segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Controle ou solução?

Segurança pública para leigos
02 Dez 2013
 

Lincoln D'Aquino Filocre

 
Você diria que um automóvel a 80km/h viaja em alta velocidade? Sensato, você responderá: depende. Depende, por exemplo, das condições da estrada. Se bem pavimentada, sinalizada e sem curvas perigosas, 80km/h não é velocidade alta. Agora, se for uma estrada de terra, com buracos e sem condições de visibilidade, 80km/h pode significar um pesadelo.
Na segurança pública, acontece algo semelhante. Você diria que a criminalidade de um país que registra 23 homicídios por 100 mil habitantes é alta? Se mantiver a sensatez, você responderá: depende. Depende, por exemplo, das condições socioeconômicas nacionais. Se for uma nação com ótimas condições educacionais, de saúde e sanitárias, de trabalho e renda, moradia, 23 homicídios/100 mil habitantes representam um pesadelo. Por seu lado, se o país tem péssima educação, saúde etc., então a taxa pode até ser alta, mas é compatível com a situação.
A ONU diz que mais de 10 homicídios /100 mil habitantes representam criminalidade endêmica, o que induz países a tentarem reduzir taxas de homicídios sem atentarem para condições socioeconômicas internas. Se você for o condutor do automóvel e pretender conservar o carro viajando a 80km/h na estrada precária, será candidato a ver o veículo se desmanchar, soltando parafusos e peças, e a sofrer um acidente.
Da mesma maneira, se a polícia for chamada a manter a criminalidade abaixo dos 10 homicídios /100 mil habitantes num país com preocupantes índices educacionais, de saúde etc., ela também se submeterá a perigos. A tentativa de segurar a criminalidade aquém do compatível com o país fará que a polícia incida em riscos, especialmente o da prática de abusos, excessos policiais.
Para que o automóvel possa viajar a 80 km/h, das duas uma: ou o Estado melhora as condições de trafegabilidade, ou se sujeitará a acidentes. De igual forma, para ter a criminalidade abaixo dos 10 homic/100 mil habitantes, ou as condições socioeconômicas do país melhoraram, ou o esforço redundará em mais excessos policiais.
Ao volante do automóvel na estrada de terra, você manteria o carro em velocidade compatível com as condições do terreno, certo? Pergunto, então, se você está entre os que acham que a criminalidade no Brasil deve ser inferior a 10 homicídios/100 mil habitantes, mesmo sabendo que a taxa não é compatível com as deficitárias condições do país. Se a resposta é sim, você não está só. Ao seu lado, estão alguns dos mais renomados especialistas em segurança pública que afirmam, dia e noite, sem qualquer relativização, que a criminalidade no Brasil é extremamente alta, que a polícia não cumpre seu papel, e fazem discursos falaciosos como o em prol da desmilitarização das PMs.
Vejo que você e seus companheiros perderam — momentaneamente, espero — a sensatez. Polícia, digo eu, existe para manter a criminalidade em patamar condizente com as condições do país. Se não forem melhoradas as condições educacionais, de moradia, de saúde, de emprego e renda etc., a criminalidade permanecerá em nível com elas compatível, dura realidade a ser assumida, mas que muitos preferem não ver ou fingir que não sabem. Noutras palavras: cumpre à polícia apenas controlar a criminalidade, não solucioná-la.
O senso comum infelizmente, e por vezes também o pensamento da própria polícia, não é esse. É por isso que excessos policiais são notícia diária na imprensa, a refletir o elevado grau de desconfiança da sociedade na instituição. Inadmitidos os abusos por serem ilegais, a polícia arrefece e a criminalidade recrudesce, num processo cíclico aparentemente infindável. Por isso, depois de anos e anos, a segurança pública no Brasil patina. Quanto mais a polícia é colocada no centro da solução da criminalidade e da violência, menos se avança rumo à efetiva resolução da questão: melhoria geral e paulatina das condições socioeconômicas do país.
Para finalizar, por que historicamente nos acostumamos a ver polícia como solução da criminalidade? Porque somos viciados em copiar modelos de países com boas condições socioeconômicas. Lá, como aqui, polícia é controle de criminalidade, não solução. No entanto, como as condições socioeconômicas por lá são satisfatórias, fica a parecer que é a polícia quem soluciona os problemas. Além disso, no Brasil, tirar a solução do colo da polícia não dá voto, entendeu?

LINCOLN D"AQUINO FILOCRE Procurador do estado de Minas Gerais, diretor do Instituto Brasileiro de Direito e Política de Segurança Pública

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