sábado, 25 de maio de 2013

Transição brasileira: todos com todos



Folha de S. Paulo, 25 de maio de 2013.

José Paulo Cavalcanti Filho 

A Lei da Anistia deve ser revista?
não
Com os olhos no futuro
A questão proposta pela Folha tem duas dimensões distintas. Uma primeira, que parece consensual (ou quase), é moral. A compreensão de que alguns delitos alcançados pela Lei da Anistia, como tortura ou morte de pessoas indefesas (sob guarda do Estado), estão abaixo dos limites da dignidade humana. O que importa dar relevo ao conhecimento da verdade. Para conhecer autores e cúmplices. Quem são os verdugos. Quem lhes deu ordens de torturar ou matar. Ou fechou olhos, perante dor tamanha. Para que sejam julgados, em nossas consciências, a grandeza da vilania e o opróbrio do horror.
Outra, menos simples, é discutir a revisão da lei. Nesse campo jurídico, três argumentos são usualmente referidos nesse sentido. A ver.
O de que, pela grandeza da desumanidade, esses crimes seriam imprescritíveis. Tese difícil de prosperar entre nós. Porque o Brasil não subscreveu a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade (de 1968). Nem tratados internacionais podem criminalizar ato nenhum, posto só conferir direitos e garantias individuais --assim está em nossa Constituição (arts. 5º e 60). E porque essa Constituição refere como imprescritíveis apenas racismo e crimes contra a ordem constitucional e o Estado democrático.
Do que se têm que isso teria que se dar com alteração legal. E sem recorrer à retroatividade --o que, na essência, importaria revogar (art. 28) a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (de 1969). E cláusula pétrea da Constituição (art. 5º), segundo a qual "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". No cumprimento do princípio da legalidade, base de qualquer modelo jurídico democrático --presente na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. XI) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 9º).
O de que algumas ações de repressão não poderiam ser consideradas crimes conexos. O que nos leva a definir se os agentes da repressão atuavam por razões políticas ou pessoais. Considerando-se como pessoais a maldade humana em quaisquer de suas desalentadoras variações. Devendo por oposição, e mais propriamente, ser consideradas como razões políticas tudo o mais --embora, é verdade, alguns torturadores tenham se fartado, alegremente, no exercício de suas taras.
O terceiro argumento é o de que devemos aplicar as sentenças dos tribunais internacionais --mais especificamente, os da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mesmo tendo nossa adesão à corte (em 2001) se dado só "para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998". Apesar dessa precondição, tem sido referida a sentença do caso Gomes Lund x Brasil (e mesmo um antecedente similar, o caso Almonacid Arellano x Chile). Reconhecendo a corte não poder atuar em algumas situações (como a de Maria Lúcia Petit da Silva), mas admitindo atuar em outras --por considerar que um evento só se conclui até que se localize "o paradeiro da pessoa desaparecida" ou o inteiro esclarecimento dos fatos. Teses muito discutíveis.
Em posição contrária, e dando fundamento a não considerar que seja possível sua revisão, está o fato de que essa Lei da Anistia, no início ordinária (6683/79), foi elevada a regra constitucional pela EC 26/85. Sendo impróprio, à toda evidência, considerar que tivemos uma "auto-anistia". Porque dita emenda se deu em 1985. Com um presidente civil e num ambiente democrático.
No mais, o Supremo já reconheceu o "caráter bilateral da anistia, ampla e geral" (em 2010). Decorrente da especial natureza do processo de transição brasileira, substancialmente diverso do que se deu em países vizinhos. Uma transição negociada, na direção de uma democracia estável. Com olhos no futuro, pois. Assim seja. Mas sem esquecer o passado, em nossos corações. A verdade. Para que os anos de chumbo que vivemos não voltem a acontecer. Nunca mais.
JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, 65, advogado, é membro da Comissão Nacional da Verdade

Luiza Erundina 


A Lei da Anistia deve ser revista?
sim
Por uma autêntica interpretação
Antes de tudo, é preciso esclarecer não se tratar de revisão da lei nº 6.683/79, a Lei da Anistia. Mas, dar interpretação autêntica ao disposto no art. 1º, § 1º da referida lei, segundo a qual declaram-se conexos aos crimes políticos, objeto da anistia concedida pela lei, "os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política".
É no sentido de dar nova interpretação ao que dispõe o art. 1º § 1º da lei que apresentei o projeto de lei 573/2011, que define no art. 1º que "não se incluem entre os crimes conexos, definidos no art. 1º § 1º da lei nº 6.683/1979, os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos".
A aprovação desse projeto é condição para efetivo cumprimento à sentença condenatória do Estado brasileiro, proferida em 24/11/2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, é dever do Brasil cumprir integralmente a decisão.
Ao julgar a ação proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que questionava se a lei nº 6.683/1979 de fato anistiou agentes do Estado que cometeram crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos durante o regime militar (1964-1985), o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu manter a interpretação atual da Lei da Anistia e impedir que os responsáveis por crimes contra opositores políticos sejam processados, julgados e punidos.
O relator do processo, o então ministro Eros Grau, deu parecer contrário à revisão da lei, argumentando que ela teria sido "amplamente negociada". Convém lembrar, no entanto, as condições em que tal acordo se deu. Os militares ainda tinham o controle do poder e a sociedade civil dava os primeiros passos na reconstrução da democracia no país.
Por entender a imperiosa necessidade de reinterpretação da Lei da Anistia para que se conheça a verdade sobre os crimes da ditadura e os responsáveis por eles não fiquem impunes, apresentei o mencionado projeto de lei, que se encontra na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, aguardando votação.
No momento, ocorre intensa discussão da matéria pela sociedade, particularmente pelos setores mais diretamente interessados, os Comitês Memória, Verdade e Justiça, criados e funcionando na maioria dos Estados brasileiros, além das Comissões da Verdade das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, que se manifestam favoravelmente à aprovação do projeto de lei.
Recentemente, alguns membros da Comissão Nacional da Verdade também se declararam favoráveis à reinterpretação da Lei da Anistia, para que os crimes cometidos por agentes do regime militar sejam punidos. Tal manifestação representa um avanço, considerando-se que a lei nº 7376/2010, que criou a comissão, limita seus objetivos ao resgate da memória e revelação da verdade histórica sobre as graves violações aos direitos humanos ocorridas no período da ditadura militar.
Assim, fica claro que esses limites e determinações legais precisam ser superados, com vistas a possibilitar a justiça de transição. Para tanto, se impõe a aprovação do projeto de lei 573/2011, que dá interpretação autêntica à Lei da Anistia.
A mesma instituição --Congresso Nacional-- que aprovou a lei nº 6.683/1979, numa conjuntura e correlação de forças adversas, tem o poder e a prerrogativa de aprovar um outro diploma legal que atenda aos reais anseios da sociedade brasileira, ou seja, ver completado o processo de redemocratização e a plena consolidação da democracia no país.
LUIZA ERUNDINA DE SOUSA, 78, é deputada federal pelo PSB-SP. Foi prefeita de São Paulo (1989 a 1992)

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