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Wálter Maierovitch
09.01.2013
09:09
Masmorras medievais
Um dos
mais sanguinários da história secular da Cosa Nostra siciliana chama-se Gaspare
Spatuzza, 48 anos, preso em 1997 e condenado à nominal pena de ergastolo –
prisão perpétua –, que, pela legislação italiana e por regra obrigatória aos
Estados membros da União Europeia, é sempre unificada em 30 anos de tempo
máximo de cumprimento.
Spatuzza,
da facção mafiosa (famiglia) de Brancaccio e apelidado “careca” (tignusu, em
dialeto siciliano), confessou haver participado de dez homicídios, com quatro
cadaveri eccellenti, expressão cunhada pelo famoso escritor Leonardo Sciascia e
a revelar que – para difundir o medo – o crime organizado de matriz mafiosa
precisa de vítimas anônimas e de destaque na sociedade. Spatuzza participou dos
assassinatos (1) do dinamitado juiz Paolo Borsellino, (2) do padre Pino Puglisi,
líder comunitário de famílias operárias e carentes, (3) do neto do boss
internacional Tommaso Buscetta numa vendetta de guerra de máfia e (4) da
criança Giuseppe di Matteo, em cativeiro por dois anos, que teve o corpo
dissolvido em ácido, quando seu pai, o ex-mafioso e colaborador de Justiça,
confirmou as suas delações em juízo.
Dada a
sua posição hierárquica na ala militarizada da Cosa Nostra conduzida pelo
facínora Leoluca Bagarella, o referido Spatuzza foi, com base no artigo 41,
bis, do Código Penitenciário Italiano, colocado no sistema de cárcere duro,
comprovadamente capaz de servir para cortar o vínculo do preso com a sua
organização criminosa.
No
cárcere, e por meio de curso a distância pela internet, Spatuzza graduou-se, e
depois se doutorou, em teologia. Com a frase de que passara a acreditar em Deus
e que não poderia “servir à máfia e ao Senhor”, tornou-se colaborador da
Justiça. As suas delações, checadas por anos, revolucionaram em termos de
avanços em descobertas e em fraudes processuais engendradas pela Cosa Nostra e
que conduziram juízes e jurados a conclusões condenatórias completamente
equivocadas, como, por exemplo, ao homicídio de Paolo Borsellino.
No
momento, com base em “-confissões” do novel místico Spatuzza, -apura-se a
ocorrência de eventual tratativa para acabar com a guerra máfia-Estado dos anos
1990, feita entre agentes do estado – a incluir o ministro do Interior
(responsável pela Segurança Pública interna) – e os chefões da Cosa Nostra
siciliana. A propósito, e só para lembrar, o governo do Estado de São Paulo, em
2006, promoveu, embora negue, acordo com a organização criminosa conhecida como
Primeiro Comando da Capital (PCC). Com o pacto paulista, o PCC encerrou a
guerra declarada contra o estado e como decorrência deste “armistício” passou,
nas periferias, a manter o controle territorial e social.
Com
efeito, na nossa lei de execução penal está escrito, entre tantos dispositivos
ignorados pelos governantes de agora, e os desde bem antes de ser publicada, em
1984, a lei especial: ter o preso direito às assistências material, educacional,
social, à saúde, jurídica e religiosa, além do apoio ao egresso do sistema, até
para evitar a recidiva: no Brasil, a reincidência ao crime supera 80%. Quanto
às celas, está estabelecido que sejam individuais, com 6 metros quadrados de
área mínima, salubridade do ambiente por meio de aeração, insolação e
condicionamento térmico adequado à existência humana. O sistema prisional
nacional conta com 471.254 presos fechados e uma superlotação em face do
déficit de vagas. Em grande quantidade de estabelecimentos, os presos dormem em
turnos, porque não cabem todos deitados na cela ao mesmo tempo.
Diante
dessa calamitosa e desumana situação, o ministro da Justiça do governo Dilma
Rousseff afirmou que preferiria morrer a ter de cumprir pena em -prisões brasileiras.
Tudo como se o referido ministro, José Eduardo Cardozo, não tivesse nenhuma
responsabilidade pela situação. Pior, no governo Dilma, ele nem sequer
apresentou projeto de melhorias e nenhuma iniciativa foi colocada em prática
para atender às regras mínimas das Nações Unidas sobre tratamento
penitenciário. O ministro -Eduardo Cardozo frisou que a “prisão brasileira é
medieval e viola direitos”. Talvez Cardozo possa apresentar alguma solução se o
seu considerado, Daniel Dantas, conhecido banqueiro, vier a ser aprisionado e
isso no caso de comprovadas, na Justiça, as acusações contra ele e se houver
condenação em regime fechado.
De se
observar, e o descaso se torna mais grave, que a nossa Constituição ao vedar a
pena de prisão perpétua consagra, como finalidade ética da pena, a emenda do
sentenciado. Nas suas cláusulas pétreas encontramos diversos dispositivos e,
entre eles, convém lembrar que ninguém será submetido a tratamento desumano ou
degradante. Mais ainda: “É assegurado aos presos o respeito à integridade
física e moral”.
Quando o
próprio ministro da Justiça do governo Dilma admite violações às cláusulas
constitucionais pétreas sem apresentar soluções, acaba por confirmar a regra,
presente em governos anteriores, de que a pena de prisão fechada, no Brasil, é
puro isolamento e castigo. Como o déficit carcerário, ultrapassa 175 mil vagas,
os governos federal e estaduais, quando do presidencial indulto de Natal, ficam
aliviados, com, numa imagem, o abrir o “ladrão” da caixa-d’água para evitar
transbordamentos. Uma visão, convenhamos, um pouco diversa da que tinha a
saudosa penitenciarista espanhola Conceptión Areñal, que via, nos presídios,
“hospitais para se tratar a alma do infrator e evitar a recidiva”.
Num
sistema desumano e falido, a ponto de gerar reincidência dos egressos em
porcentual elevadíssimo, a sociedade acaba enganada e fica vulnerável. A
Justiça, por seu turno, faz o papel dos primeiros socorros, sem se preocupar
com a sequência dos atos e suas consequências. Algumas lembranças e exemplos
ajudam a entender e a indignar-se. A lei de exe-cução, em pleno regime
ditatorial, foi projetada pelo ministro Ibrahim Abi-Ackel e adotou-se o que
havia de mais moderno no penitenciarismo e na execução jurisdicionalizada sob o
prisma dos direitos humanos. Na verdade, uma contradição ante um regime que
havia torturado, sequestrado e matado os seus opositores políticos. Mas servia
como propaganda para difundir que com os presos, não políticos, o regime de
exceção dava trato humanizado, pelo menos em face do escrito na lei de
execução, que nunca saiu do papel. A realidade era bem outra à época.
Com a
habitual falta de vagas nos estabelecimentos para cumprimento de penas em
regime semiaberto, o preso em regime fechado, com sentença judicial de
progressão, tem, no habeas corpus, o remédio contra a ilegalidade e o
constrangimento de ser mantido em regime fechado que já progrediu. Assim, o
sentenciado é mandado, do regime fechado e a saltar o semiaberto, para o
aberto, na modalidade de prisão albergue. Como não existem casas de albergados
suficientes, o sentenciado a regime inicial fechado é enviado para a sua
residência, transformada em prisão domiciliar e sem fiscalização. Neste espaço
de CartaCapital, e quando o governador Geraldo Alckmin implodiu a antiga Casa
de Detenção, escrevemos que, se remodelada, poderia ser transformada em casas
para albergados, uma experiência iniciada em São Paulo quando o saudoso
penalista Pedro Pimentel era secretário de Justiça. A lei paulista sobre prisão
albergue, dado o sucesso, virou lei federal.
Certa
vez, nos anos 1980 e quando os juízes de execução penal conseguiam, sem risco,
visitar os presídios como obriga a legislação, um preso do Instituto Penal
Agrícola de São José do Rio Preto – onde o sentenciado que ingressa em período
de plantio não está mais lá quando da colheita – deu sua opinião: “Só no dia em
que o preso voltar a votar é que os políticos vão se preocupar com melhorias de
condições”.
Num pano
rápido, a presidenta Dilma Rousseff terá, na segunda metade do seu mandato, de
se debruçar em reformas no tripé da segurança pública: polícia, Justiça e
sistema prisional. Seu ministro da -Justiça é especialista e professor de
Direito Administrativo, que tem no Direito Penitenciário um dos seus principais
ramos.
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