Golpe de estado virou apenas o que os outros dão
Marcelo Coutinho, O GloboA agonizante democracia venezuelana não sobreviveu. Enfermo e incomunicável, Chávez não pôde assumir novo mandato no prazo previsto pela Constituição, e agora quem governa por tempo indeterminado é um não eleito para o cargo, em óbvia violação a qualquer estado democrático de direito.
A população venezuelana não sabe ao certo o que está acontecendo. Seu líder não vem a público esclarecê-la. As instituições no país funcionam apenas por ouvir dizer, isto é, por porta-vozes que governam sem qualquer legitimidade, tomando decisões em pleno regime de exceção, enquanto esperam indefinidamente a recuperação do presidente.
Já são duas democracias que morrem na região em menos de um ano. A primeira foi no Paraguai, em junho passado, com o golpe intitulado pelo eufemismo de “impedimento relâmpago”, só crível no realismo fantástico latino-americano.
Nas democracias do continente, inspiradas na experiência dos EUA, o presidente da República (em qualquer hipótese) deve ser eleito em disputa limpa e justa, depois tomar posse e governar até o fim, a menos que algo excepcional aconteça, como doença incapacitante, morte ou impeachment regular, com amplo direito à defesa.
Como se diz, “a regra é clara”, e algo de muito grave se passa quando perdemos essa clareza.
O conceito mais simples de democracia ficou de repente confuso aos olhos da direita e da esquerda. Golpe de estado virou apenas o que os outros dão. A constituição é torturada até que ela diga o que se quer, mesmo ferindo princípios democráticos fundamentais.
Uma diferença básica entre a democracia e o autoritarismo está na fórmula de alcançar o poder. A competição pelo voto livre define o regime democrático.
Já na Venezuela nos dias de hoje o poder está nas mãos de quem supostamente teve acesso ao leito de uma UTI em Cuba, onde se encontraria Chávez sob cuidados médicos muito delicados.
Quem não pode ir à própria posse não pode presidir. O que ocorre no país vizinho agora não é mais uma crise institucional, mas uma evidente ruptura. E, sendo assim, o governo do país também deveria ser (mas não será) censurado pelo Mercosul assim como foi com o Paraguai. Lá também não havia desordem social, e a Corte Suprema ficou do lado do poder.
Não é a instabilidade nas ruas e praças públicas que define a natureza do regime político. Assim como as democracias não vivem em paz de cemitério, podendo conviver com protestos, muitas ditaduras conseguem ser estáveis, inclusive com eleições sem competidores reais e controlando os seus “tribunais de justiça”.
Democracia virou o que os Supremos disserem, mesmo que estes sejam controlados pelo governo.
Se o Supremo disser que um presidente eleito pode ser derrubado em 24 horas, em rito sumário, sem direito a ampla defesa, então pode.
Se o Supremo disser que alguém que não foi eleito pode governar o país indefinidamente, então pode. Um descalabro.
O que define a democracia são suas regras e o pluralismo que elas abrigam, o resto é oportunismo político inconsequente. Quando não se sabe o que é democracia, ela pode ser qualquer coisa e nada ao mesmo tempo. Perde o seu sentido em outra assustadora reversão autoritária.
Agora com uma diferença: para as transições autocráticas atuais darem certo não podem se parecer com as do passado. Os novos atentados institucionais precisam ocorrer como se nada anormal estivesse acontecendo.
Infelizmente, mais uma vez a incoerência do governo brasileiro se manifesta para quem quiser assistir, abençoando o autogolpe “temporário” na Venezuela poucos meses depois de ter suspendido o Paraguai do bloco pela cláusula democrática.
Para piorar, quem decidiu e primeiro falou pelo Brasil neste momento de suma importância foi um assessor sem ministério.
Isso não só demonstra a total inoperância do Itamaraty, já desnorteado após tantos erros em seu próprio repertório, como também revela um preocupante vazio na cadeira presidencial no Palácio do Planalto em assuntos internacionais.
Atenta à economia que não cresce, Dilma delegou poderes a subordinados que não parecem saber o que fazer em situações críticas no campo das relações exteriores.
Não vem liderança de onde mais a região espera. E a marcha ao retrocesso avança. Onde será o próximo golpe?
Marcelo Coutinho é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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