um extenso
corredor, dando margem a manipulações. Na outra ponta, fechar as portas da
impunidade e acelerar os processos contra os meliantes, ao mesmo tempo que
todos os centavos surrupiados deveriam ser devolvidos ao Tesouro. Para começo
de conversa.
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