Folha de S. Paulo, 28
de julho de 2012.
Renato Sérgio de Lima
TENDÊNCIAS/DEBATES
A Polícia Militar deveria ser extinta?
não
Reforma e controle, não extinção
O debate sobre a extinção das polícias militares reabre, mais uma vez, a
ferida do colapso da segurança pública no Brasil. De um problema social de primeira grandeza, a segurança teima em ser relegada à condição de pária político, da qual grande parcela dos políticos procura manter uma distância regulamentar ou, se a assume em seus discursos, é para explorá-la a partir do culto ao ódio ou do medo da população.
Afinal, a violência urbana persiste como um dos mais graves problemas sociais no Brasil, totalizando mais de 800 mil vítimas fatais nos últimos 15 anos.
Nosso sistema é caro, ineficiente, capacita e paga mal os policiais e convive com padrões operacionais inaceitáveis de letalidade e vitimização policial.
Em suma, não conseguimos oferecer serviços de qualidade e, com isso, reforçamos a perversa desigualdade social do país.
É fato que a história recente da segurança pública no Brasil tem sido marcada por demandas acumuladas e mudanças incompletas. Ganhos, como a redução entre 2000 e 2011 dos homicídios em São Paulo, tendem a perder força, na medida em que não há normas técnicas, regras de conduta ou padrões capazes de modificar culturas organizacionais ainda baseadas na defesa do Estado e não da sociedade.
As instituições policiais e de justiça criminal não experimentaram reformas significativas nas suas estruturas. Avanços eventuais no aparato policial e reformas na legislação penal têm se revelado insuficientes para reduzir a incidência da violência urbana, numa forte evidência da falta de coordenação e controle.
Por isso, falar em extinção das polícias militares reduz essas questões a um jogo truncado por defesas corporativas e agendas técnica e politicamente enviesadas e parciais, que podem, mesmo que involuntariamente, mais contribuir para a manutenção do atual quadro do que para transformá-lo.
Resultados perenes só podem ser obtidos mediante reformas estruturais do sistema de segurança pública e da Justiça criminal, bem como do efetivo comprometimento político dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Essas reformas devem envolver a construção de um verdadeiro Sistema Único de Segurança Pública no Brasil, que tem de:
- Atualizar a distribuição e a articulação de competências entre União, Estados e Municípios;
- Criar mecanismos efetivos de cooperação entre eles;
- Reformar o modelo policial estabelecido pela Constituição para promover a sua maior eficiência;
- E estabelecer requisitos mínimos nacionais para as instituições de segurança pública no que diz respeito à formação dos profissionais, à prestação de contas, ao uso da força e ao controle externo.
É em torno dessa agenda que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública propôs a criação de uma comissão de especialistas para subsidiar mudanças legislativas necessárias à sua viabilização, bem como a articulação de um novo pacto republicano de Poderes para a efetivação prática dessas mudanças.
STF, CNJ, governadores e presidenta da República também têm um papel político que supera em muito os aspectos técnicos e gerenciais envolvidos.
Tal agenda é capaz de surtir efeitos muito maiores do que a extinção de uma ou de outra polícia.
Se, para Hannah Arendt, a violência aniquila a política, manter o nosso atual modelo de segurança pública significa a nossa capitulação frente ao medo, a insegurança e a vontade de vingança.
RENATO SÉRGIO DE LIMA, 42, doutor em sociologia pela USP, é membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Ruy Braga e Ana Luiza Figueiredo
A Polícia Militar deveria ser extinta?
sim
Treinamento bélico, violência sistemática
No final de maio, o Conselho de Direitos Humanos da ONU sugeriu a extinção
da Polícia Militar no Brasil. Com isso, um tema emerge: é possível garantir a
segurança da população sem o recurso à violência militar? Entendemos que sim. No entanto, para que isso aconteça é preciso desnaturalizar o discurso populista de direita a respeito das "classes perigosas" que credita a violência à população pobre das cidades.
Antes de tudo, devemos reconhecer que a violência urbana é uma questão de ordem socioeconômica. Exatamente por isso, para combatermos a criminalidade a contento é necessário uma abordagem que priorize o desenvolvimento de políticas sociais capazes de enfrentar a pobreza e a degradação social.
Mas, como vimos recentemente no Pinheirinho, na cracolândia ou na USP, o Estado brasileiro sustenta há décadas uma política de militarização dos conflitos sociais.
As razões para isso deitam raízes profundas em nossa história recente: o modelo policial brasileiro foi estruturado durante a ditadura militar se apoiando na ideologia da segurança nacional.
O núcleo racional dessa doutrina, vale lembrar, afirmava que o principal inimigo do Estado encontrava-se no interior das fronteiras brasileiras. Rapidamente, o inimigo interno se confundiu com a própria população pobre do país.
O decreto-lei 667, de 2 de julho de 1969, atribuiu ao Ministério do Exército o controle e a coordenação das polícias militares por intermédio do Estado-Maior do Exército. O comando geral das polícias militares passou a ser exercido por oficiais superiores do Exército subordinados, hierárquica e operacionalmente, ao Estado-Maior do Exército.
Os policiais militares se submeteram então a uma Justiça especial, muito rigorosa quando se trata de infrações disciplinares, mas absolutamente condescendente com os crimes contra a população.
A despeito da redemocratização da década de 1980, a estrutura policial continuou a mesma, ou seja, prioritariamente orientada para a defesa daqueles interesses classistas que deram origem à ditadura.
Na verdade, uma polícia criada para o enfrentamento bélico não pode promover senão a violência sistemática contra os setores mais explorados e dominados dos trabalhadores brasileiros: a população pauperizada, os negros, os homossexuais e toda sorte de excluídos.
Enquanto dez cidadãos em cada cem mil habitantes tombam vítimas da violência urbana no Alto dos Pinheiros (bairro nobre da região sudoeste da cidade), 222 são mortos no Jardim Ângela (zona sul da cidade, próxima ao Capão Redondo, considerada a terceira região mais violenta do mundo).
Esse dado serve para derrubar a tese diligentemente construída por setores conservadores da sociedade paulistana: a elite a maior vítima da violência urbana.
O processo de redemocratização da sociedade brasileira trouxe para a ordem do dia a questão da desmilitarização da polícia. Entendemos que, igualmente, o corpo de bombeiros deveria ser parte de um sistema articulado de defesa civil, recebendo um salário digno, uma formação adequada e conquistando o direito à sindicalização.
Em suma, tanto a polícia quanto o Judiciário deveriam estar a serviço da segurança das famílias trabalhadoras. Em vez de se balizarem pelo arbítrio dos dominantes, deveriam prestar contas aos sindicatos, às associações de moradores e às entidades de direitos humanos.
A desmilitarização da polícia é uma exigência democrática sem a qual, 25 anos depois, a sociedade brasileira ainda não terá superado a ditadura.
RUY BRAGA, 40, doutor em ciências sociais pela Unicamp, é professor de sociologia da USP
ANA LUIZA FIGUEIREDO, 43, é diretora da Federação Nacional do Judiciário Federal e Ministério Público da União (Fenajufe).