O Estado de S. Paulo,
04 de julho de 2012.
Mal-estar constitucional,
lá e aqui
Conrado
Hübner Mendes
Durante
os últimos meses, o debate público nos Estados Unidos foi tomado por enorme
ansiedade em relação ao destino da reforma da saúde aprovada no início da
gestão do presidente Barack Obama, a chamada Obamacare. O clima tenso era
compreensível, afinal estava na mesa da Suprema Corte a decisão sobre a
constitucionalidade do mais ambicioso pacote legislativo do atual presidente,
que amplia o alcance de planos de saúde à população excluída de qualquer rede
de solidariedade social.
O desafio
jurídico a essa lei, bem verdade, nasceu desacreditado. Não havia, segundo
especialistas à esquerda e à direita, nem bom argumento nem jurisprudência
sólida que o sustentasse. Não havia sequer um histórico relevante de crítica
jurídica, política ou econômica ao instrumento legal questionado no caso: a obrigatoriedade
da compra de plano de saúde por aqueles em condições financeiras para tanto, de
forma a custear os mais pobres. Ao contrário, tal instrumento foi por um tempo
defendido pelo próprio partido de oposição, que agora o ataca, e implementado no
Estado de Massachusetts pelo então governador republicano Mitt Romney, atual
candidato presidencial.
Apesar da
precária qualidade jurídica dos argumentos contra a lei, o passado recente da
Suprema Corte não recomendava otimismo excessivo. Existia forte receio de que,
após mais de três décadas de guinada conservadora da corte, a decisão
consolidasse o renascimento repaginado da "era Lochner", período
entre 1880 e 1930 em que a Suprema Corte, a título de proteger a propriedade e
a liberdade, derrubou duas centenas de leis que buscavam regular a economia e
reduzir desigualdades sociais. Somente veio a se render, já em meados da década
de 1930, por ocasião do New Deal e das ameaças quase frontais que recebeu do
presidente Roosevelt.
Para
alívio daqueles que se beneficiam mais diretamente da Obamacare, isso não
aconteceu. A Suprema Corte considerou constitucional a mudança no sistema de
saúde e encerrou um capítulo dessa dura luta política. A decisão por 5 votos a
4, contudo, surpreendeu por outra razão: entre os votos da maioria estava o do
juiz presidente, John Roberts, fiel integrante do bloco de juízes conservadores
desde que chegou à corte por nomeação do presidente Bush (filho). Uma quebra
inesperada da coalizão. Para alguns analistas, Roberts teria dado um golpe de
mestre, por pelo menos três razões: primeiro, economiza energia política da
corte quando o confronto com os outros Poderes poderia ser excessivamente
explosivo; segundo, atenua a imagem de que as divisões internas da corte
simplesmente espelham a polarização partidária, em prejuízo da imparcialidade;
e terceiro, pavimenta ardilosamente o caminho para que a Suprema Corte
aprofunde, agora com reputação supostamente revigorada, o projeto de um Estado
mínimo na economia, máximo na segurança, indiferente às minorias e moralista
nos costumes.
O que se
pode aprender com este episódio? Do ponto de vista jurídico, de fato, ele não
tem muito que nos dizer. A jurisprudência constitucional americana, ademais,
deixou de ser inspiradora há pelo menos 30 anos. Ou melhor, afora o célebre
período entre as décadas de 1930 e 1960, em que corajosamente liderou uma
massiva expansão de direitos civis e políticos, essa corte não foi exatamente
um modelo de proteção de direitos iguais. Nem mesmo o velho costume brasileiro de
reverência à Suprema Corte americana, que remonta a D. Pedro II e ainda
repercute entre alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), justifica
grande atenção a este caso.
Entretanto,
o episódio não deixa de oferecer algumas lições. Primeiro, do que não fazer: a
Suprema Corte americana é um caso exemplar, no pior sentido, de contaminação
partidária da função jurisdicional. Apesar da surpreendente posição de Roberts,
as decisões da corte em casos polêmicos continuam a replicar, de maneira
previsível e sistemática, o embate entre republicanos e democratas. Num cenário
assim, o ideal da supremacia da Constituição, ou de uma norma que paire acima
do confronto cotidiano entre governo e oposição, torna-se uma ingênua
mistificação ideológica que, no longo prazo, pode corroer a autoridade da
corte. A segunda lição, decorrente da primeira, diz respeito à forma de lidar
com essa volátil moeda da reputação institucional. Para proteger-se contra
aquela contaminação e preservar sua imparcialidade, tanto real quanto aparente,
uma suprema corte precisa de estratégia, algo que ainda incomoda
suscetibilidades jurídicas mais puristas.
O caso do
mensalão, a ser julgado pelo STF em agosto numa grande força-tarefa
institucional, é uma dinamite política semelhante. Cabe ao tribunal desarmá-la
com cuidado. Não houve, na história recente do STF, transferência mais clara do
choque entre governo e oposição para um caso judicial. Eventuais condenações ou
absolvições podem fazer a diferença não apenas para os respectivos réus, mas para
as eleições seguintes. Correta ou não, essa crença já influencia muitos
cálculos e escolhas táticas dessa corrida municipal.
Independentemente
do que decidir, seria importante que o STF desse especial atenção a convencer o
público de sua imparcialidade. Neste momento delicado, as declarações públicas
polêmicas, a hiperexposição na mídia, os encontros informais ou festivos com
advogados e políticos interessados no caso, dentro ou fora das instalações do
tribunal, tornam-se muito mais sérios do que simples deslizes individuais.
Cortes, além de interpretar o Direito, disputam jogos de poder. Sua autoridade
não é um dado, mas uma conquista. Erros estratégicos diminuem sua capacidade de
se fazer respeitar. Uma suprema corte desmoralizada, enfim, ameaça a força da
própria Constituição. É esse o tamanho da responsabilidade de cada um dos
ministros.
* DOUTOR
EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE EDIMBURGO (ESCÓCIA) E DOUTOR EM CIÊNCIA
POLÍTICA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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