O Globo 27 de outubro
de 2012.
Os mensaleiros venceram
Guilherme
Fiuza, O Globo
O Brasil
continua assistindo ao julgamento do mensalão como um filme de época. O STF
está prestes a dar as sentenças, e o público aplaude a virada dessa página
infeliz da nossa história, quando a pátria dormia tão distraída etc. O problema
é que a pátria continua dormindo profundamente.
José
Dirceu, o grande vilão, o homem que vai em cana condenado pelo juiz negro,
nesse duelo que faz os brasileiros babarem de orgulho, não é um personagem do
passado. Está, hoje mesmo, regendo o PT no segundo turno das eleições
municipais. Ainda é a principal cabeça do partido que governa o país.
E o
eleitorado não está nem aí. A campanha de Fernando Haddad em São Paulo é quase
uma brincadeira com o Brasil. Um candidato inventado por essa cúpula petista
que só pensa naquilo (se pendurar no poder estatal) consegue uma liderança
esmagadora no segundo turno.
O projeto
parasitário de Dirceu, que tem Lula como padrinho e Dilma como afilhada, pelo
visto não vai sofrer um arranhão com a condenação no Supremo. O eleitor não
liga o nome à pessoa.
Fernando
Haddad foi um sujeito inexpressivo de boa aparência colocado no Ministério da
Educação para fazer política. Sua candidatura é a menina dos olhos de Lula,
mais um plano esperto dessa turma que descobriu que pode viver de palanque sem
trabalhar.
O
fenômeno Haddad conseguiu bagunçar a vida dos vestibulandos por três anos
seguidos, com erros primários no Enem, típicos de inépcia e vagabundagem. Se
fosse no Japão, o então ministro teria se declarado humilhado e se retirado da
vida pública. No Brasil, vira um “quadro” forte da política.
Haddad
fez com a pobre educação brasileira o que o PT sempre faz no poder: marketing
do oprimido. Defendeu livros didáticos com erros de português, tentou bajular
os gays com cartilhas estúpidas, fez demagogia progressista com o sistema de
cotas. Enquanto os estudantes se esfolavam no Enem, ele estava nos comícios de
Dilma para presidente.
Tudo
conforme a lógica mensaleira da agremiação que governa o Brasil há dez anos:
usar os mandatos para garimpar votos e arrecadar fundos (para pagar os Dudas lá
fora, o que o Supremo já disse que está OK).
O
ex-ministro Haddad é filho dos mentores do mensalão, assim como os ministros do
STF Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Nunca se viu espetáculo tão patético na
esfera superior do Estado: dois supostos juízes usando crachá partidário e
obedecendo às ordens do principal réu. Contando, ninguém acredita.
Esse
sistema desinibido de prostituição da democracia vai de vento em popa, porque a
pátria-mãe tão distraída resolveu acreditar que a vida melhorou porque Lula é
(era) pobre e porque Dilma é mulher.
O Brasil
não faz mais questão de nada: nem a entrega do “planejamento” da infraestrutura
à quadrilha Delta-Cachoeira comoveu os brasileiros.
O
prefeito Eduardo Paes disse que o Brasil está jogando fora a chance de se
organizar, e o ministro dos Esportes ficou zangado. A turma do maquinário
detesta quando alguém lembra que eles não trabalham.
O
ministro Aldo Rebelo é companheiro de partido do seu antecessor, o inesquecível
Orlando Silva, rei das ONGs. Nas mãos do PCdoB, o Ministério dos Esportes
estava aproveitando a Copa do Mundo no Brasil para montar seu pé-de-meia
companheiro — o que é absolutamente normal, dentro da ética mensaleira.
Aí surgem
as manchetes intrometidas e Dilma tem que encenar a faxina, a contragosto,
cobrindo de elogios o companheiro decapitado e entregando a boca para um colega
de partido.
Assim é
em todo o primeiro escalão do governo, mas eles ficam muito chateados se alguém
lembra que esse esquema malandro não serve para organizar o país para uma Copa,
para uma Olimpíada ou para um futuro decente.
Enquanto
a pátria continuar dormindo e sonhando com o heroísmo de Joaquim Barbosa, a
república mensaleira seguirá em frente. Ninguém deu a menor bola para o
escândalo denunciado pelo ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence.
Dilma
Rousseff aproveitou o espetáculo no Supremo e cortou a cabeça dos dois
conselheiros “desobedientes” da Comissão de Ética da Presidência. Marília
Muricy e Fábio Coutinho ousaram reprovar a conduta dos ministros companheiros
Carlos Lupi e Fernando Pimentel.
A
presidente teve que demitir Lupi, que transformara o Ministério do Trabalho
numa ação entre amigos do PDT — partido que o demitido continua comandando, em
apoio ao governo popular.
Mas
Pimentel, com suas milionárias consultorias fantasmas, vendidas graças aos seus
belos olhos de amigo da presidente, continua vivendo de favor no Ministério do
Desenvolvimento.
Um dia já
houve a expectativa de que Marcos Valério, uma vez apanhado, abriria o bico.
Hoje o bico de Valério não vale mais um centavo. O golpe já foi revelado, e a
real academia mensaleira continua comandando a política brasileira. Testada e aprovada
pelo povo.
Folha de S. Paulo, 27
de outubro de 2012.
Walter Ceneviva
Receitas democráticas
Exemplo de democracia é o Brasil de hoje. Tem defeitos, mas
exibe instituições escolhidas em eleições livres
A Atenas de Péricles e Aspásia, 400 anos antes de Cristo, brilhou entre as cidades-estado. Tinha elite minoritária (políticos, religiosos e militares) que decidia, democraticamente, mas no debate entre os iguais. A maioria numérica não governava. Escravos compunham boa parte dos habitantes. Ainda assim foi o exemplo do exame dos interesses gerais, pelos criadores do termo em que "demo" é povo e "cracia" é poder ou governo. Na realidade de seu tempo, afirmaram a liberdade para reivindicar o exercício do direito de todos, atentos à convicção coletiva na defesa de seus interesses.
A rememoração da história leva a pensar que, por ser difícil de atingir e manter, a democracia e sua continuidade tendem a encontrar resistências, mas cabe enfrentá-las com a consciência da liberdade preservada pelo direito. Aqui não temos os bilhões de habitantes da China, com ditadura e progresso material, ou da Índia, com indústria moderna ao lado de costumes tradicionais, castas e animais sagrados.
Períodos ocasionais de maior liberdade de escolha acontecem na dinâmica das existências nacionais. Permanência ampla e duradoura da liberdade na tomada das decisões impõe atenção aos democratas, para assegurar o funcionamento das instituições e a plena liberdade de escolha de governantes, substituídos em espaços temporais certos. Lembremos que a democracia estadunidense, mesmo depois da independência, teve quantidade crescente de escravos, comprados ou presos na África, em empreendimentos marítimos e financeiros de grande vulto. Idem para nosso país: muitas de nossas figuras históricas tinham escravos. Recentemente, o leste da Alemanha levava o nome de República Democrática, sendo infiel a esta denominação.
Exemplo de vida democrática é o Brasil de hoje. Tem defeitos, mas exibe instituições escolhidas pelo povo em eleições livres. O exemplo da campanha do segundo turno está aí, para marcar o caminho do futuro. Em mais da metade dos lares, o homem não é mais o controlador exclusivo da sociedade conjugal. Aqui, um torneiro mecânico de restrita cultura formal foi bem-sucedido presidente da República, eleito pelo povo. Um negro presidirá o Supremo Tribunal Federal, nicho sacrossanto da elite jurídica deste país, sem perder para ninguém em matéria de qualidade, com bela participação das mulheres, uma delas presidindo as eleições.
Grande parte da população mundial vive sob ditadores. Outras se ligam a organismos religiosos, nos quais a mulher é um ser de segunda classe. Milhões e milhões de pessoas não têm o suficiente para comer nem o grau de conforto necessário. Nesse quadro o Brasil vive a experiência do voto, depois de consolidar a ocupação integral do território no século passado. É o espaço do povo a repercutir, com força, no planeta. Na imprensa mundial, já repercutiu. A receita de democracia está fazendo bem à nação.
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