O Globo, 1 de fevereiro de 2014.
Crise entre delegados e
agentes afeta trabalho da PF
- Embate já prejudica a qualidade das operações de combate à corrupção e pode complicar segurança na Copa
Jailton
de Carvalho
Publicado:
1/02/14 - 21h00
BRASÍLIA
- Num movimento sem precedente na história da Polícia Federal, agentes,
escrivães e papiloscopistas estão se rebelando contra o suposto domínio dos
delegados sobre a estrutura da instituição. Na guerra por cargos, salários e
reforma da polícia, agentes estão se recusando abertamente a cumprir ordens de
delegado para situações que vão do simples ato de dirigir um carro numa
operação a produzir relatórios de inteligência de grandes investigações
criminais.
Os atos
de resistência contra o que chamam de feudo dos bacharéis vão além dos limites
de uma simples rixa de corporações. Os embates entre os grupos, quase sempre
pontuais, mas recorrentes, trincaram os pilares da disciplina em alguns setores
e já estão afetando o número e a qualidade das operações de combate à
corrupção. O clima é tão pesado que em alguns casos, policiais das categorias
litigantes mal trocam cumprimentos.
As
pequenas rebeliões, que se multiplicam em várias direções, podem complicar
parte do esquema de segurança da Copa e repercutir até mesmo nas eleições
presidenciais em outubro deste ano. Com a policia conflagrada, a presidente
Dilma Rousseff teria dificuldade de apresentar a instituição como modelo de
luta contra os desvios de verbas da administração pública como aconteceu
durante as campanhas eleitorais de 2006 e 2010.
Numa
reação também sem precedentes, delegados estão preparando um manual de
procedimentos com regras detalhadas sobre obrigações de cada policial numa
investigação. Segundo um dos responsáveis pela organização das normas, agentes,
escrivães e papiloscopistas que saírem da linha depois da aprovação destas regras
serão levados à temida Corregedoria-Geral, ao Ministério Público e ao
Judiciário.
- É uma
situação grave e irreversível. Não se trata apenas de uma questão corporativa.
Trata-se de uma questão de interesse de toda sociedade brasileira, que é a
modernização da polícia - afirma o presidente da Associação Nacional dos
Procuradores da República, Alexandre Camanho.
O
procurador acompanha de perto os embates cotidianos entre agentes e delegado. O
trabalho da polícia sempre tem reflexo na atividade do Ministério Público. É a
partir de indícios e provas obtidos nas investigações, quase sempre conduzidas
pela polícia, que procuradores preparam as peças de acusação contra criminosos.
A tensão entre delegados e agentes se estende também ao Instituto Nacional de
Criminalística (INC). Peritos também reclamam do suposto exclusivismo dos
delegados.
- As
coisas estão se agravando. Delegados não cedem em ponto nenhum. Não vejo luz no
fim do túnel - afirma um experiente perito.
As
disputas de agentes, escrivães e papiloscopistas contra delegados são antigas,
mas se tornaram ainda mais acirradas depois da fracassada greve dos policiais
federais em 2012. Depois de 72 parados, agentes, escrivães e papiloscopistas
voltaram ao trabalho sem os reajustes salarias reivindicados, mas decididos a
esticar a corda até o limite da força. A partir de então, começaram a pipocar
país afora os atos de desobediência explícita.
No
Distrito Federal, um agente disse "não" quando a delegada Andreia
Albuquerque, que estava à frente da Operação Miquéas, pediu um relatório
analítico sobre escutas e movimentação financeira dos investigados. Segundo
relato de um policial ao GLOBO, o agente disse que repassaria os dados brutos
Andreia. Caberia a delegada, e não a ele, fazer os cruzamentos de informações e
extrair as devidas conclusões sobre as supostas ligações de políticos com um
famoso doleiro local.
Para se
proteger contra eventuais punições, o agente se escudou na portaria 523/89, que
estabelece as atribuições dos policiais. Na visão da Federação Nacional dos
Policiais Federais (Fenapef), a portaria não inclui entre as tarefas de um
agente a análise crítica de uma investigação. Pelo entendimento deles, se não
está na lei, a ordem do delegado perderia a eficácia.
- Antes,
agentes faziam relatório de inteligência (com cruzamento de dados) e os
delegados assinavam. Hoje eles não fazem mais. Não aceitamos a apropriação
(indevida) de propriedade imaterial. Hoje os agentes fazem a investigação,
fazem a análise parcial dos dados. O relatório, com as conclusões finais, quem
faz é o delegado - afirma Flávio Werneck, presidente do Sindicato dos Policiais
Federais do Distrito Federal.
Em São
Paulo, um dos atos de resistência teve desfecho trágico. Um grupo de 20
policiais de Ribeirão Preto e Bauru, especializados em ações contra o
narcotráfico, se recusou a participar da interceptação de um avião que, depois
de sair do Paraguai, pousaria numa fazenda em Bocaina carregado de armas e
cocaína. Os policiais cruzaram os braços com o argumento de que não tinham
fuzis potentes, visores noturnos e carros blindados para enfrentar os
criminosos, conforme determina as normas de segurança.
A partir
dali, um delegado recrutou às pressas agentes de outras cidades e correu até o
local onde do desembarque das drogas. Segundo um dos agentes que se recusaram a
participar da ação, os colegas foram surpreendidos pelos bandidos. Os
criminosos fugiram com o carregamento de cocaína num carro e, numa troca de
tiros, mataram um agente. A droga pertenceria à facção criminosa que domina os
presídios paulistas e fatura alto com a rota da cocaína na região.
-
Enquanto nós vamos lá (na linha de frente contra os criminosos), os delegados
ficam nos gabinetes aguardando os resultados para darem entrevista. A revolta é
geral - afirma um dos agentes que disseram "não" a ordem de
interceptar o carregamento de cocaína.
Em Minas
Gerais, agentes do serviço de inteligência suspenderam a análise de escutas
telefônica da Operação Esopo, investigação sobre supostos desvios de dinheiro
de ongs financiadas pelo Ministério do Trabalho. Depois do episódio, os chefes
locais fizeram um convênio com as polícias Civil e Militar para cobrir serviços
rejeitados pelos agentes federais. Em meio aos embates, a produção da Polícia
Federal está longe de antigos recordes.
Segundo
relatório divulgado recentemente pela Fenapef e não contestado pela
direção-geral, o número de indiciamentos em investigações sobre peculato,
concussão, emprego irregular de verba pública, lavagem de dinheiro e formação
de quadrilha caiu 86% em relação a 2007, quando a PF estava no auge das grandes
operações de combate à corrupção. Para alguns policiais, o declínio é
irreversível até que a paz interna seja restaurada.
Os
agentes reivindicam 100% de reajuste salarial, ocupação de cargos estratégicos
e a criação de uma carreira única dentro da PF aos moldes do FBI, a polícia
federal americana. Um agente em início de carreira ganha salário de R$ 7,5 mil,
menos da metade dos vencimentos de um delegado principiante, recebe R$
15.374,64 por mês. Eles se sentem ultrajados ainda porque viram salários de
agentes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) dobrar nos últimos anos.
Não faz muito tempo, os oficiais da Abin ganhavam bem menos que os federais.
A Fenapef
afirma ainda que os delegados ocupam 95% dos cargos estratégicos de chefia em
detrimento de agentes, escrivães, papiloscopistas e até de peritos. A polícia
tem aproximadamente 1.700 delegados, 1.200 deles estariam em cargos de chefia.
Para agentes, não delegados terem exclusividade sobre todos os setores da
administração e não apenas nas áreas relacionadas aos inquéritos criminais.
Citam como exemplo a Coordenação Geral de Tecnologia da Informação, chefiada
por um delegado e não por um especialista em informática.
- Por que
tem que ser delegado (a ocupar cargos de chefia) se isto não está na lei -
afirma o vice-presidente da Fenapef Luís Boudens.
As
reclamações dos agentes estão encontrando eco no Congresso Nacional. Dois
projetos apresentados na Câmara e no Senado defendem a criação da carreira
única dentro da PF, são as chamadas PEC do FBI. Pelas propostas, os agentes e
delegados passariam a ser classificados como policiais federais e atuariam de
acordo com a especialidade de cada um.
O
presidente da Associação Nacional dos Delegados Federais (ADPF), Marcos Leôncio
Ribeiro confirma que é forte a tensão entre agentes e delegados. Segundo ele,
essas desavenças são antigas mas, agora, estão "potencializadas" .
Ele entende que os agentes merecem reajuste salarial, mas não podem ocupar
cargos estratégicos em uma instituição que é, de fato, dirigida por delegados.
Diz também que a PEC do FBI melhoraria a vida dos agentes, mas seria um
retrocesso para a polícia. O FBI também seria pontilhado por subdivisões internas
de cargos e funções.
- O que a
gente verifica é o seguinte : reconhecemos que as reivindicações salariais são
justas, mas não se pode tolerar boicote - afirma Leôncio.
O
presidente da ADPF afirma reconhece também que "há desmotivação
profunda" entre os agentes e que,, mais cedo ou mais tarde, governo e
administração da PF terão que encontrar uma solução definitiva para o problema.
Recentemente a Fenapf recusou a oferta de um reajuste de 15,8% em duas parcelas
oferecido pelo governo. A entidade só aceita reajuste de 100% para equipar a
categoria com analistas da Abin, Banco Central e Receita Federal, entre outras.
Na última
quarta-feira a Fenapef aprovou novo calendário de protestos com indicativos de
greve nas próximas semanas. Procurada pelo GLOBO na última quinta-feira, a
direção da Polícia Federal não respondeu às perguntas do jornal sobre o
assunto.
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