terça-feira, 23 de outubro de 2012

Mensalão e democracia: visões distintas



Folha de S. Paulo, 23 de outubro de 2012.

Dirceu afirma que decisão representa risco à democracia

Ex-ministro da Casa Civil afirma que Supremo decidiu ignorar provas materiais com o objetivo de condená-lo
No encontro de ex-militantes, Genoino disse que STF criou jurisprudência para perseguições políticas




CATIA SEABRA
DE SÃO PAULO
Duas horas após o Supremo condená-lo por formação de quadrilha, o ex-ministro José Dirceu divulgou nota em que acusa a corte de ameaçar a democracia ao puni-lo "sem provas". "Nunca fiz parte nem chefiei quadrilha", diz.
Segundo Dirceu, "o que o Ministério Público fez e a maioria do STF acatou foi recorrer às atribuições" de ministro para acusá-lo e condená-lo como "mentor do esquema financeiro"."Fui condenado por ser ministro".
Na nota, Dirceu repetiu o que disse domingo num almoço com amigos e militantes do movimento estudantil de 68: sua condenação abre precedente perigoso.
Na nota, ele disse temer "que as premissas usadas no julgamento, criando uma nova jurisprudência na Suprema Corte, sirvam de norte para a condenação de outros réus inocentes país afora".
"Minha geração, que lutou pela democracia e foi vítima dos tribunais de exceção, especialmente após o AI 5, sabe o valor da luta travada para se erguer os pilares da nossa atual democracia. Condenar sem provas não cabe em uma democracia soberana".
Convidado para o almoço, o petista José Genoino sustentou o discurso de que o STF criou jurisprudência para perseguições políticas.
Os dois admitiram a possibilidade de prisão, mas disseram que vão recorrer. Lembrando a luta contra a ditadura, Dirceu disse: "Pensei que tivesse encerrado esse capítulo da vida. Mas vou continuar lutando".
Oferecido por Ana Corbisier, que integrou o Molipo (Movimento de Libertação Popular) ao lado de Dirceu, o almoço contou com cerca de 50 pessoas, companheiros de combate à ditadura, como José Luiz Del Roio.
Segundo a anfitriã, tanto Dirceu como Genoino prometeram protestar publicamente contra o que classificaram como uma ascendência da imprensa sobre o STF, além de trabalhar pela "democratização" da mídia.
O PT não deve punir seus ex-dirigentes condenados pelo STF. Embora o estatuto preveja expulsão de condenados em última instância por "crime infamante ou práticas administrativas ilícitas", não houve pedido de abertura de processo à cúpula nacional.

O Globo, 23 de outubro de 2012.
Em defesa da democracia
23 Out 2012

Merval Pereira
A sessão de ontem do Supremo Tribunal Federal não apenas colocou um fecho no processo do mensalão, definindo como ação de quadrilha a relação do núcleo político do PT com os grupos do lobista Marcos Valério e os financiadores do esquema, como indicou que serão pesadas as penas para os principais envolvidos na trama criminosa.
O decano do STF, ministro Celso de Mello, chamou-os de "sociedade de delinquentes". Marco Aurélio Mello releu discurso histórico que fez ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral em 2006, quando definiu os mensaleiros como grupo "seduzido pelo projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura". Gilmar Mendes destacou que a paz social fica em risco quando se procura desmoralizar a democracia. "Não tenho dúvida de que a gravidade dos fatos atenta contra a paz pública na concepção social. (...) Sem dúvida isso subverte a lógica das instituições colocando em risco a própria sociedade".
O ministro Luiz Fux baseou seu voto de condenação no fato de que o Supremo já decidira que existia um "projeto delinquencial" de longa duração. O presidente do Supremo, Ayres Britto, também foi pela mesma linha de considerar que a ação dos grupos em coordenação caracterizava bem uma quadrilha que pôs em risco a paz pública ao atentar contra o estado democrático de direito.
Em maio de 2006, Marco Aurélio Mello faria um discurso de posse tão destemido, em pleno escândalo do mensalão, que, ele revelou ontem, sugeriu que o então presidente Lula não comparecesse à cerimônia para evitar constrangimentos. Ele disse na ocasião, e repetiu ontem, que o Brasil se tornara o país do "faz de conta". "Infelizmente, vivenciamos tempos muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos descalabros que, envolvendo a vida pública, se infiltraram na população brasileira - composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta - um misto de revolta, desprezo e até mesmo repugnância".
Celso de Mello disse que nunca, em 44 anos de atuação na área jurídica, viu tão caracterizada uma quadrilha quanto neste caso. Comparou a quadrilha do mensalão às quadrilhas que atuam no Rio e ao PCC paulista. "Conspiradores à sombra do Estado, quebrando a tranquilidade da ordem e segurança". O decano disse que o que via nesse processo eram "homens que desconhecem a República, que vilipendiaram o estado democrático de direito e desonraram o espírito republicano. Mais do que práticas criminosas, identifico no comportamento desses réus, notadamente, grave atentado à ordem democrática".
Gilmar Mendes classificou de "naturalista" a interpretação que levou as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia a negar a existência de quadrilha, e ressaltou que no decorrer do julgamento já fora determinado que a democracia brasileira esteve em risco com os crimes do mensalão.
O ministro Luiz Fux asseverou que na literatura jurídica não há exemplo de um crime praticado em coautoria ao longo de dois anos e que não faz sentido condenar membros dos diversos núcleos do mensalão sem enxergar que essas condutas só puderam ser praticadas graças a uma associação estável entre os réus já condenados.
O presidente do Supremo, Ayres Britto, encerrou a sessão com seu voto, que condenou os mensaleiros por crime de quadrilha. Ele baseou sua decisão no convencimento de que a paz pública foi afetada e que é preciso condenar os culpados para que a sociedade não perca a crença de que seu Estado dará a resposta adequada.
"A paz pública é essa sensação coletiva em que o povo nutre a segurança em seu Estado. O trem da ordem jurídica não pode descarrilhar. Dessa confiança coletiva no controle estatal é que me parece vir a paz pública. A tranquilidade resulta da confiança. (...) O fato é que a sociedade não pode decair da confiança de que o Estado manterá as coisas sob controle. Paz pública é isso."
Pelo teor dos seis votos que condenaram os réus pelo crime de quadrilha, confirmando a acusação do procurador-geral da República, as penas dos condenados principais serão pesadas. Haverá um abrandamento a um ou outro réu, como já indicou o presidente do STF em relação à posição secundária de José Genoino na presidência do PT ou dos sócios de Marcos Valério, mas os cabeças do esquema -José Dirceu, Delúbio Soares e Marcos Valério - devem ser condenados com penas agravantes.
 


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