O Estado de S. Paulo,
30 de setembro de 2012.
Democracia e golpismo
Cientista política reflete sobre as avaliações em
andamento dos fatos políticos que redundaram no que se chamou 'mensalão'
MARIA
CELINA D'ARAUJO -DOUTORA EM CIÊNCIA POLÍTICA; É PROFESSORA DA PUC-RIO - O
Estado de S.Paulo
Desde que
o País se redemocratizou, a importância do conhecimento dos cientistas
políticos cresceu e sua presença na mídia também se tornou mais constante,
especialmente em momentos eleitorais ou de possíveis crises políticas. Passaram
a estudar com mais rigor e mais recursos metodológicos o comportamento político
do eleitor, o desempenho dos partidos nas urnas e no Congresso, impactos do
sistema eleitoral sobre o sistema partidário, geografia do voto, possíveis
reformas eleitorais e partidárias e seus impactos na qualidade da
representação, etc. Temas não faltam e creio que estamos fazendo isso muito
bem. No entanto, quando se trata de fazer previsões, os cientistas políticos,
assim como os economistas, passam por situações vexatórias e humilhantes. Isso
é parte do ofício das disciplinas que lidam diretamente com as resultantes da
ação humana que são, por definição, imprevisíveis.
A ciência
política tem como objeto o poder, que, como diz Maquiavel, é tema referido à
ação humana: "A política é coisa dos homens como eles são", ou seja,
capazes de patifarias e ações generosas conforme suas habilidades para lidar
com circunstâncias, adversidades, desejos de poder e valores.
Dito
isso, quero refletir sobre a avaliação em torno dos fatos políticos que
redundaram no que se chamou mensalão. Não faço previsões nem ilações de causa e
efeito e não ouso falar do desempenho do Judiciário. Metodologicamente limitada
a refletir a posteriori, procuro entender argumentos usados por meus colegas e
analistas políticos em geral que se posicionam de maneira favorável ao governo
do ex-presidente Lula da Silva e ao PT. Entre eles, destaco seis.
Lula não
sabia. Num primeiro momento houve o argumento quase unânime de que, se fatos
estranhos ocorreram no financiamento da campanha do PT em 2002, o presidente
deveria ser poupado, pois tudo teria se passado à sua revelia. A começar pelo
denunciante, Roberto Jefferson, o presidente era pessoa honrada e deveria ser
deixada à margem desses fatos. Em entrevista ao Aliás em 10 de julho de 2005,
defendi que, a julgar pela história de nosso presidencialismo a partir de 1946,
era impossível imaginar que qualquer operação política de grande vulto,
envolvendo empresários e uma grande rede de partidos, pudesse ser feita sem o
conhecimento do presidente em exercício.
O
mensalão nunca existiu. Essa afirmação persistiu ao longo do processo. Teria
sido uma invenção da oposição e da "imprensa golpista". Cientistas
políticos comprovaram que, a julgar pela trajetória do comportamento dos
partidos no Congresso, nada indicaria a compra de votos. De fato, o Executivo
continuou aprovando seus projetos com as altas taxas de sucesso que tivera
desde o governo Itamar: desde então, cerca de 95% dos projetos aprovados pelo
Legislativo têm origem no Executivo. Foi nesse compasso que se votou a emenda
da reeleição proposta pelo ex-presidente Fernando Henrique, recorrentemente
lembrada como uma vitória à custa da compra de votos.
O que o
PT fez não tem nada diferente. Nesse caso, trata-se de um direito adquirido
pela classe política de usar privadamente recursos públicos. Corrupção e
negociatas seriam prática comum no Brasil. Por que fazer do PT a única vítima
de uma prática que tem consentimento generalizado? Explica-se que a crítica
deriva do elitismo dos que não querem reconhecer os inegáveis avanços sociais
do País desde 2003. Seria uma vertente da conspiração das elites, mas com a
reafirmação cínica de que "se todos roubam, por que o PT não pode?"
Alguns parlamentares do PT chegaram a afirmar que, como aprendizes, não
souberam fazer isso tão bem quanto os partidos mais experientes.
O
mensalão não tem impacto nas eleições, pois o povo não se interessa por esses
assuntos. Se tem ou não impacto, não me cabe avaliar, não é minha expertise, se
alguma tenho. Preocupante é aceitar com naturalidade que o eleitor não leve em
conta temas éticos. De todos os argumentos que tentaram minimizar a importância
do mensalão, esse me parece o mais grave. Foi muito acionado no início da
campanha pelos governistas mais otimistas, embora, depois, o tom tenha mudado
um pouco. O que importa é que foi um argumento corriqueiro que faz supor que o
Brasil possa ser mesmo um país de gente moralmente indolente. No entanto, à
medida que a candidatura de Celso Russomanno à Prefeitura de São Paulo avançou
nas pesquisas, esses mesmos analistas sentenciaram que o eleitor se tornou um
consumidor mais exigente. Pelo menos isso.
Lula
passará imune a todo o processo. As teses a esse respeito vão em duas direções:
sua liderança pessoal é inabalável e o lulismo veio para ficar. Se lulismo
significa mais justiça social, é desejável mesmo que continue. As democracias
modernas, contudo, supõem revezamento de líderes e partidos no poder. Momentos
de baixa acontecem com líderes e organizações partidárias sem que isso
signifique seu ocaso.
Há
golpismo no ar. Governistas e analistas simpatizantes do governo têm insistido
nesse ponto. Há golpismo da direita contra os avanços nas políticas sociais do
PT, e o PIG, "partido da imprensa golpista", leia-se toda a grande
imprensa, estaria ao lado dos conservadores. Segundo a nota dos partidos da
base (20/09) em apoio ao ex-presidente, nem o STF escaparia: seria parte da
trama que visa a "golpear a democracia e reverter as conquistas que
marcaram a gestão do presidente Lula". Há uma entidade vigorosa no ar: os
golpistas. A oposição também bate firme nessa tecla quando insiste que o PT
pode acionar qualquer mecanismo não republicano para se manter no poder. Tendo em
vista essas suspeitas generalizadas sobre golpes e golpismo, só resta concluir
que a qualidade da democracia no Brasil ainda deixa muito a desejar.
Um
argumento adicional presente entre os militantes do PT é o de que o mais
importante nas eleições de 2012 seria derrotar os tucanos em São Paulo. São
Paulo, de fato, é um caso de pouca rotatividade no poder desde 1982. No
entanto, os governos, lá e alhures, são escolhidos por cidadãos que precisam
ser respeitados em suas escolhas.
Estou
relendo Sociologia dos Partidos Políticos, de Robert Michels, que em termos de
realismo político chega a ser mais cruel do que Maquiavel. Baseado em sua
experiência no partido alemão da social-democracia, do início do século 20,
afirma que "à medida que a organização (o partido operário) cresce, a luta
pelos grandes princípios se torna impossível". Impossível? Não, claro que
não. Mas certamente é uma tarefa à qual os partidos que se dizem programáticos
precisam dar mais atenção.