Folha de S. Paulo, 22 de março de 2012.
Denis Rosenfield
O risco de uma Comissão do Acerto de Contas
Não combatia pela liberdade quem queria uma ditadura comunista; são maus exemplos os países que, por revanchismo, barram a reconciliação nacional
O compromisso da história, enquanto conhecimento, é com a verdade, não importando o quão cruel possa ser a realidade retratada.
A constituição da Comissão da Verdade deveria ser pautada pela imparcialidade e não por qualquer viés ideológico, algo que só deformaria o seu próprio trabalho. Uma comissão dirigida contra os militares seria um evidente contrassenso, pois, então, o seu nome deveria ser Comissão de um Acerto de Contas.
Nessa história, não há mocinhos nem bandidos. Uma Comissão da Verdade deveria ter, evidentemente, à sua disposição uma abertura irrestrita de todos os arquivos e documentos do período, não importando, para isso, quais poderiam ser os indivíduos ou grupos eventualmente prejudicados.
Uma nação tem o pleno direito de conhecer a sua história, quando mais não seja para que as próximas gerações possam aprender com os seus acertos e com os seus erros.
Não cabe, portanto, um trabalho voltado somente contra militares e policiais torturadores que se desviaram de suas funções.
Seus nomes não deveriam ser preservados quando o seu envolvimento for devidamente comprovado. Ele deveria também abarcar os que procuraram instalar no Brasil uma ditadura comunista e, para isto, utilizaram-se de assassinatos, sequestros, roubos e "justiciamentos" de militantes de esquerda.
Tornou-se usual nesses últimos anos apresentar os que tentaram promover a ditadura comunista no Brasil, em suas vertentes cubana, maoísta, soviética e outras, como se fossem combatentes da liberdade. A deturpação dos fatos é completa. Não lutavam eles pela democracia nem pela liberdade.
O Brasil apresenta, dentre os países da América Latina, um modelo único de transição de um regime autoritário para um democrático.
Seu norte foi o da conciliação nacional, seu instrumento foi a Lei da Anistia, válida para todos os lados, e os seus agentes mais importantes foram os líderes do então MDB, as entidades da sociedade civil, os militares que entraram em uma linha democrática e os políticos defensores do regime que fundaram o PFL.
A transição não foi obra da esquerda armada que tinha sido previamente derrotada militarmente.
Logo, pretender revogar a Lei da Anistia é um ato que tem como objetivo substituir a concórdia estabelecida pela discórdia.
Aduzir como argumento que outros países latino-americanos fizeram essa revisão de nada vale, sobretudo considerando o estado desses outros países, presos a revanchismos e a clivagens internas que impedem uma reconciliação nacional e o próprio desenvolvimento social, econômico e político.
Enquanto isso, o Brasil chega à posição de sexta economia do mundo, graças à sua estabilidade institucional e ao seu ambiente político.
Nessa perspectiva, a posição da presidente Dilma Rousseff de ameaçar punir os militares que reagiram às declarações de duas ministras que propugnaram pela revogação da Lei da Anistia não se coaduna com a imparcialidade que deve presidir a Comissão da Verdade.
Se fosse para chamar os militares da reserva à hierarquia (saliente-se que, na reserva, eles têm direito à livre emissão de posições políticas), ela deveria ter feito a mesma coisa com as ministras envolvidas, desautorizando-as.
Sob essa ótica, os militares têm razão em ter reagido, pois estão defendendo uma lei de pacificação nacional. Ministras não são indivíduos privados, mas pessoas públicas. De fato, o que elas fizeram foi dar um impulso a um processo de formação da opinião pública que viesse a propiciar uma revogação dessa lei.
Decisões do Supremo podem ser modificadas quando os seus membros são substituídos. A Comissão da Verdade não pode se prestar a esse papel, sob pena de se tornar uma Comissão do Acerto de Contas.
DENIS ROSENFIELD, 61, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
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