domingo, 17 de novembro de 2013

Anistia: duas visões


O Globo, 17 de novembro de 2013.

Contra o legítimo

Tema em discussão - Revisão da Lei de Anistia

Nossa opinião



A anistia política costuma se seguir ao apaziguamento institucional, ou apressá-lo. São exemplares os perdões concedidos pelo presidente Juscelino Kubitschek, nos anos 50, a revoltosos da Aeronáutica, em motins promovidos a partir das bases, no interior do país, de Aragarças e Jacareacanga. Constituíam um grupo de intransigentes inimigos do trabalhismo varguista, do qual nascera o PSD, legenda de JK, cujo vice — outro motivo de irritação dos amotinados — era João Goulart, do PTB, também criado por Vargas. 
Já a Lei de Anistia de 1979, encaminhada  à aprovação do  Congresso pelo último presidente-General  da ditadura militar,  tem um alcance bem mais  amplo. A ordem constitucional  havia sido de fato rompida pelo  golpe de 64 — do qual participaram  egressos de Jacareacanga  e Aragarças. Ruptura aquela  aprofundada pela radicalização  do movimento em dezembro de  1968, na edição do Ato Institucional  n° 5, um aguçamento do golpe.
Diante dos 21 anos de regime de exceção, as duas revoltas na FAB foram arroubos juvenis.  E tanto foi assim que a Lei de Anistia não se constituiu um simples ato de poder, por decisão da cúpula do governo. Tratou-se do resultado de uma difícil e delicada costura política entre opositores do regime e generais.
A própria crise do modelo econômico da era militar — implodido pela excessiva dependência de empréstimos externos, tornados impagáveis pelo segundo choque de petróleo e a disparada  dos juros americanos — podia ajudar, como ajudou, na abertura consensual do regime. Mas também havia o risco de um recrudescimento. Nunca se deve descartar a possibilidade de um desfecho insensato em qualquer processo político. 
Restou provado que aquela anistia, pactuada entre o poder que se retirava e o que se instauraria — com apoio de egressos do antigo regime —, foi a melhor fórmula de apaziguamento da sociedade no processo de redemocratização lenta, segura e gradual.  Foi nesta moldura política que se formulou o perdão recíproco  — torturadores, guerrilheiros/terroristas. 
A Lei de Anistia tem, portanto, uma legitimidade política e histórica clara. Querer revê-la, como desejam setores do Ministério Público, é investir contra esta legitimidade. Além de contrariar entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), já proferido, de que agentes públicos atuantes na repressão àquela época não podem ser condenados na Justiça, tanto quanto estão livres de qualquer sentença militantes da luta armada, hoje em cargos públicos relevantes, em Brasília. 
Sequer decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos podem interferir neste ou em qualquer veredicto de uma Justiça nacional, como esclareceu o próprio presidente do tribunal, Diego García-Sayán, ao falar sobre outro assunto, de passagem por Brasília.  O MP pode até ter condições legais de agir nesta direção. Mas não deveria.





O Globo, 17 de novembro de 2013.

Questão em aberto

 

Tema em discussão - Revisão da Lei de Anistia

Outra opinião

Sergio Gardenghi Suiama


O GLOBO de 21/10 classificou como retrocesso o parecer do procurador-geral da República sobre a imprescritibilidade e não incidência da Lei de Anistia nos crimes da Ditadura. Segundo o jornal, "essa discussão já foi superada com a palavra final dada pelo STF no entendimento de que todos os envolvidos na ‘guerra suja' na Ditadura militar foram anistiados". 
Não é essa a posição do Ministério  Público Federal (MPF). Em  2011, sua câmara de revisão em  matéria penal rejeitou homologar  o arquivamento de dois crimes  cometidos em 1971, sob o argumento  de que é dever do Estado, e  particularmente do MP, cumprir a  sentença da Corte Interamericana  de Direitos Humanos do caso Gomes  Lund x Brasil (2010).
Na sentença,  a corte decidiu que "as disposições  de anistia que impedem  a sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos".  Em consequência desse entendimento, foram instauradas duas centenas de investigações de casos de sequestro, homicídio e ocultação de cadáveres.
E foram ajuizadas seis ações penais em três estados (RJ, SP e PA), contra 11  agentes. Quatro dessas ações foram recebidas pela Justiça Federal e, em uma delas — o sequestro de Edgar de Aquino Duarte —, foi marcada audiência para oitiva de testemunhas.  Do ponto de vista jurídico, a discussão sobre o alcance da lei de anistia e a prescritibilidade de certos crimes cometidos por agentes da Ditadura não foi superada por dois motivos: o primeiro é que a decisão da Corte Interamericana é posterior e tem fundamentos jurídicos diversos daqueles da ADPF 153.
O fato de a anistia ter sido considerada constitucional pelo STF não acarreta a validade da lei perante o direito internacional, nem exime o Estado brasileiro de suas obrigações junto a um tribunal ao qual ele próprio se vinculou. Em segundo lugar, ainda está pendente o julgamento de recurso contra o julgamento da ADPF 153. Não há, portanto, decisão definitiva a respeito da matéria no STF. 
Não é um dever só do procurador-geral, mas de todo o MP, promover a responsabilização criminal dos autores de homicídios e desaparecimentos cometidos na Ditadura. Não é demais notar que a permanência de ações clandestinas dessa espécie — vide o caso Amarildo — apenas reforça a necessidade do reconhecimento do caráter imprescritível dos crimes cometidos em regimes nos quais as instituições policiais e judiciais são incapazes de investigar e punir com seriedade.

Sergio Gardenghi Suiama é procurador da  República no Rio de Janeiro e membro do GT  Justiça de Transição do Ministério Público Federal




Nenhum comentário:

Postar um comentário