quarta-feira, 30 de maio de 2012

Mendes &. Lula: versões distintas


Folha de S. Paulo, 30 de maio de 2012.
PT convoca militantes a defender Lula de 'manobra'

Rui Falcão associa Mendes a ação para "desmoralizar" ex-presidente
Marco Maia afirma que não acredita no relato do ministro, segundo quem Lula pediu para adiar julgamento
DE SÃO PAULO
DE BRASÍLIA
O presidente do PT, Rui Falcão, conclamou a militância do partido a "ficar atenta" e associou o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), a uma suposta manobra para desmoralizar a sigla e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em vídeo divulgado ontem na internet, o dirigente diz que o relato de Mendes sobre a conversa em que Lula teria pedido apoio para adiar o julgamento dos réus do mensalão "já foi desmentido".
O ex-presidente afirmou que a versão do magistrado é "inverídica" e negou intenção de interferir no tribunal.
Na gravação, Falcão diz: "A militância do PT precisa estar atenta às manobras que transcorrem nesse momento tentando comprometer o presidente Lula com um encontro com o ministro do Supremo Gilmar Mendes, numa conversa já desmentida pelo Nelson Jobim, também ex-ministro do Supremo."
"A quem interessa envolver o presidente Lula nesse tipo de conversa cujo conteúdo já foi desmentido pelo presidente, com muita indignação, e também pelo ex-ministro Nelson Jobim?", afirma.
Na mensagem, dirigida a ativistas das redes sociais, Falcão orientou a militância a sair em defesa de Lula.
"Vamos ficar atentos, vamos desbaratar mais uma manobra daqueles que querem desmoralizar o PT e o presidente Lula, com nítidos objetivos eleitoreiros."
O dirigente associou a divulgação do diálogo à possibilidade de o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), ser convocado pela CPI.
O presidente do PT em São Paulo, Edinho Silva, também defendeu a versão de Lula, mas pediu que os colegas de partido evitem rebater as declarações de Mendes.
"Essa agenda não interessa ao PT. Só interessa à oposição e a quem quer partidarizar o julgamento da crise de 2005", afirmou, referindo-se ao mensalão.
"DÚVIDAS"
O presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-RS), afirmou ter "dúvidas" sobre Mendes e disse não acreditar em seu relato sobre a conversa com Lula.
"Eu não acredito que o presidente Lula tenha expressado ou tratado o assunto como foi relatado pelo ministro. Eu tenho dúvidas sobre o comportamento do ministro, que só veio tratar disso um mês após a reunião", disse.
A Folha ouviu advogados de sete dos principais réus do mensalão. Cinco deles disseram que o acirramento dos ânimos só traz prejuízos aos clientes. Eles manifestaram desconfiança sobre a versão de Mendes para o diálogo.
 
O Globo, 30 de maio de 2012.
"Intuito é trazer STF à vala comum"
Ministro critica ex-presidente Lula e fala em ação orquestrada para enfraquecer instituição
Sergio Fadul
Carolina Brígido
BRASÍLIA
LIGAÇÕES PERIGOSAS
O GLOBO: Como foi a conversa com o presidente Lula?
GILMAR MENDES: Começou de forma absolutamente normal. Aí eu percebi que ele entrava insistentemente com tema da CPMI, dizendo do controle, do poder que tinha. Na terceira ou quarta vez que ele falou, eu senti-me na obrigação de dizer pra ele: "Eu não tenho nenhum temor de CPMI, eu não tenho nada com o Demóstenes".
Isso soou a ele como provocação?
GILMAR: Isso. A reação dele foi voltar para a cadeira, tomou um susto. E aí ele disse: "E a viagem a Berlim? Não tem essa história da viagem a Berlim?" Aí eu percebi que tinha uma intriga no ar e fiz questão de esclarecer.
Antes disso ele tinha mencionado o mensalão?
GILMAR: É. Aqui ocorreu uma conversa normal. Ele disse que não achava conveniente o julgamento e eu disse que não havia como o tribunal não julgar neste ano. Visões diferentes e sinceras. É natural que ele possa ter uma avaliação, um interesse de momento de julgamento.
Isso é indício de que o presidente Lula não se desprendeu do cargo?
GILMAR: Não tenho condições de avaliar. Posso dizer é que ele é um ente político, vive isso 24 horas. E pode ser que ele esteja muito pressionado por quem está interessado no julgamento.
Na substituição de dois ministros, acha que as nomeações podem atender a um critério ideológico?
GILMAR: É uma pressão que pode ocorrer sobre o governo. Toda minha defesa em relação ao julgamento ainda este semestre diz respeito ao tempo já adequado de tramitação desse processo. O presidente Ayres Britto tem falado que o processo está maduro. Por outro lado, a demora leva à ausência desses dois ministros que participaram do recebimento da denúncia e conhecem o processo, que leva à recomposição do tribunal sob essa forte tensão e pressão, o que pode ser altamente inconveniente para uma corte desse tipo, que cumpre papel de moderação.
A partir da publicação da conversa do presidente Lula com o senhor, os ministros do STF estariam pressionados a condenar os réus, para não parecer que estão a serviço de Lula?
GILMAR: Não deve ser isso. O tribunal tem credibilidade suficiente para julgar com independência (...) O que me pareceu realmente heterodoxo, atípico, foi essa insistência na CPMI e na tentativa de me vincular a algo irregular. E de forma desinformada.
Quem está articulando o adiamento do mensalão dá um tiro no pé?
GILMAR: Acho que sim. E talvez não reparar que o Brasil não é a Venezuela de Chávez... ele mandou até prender juiz. Um diferencial do Brasil é ter instituições estáveis e fortes. Veja a importância do tribunal em certos momentos. A gente poderia citar várias. O caso das ações policialescas é o exemplo mais evidente. A ação firme do tribunal é que libertou o governo do torniquete da polícia. Se olharmos a crise dos jogos, dos bingos, era um quadro de corrupção que envolvia o governo. E foi o Supremo que começou a declarar a inconstitucionalidade das leis estaduais e inclusive estabeleceu a súmula. Eu fui o propositor da súmula dos bingos.
Depois que o ministro Jobim o desmentiu, o senhor conversou com ele?
GILMAR: Sim. O Jobim disse que o relato era falso. Eu disse: "Não, o relato não é falso". A "Veja" compôs aquilo como uma colcha de retalhos, a partir de informações de várias pessoas, depois me procuraram. Óbvio que ela tem a interpretação. O fato na essência ocorreu. Não tenho histórico de mentira.
O julgamento já está em curso?
GILMAR: Sim, de certa forma. Por ironia do destino, talvez essas tentativas de abortar o julgamento ou de retardá-lo acabou por precipitá-lo, ou torná-lo inevitável.
O momento é de crise?
GILMAR: Está delicado. O país tem instituições fortes, isso nos permite resistir, avançar.
Tem uma ação deliberada de tumultuar processos em curso?
GILMAR: Ah, sim.
Existe fixação da figura do senhor?
GILMAR: Isso que é sintomático. Ficaram plantando notícias.
Qual o motivo disso?
GILMAR: Tenho a impressão de que uma das razões deve ser a tentativa de nulificar as iniciativas do tribunal em relação ao julgamento desse caso.
Mas por que o senhor?
GILMAR: Não sei. Eu vinha defendendo isso de forma muito enfática (o julgamento do mensalão o quanto antes). Desde o ano passado venho defendendo isso. O tribunal está passando por um momento muito complicado. Três juízes mais jovens, recém-nomeados, dois dos mais experientes para sair, uma presidência em caráter tampão. Isso enfraquece, debilita a liderança. Já é um poder em caráter descendente.
Um tribunal com ministros mais recentes é mais fraco que um com ministros mais experientes?
GILMAR: Não é isso. Mas os ministros mais recentes obviamente ainda não têm a cultura do tribunal, tanto é que participam pouco do debate público, naturalmente.
Dizem que os réus do mensalão querem adiar o julgamento para depois das substituições.
GILMAR: Esse é um ponto de ainda maior enfraquecimento do tribunal. Sempre que surge nova nomeação sempre vêm essas discussões acerca de compromissos, que tipo de compromissos teria aceito. Se tivermos esse julgamento, além do risco de prescrição no ano que vem, vamos trazer para esses colegas e o tribunal esta sobrecarga de suspeita.
Haverá suspeita se a indicação deles foi pautada pelo julgamento?
GILMAR: Vai abrir uma discussão desse tipo, o que é altamente inconveniente nesse contexto.
O voto do senhor na época da denúncia não foi dos mais fortes...
GILMAR: Não. É uma surpresa. Por que esse ataque a mim? Em matéria criminal, me enquadro entre os mais liberais. Inclusive arquei com o ônus de ser relator do processo do Palocci, com as críticas que vieram, fui contra o indiciamento do Mercadante, discuti fortemente o recebimento da denúncia do Genoino lá em Minas. Ninguém precisa me pedir cautela em termos de processo criminal. Combato o populismo judicial, especialmente esse em processos criminais, denuncio isso.
Todas as figuras que o senhor citou são petistas proeminentes. Por que querem atacar o senhor agora?
GILMAR: Desde o início desse caso há uma sequência de boatos, valendo-se inclusive desse poder perverso, essa associação de vazamentos, Polícia Federal, acesso de CPI. Como fizeram com o (procurador-geral da República, Roberto) Gurgel, de certa forma.
Um ex-presidente empenhado em pressionar o STF não mostra alto grau de desespero com a possibilidade de condenação no mensalão?
GILMAR: É difícil classificar. A minha indignação vem de que o próprio presidente poderia estar envolvido na divulgação de boatos. E a partir de desinformação, esse que é o problema.
Ele pode ter sido usado?
GILMAR: Sim, a sobrecarga... Ele não está tendo tempo de trabalhar essas questões, está tratando da saúde. Alguém está levando esse tipo de informação. Fui a Berlim em viagem oficial. Por conta do STF. Pra que ficar cultivando esse tipo de mito? São historietas irresponsáveis. Qualquer agente administrativo saberia esclarecer isso.
Esses ataques não atingem o STF?
GILMAR: Claro, evidente. O intuito, obviamente, não é só me atingir, é afetar a própria instituição, trazê-la para essa vala comum.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Escutas da PF sobre Cachoeira


O Estado de S. Paulo, 29 de maio de 2012.
Escutas da PF revelam que Cachoeira teria poder de influência no PT do B em Goiás
Edivaldo Cardoso de Paula, presidente do partido em Goiás, é aliado de Cachoeira desde 1996
28 de maio de 2012 | 20h 51
Ricardo Chapola, Estadão.com.br
Além do interesse de Carlinhos Cachoeira em comprar o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), as interceptações telefônicas da Polícia Federal durante a Operação Monte Carlo revelaram que o contraventor já comandaria uma seção partidária em Goiás: o Partido Trabalhista do Brasil (PT do B). Segundo escutas da PF, o presidente do PT do B em Goiás, Edivaldo Cardoso de Paula, é aliado de Cachoeira desde 1996 e aparece tanto em citações, como em conversas diretas com o contraventor. Procurado, ele não quis se pronunciar.
O PT do B possui um total de 199.300 filiados no País, pouco mais de 7.400 em Goiás, de acordo com Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O diretório municipal do partido está sob o comando de Edivaldo desde 2005. Ex-presidente do Detran-GO, Edivaldo atuaria como mais um braço político do contraventor. Ele abandonou a chefia do órgão após ter sido mencionado nas escutas da PF. Para o deputado Mauro Rubem (PT-GO), Edivaldo compunha a cota de indicações de Cachoeira no governo de Marconi Perillo (PSDB). "Ele é testa de ferro de Cachoeira e, mais ainda, ele foi a pessoa que o Cachoeira exigiu, junto ao governador (Marconi Perillo), para estar no Detran. Ele é cota do Cachoeira", afirmou.
Segundo o presidente do PSDB-GO, Paulinho de Jesus, a proximidade de Edivaldo com Cachoeira só se evidenciou depois que os grampos vieram à tona. De acordo com ele, o presidente do PT do B-GO foi genro do ex-prefeito de Goiânia, Boadyr Veloso, suposto comandante de jogos de azar em algumas cidades do Estado. Veloso foi misteriosamente assassinado em 2008.
Em uma das interceptações da PF, o contador de Cachoeira, Lenine Araújo de Souza, falava sobre um pagamento a Edivaldo no valor de R$ 10 mil referente a uma dívida que o contador tinha com seu sogro já falecido. Já as investigações da PF apontam que o dinheiro seria um salário adicional pago por Cachoeira aos colaboradores de Perillo.
À frente do Detran, Edivaldo Cardoso virou alvo de duas investigações do Ministério Público para apurar empresas que têm parceria suspeita com o órgão. Uma prestava serviço de vistorias sem ter licitação e a outra, conveniada a uma empresa de Edivaldo Cardoso, estaria sendo favorecida pelo próprio Detran na confecção de carteiras de habilitação no Estado. Segundo o promotor de Justiça, Rodrigo Bolelli, ainda não há indícios que configurem contravenção nos fatos apreciados pelo MP.
Regional. As investigações da PF evidenciam que Cachoeira tinha força política em todas as esferas administrativas, da municipal à federal. Na Câmara dos vereadores de Goiânia, 10 parlamentares foram notificados pelo Conselho de Ética após aparecerem nos grampos da PF em conversas com o grupo de Cachoeira. Um deles, Deivison Costa (PT do B), teria sido influenciado pelo contraventor para a retirada de sua assinatura de uma Comissão Especial de Inquérito (CEI), que investigaria contratos da empresa Delta com a prefeitura.
"Na Câmara de vereadores aparece um envolvimento superficial, ou até mais profundo de 10 vereadores (de 35 vereadores que Goiânia tem) com o Cachoeira. Ele jogava para poder construir e aumentar seu poder político", disse Rubem.
Deivison Costa não se pronunciou pessoalmente, mas transmitiu sua declaração por meio do chefe de gabinete, Ronilson Reis. "Ele nunca assinou CEI nenhuma, como é que ele vai retirar se ele nunca assinou? Isso é um equívoco", disse Reis. "Ele não vai falar. Você se justifica quando está devendo, se você não está devendo, num tem o que falar."
Nanicos. De acordo com Paulinho de Jesus, os nanicos muitas vezes atuam como partidos de aluguel. "Os contraventores se utilizam deles para atender aos interesses pessoais. Pelo seu porte, eles não têm ressonância nenhuma na sociedade, mas isso não deixa de ser um grupo de contraventores mexendo com a república, com as sustentações dela", disse. Segundo apurou o Estadão.com.br, Cachoeira é chamado de "executivo do grupo" entre os partidos nanicos de Goiânia.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Ativistas criticam direitos humanos no Brasil


Valor Econômico, 25 de maio de 2012.

Ativistas criticam direitos humanos no Brasil

Por Guilherme Serodio | Do Rio

Entre janeiro e setembro de 2011, 804 mortes foram registradas em conflitos com a polícia só nos Estados do Rio e São Paulo, enquanto nos Estados Unidos foram 137 pessoas mortas por policiais no ano e na Alemanha apenas 6.
O dado é parte d o relatório da Anistia Internacional (AI) "Estado dos Direitos Humanos no Mundo", lançado ontem no Rio.
Diretor executivo da AI no Brasil, Átila Roque destaca a constituição da Comissão da Verdade como "um enorme avanço, resultado de décadas de lutas, sobretudo dos familiares das vítimas e de organizações de direitos humanos". Apesar de iniciativas como esta e da melhoria dos indicadores sociais, o relatório denuncia a violência policial nos centros urbanos com a prática de "torturas e execuções extrajudiciais". No campo, os conflitos agrários e grandes obras de infraestrutura ameaçam ativistas, indígenas e quilombolas.
Entre os ativistas presentes ao evento, a opinião consensual é que a situação dos direitos humanos no país é preocupante.
Uma das maiores especialistas do Brasil em segurança pública, a socióloga Julita Lemgruber destaca a atenção do relatório às área de segurança pública. Segundo ela, em 2011 a polícia brasileira matou 1100 pessoas.
Julita, a primeira mulher a comandar o sistema prisional carioca, comenta a condição precária da população carcerária. Para ela, seriam necessários "R$ 10 bilhões para resolver o problema do déficit carcerário".
Em 2011, havia 500 mil presos no país, 44% deles cumprindo prisão provisória, informa a Anistia. A instituição denuncia que os presos brasileiros são submetidos comumente a superlotação, condições degradantes, tortura e violência. "A aposta brasileira pela prisão como política de segurança pública é "irracional", diz Julita.
No campo a situação é assombrosa, diz o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Diogo Cabral. Nos últimos cinco anos foram 1610 mortes em conflitos rurais, segundo a CPT. No período houve apenas 92 julgamentos de assassinatos em conflitos rurais e só sete mandantes foram condenados no país.
A situação é mais delicada nos estados do Maranhão e Pará, que reuniram quase 30% dos 1335 conflitos rurais no país em 2011. "As populações rurais tradicionais estão sendo exterminadas", diz Cabral.
No ano passado, havia 1.855 pessoas ameaçadas de morte em razão de conflitos agrários no país, segundo a Anistia. Mas, de janeiro a maio de 2012 mais 14 assassinatos foram registrados em conflitos no campo.
Para a Anistia, grandes obras de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) também são um risco para populações tradicionais pelos deslocamentos provocados.
A organização vai reabrir seu escritório no Brasil em julho. A Anistia é saudada por ativistas como um reforço de peso que traz visibilidade à luta pelos direitos humanos. "O desafio é formar uma sociedade que incorpore os direitos humanos como parte central da democracia e do desenvolvimento no Brasil", diz Roque.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Visões distintas sobre a Verdade


O Globo 22 de maio de 2012.
Verdade? Que verdade?
Marco Antonio Villa
Foi saudada como um momento histórico a designação dos membros da Comissão da Verdade. Como tudo se movimenta lentamente na presidência de Dilma Rousseff, o fato ocorreu seis meses após a aprovação da lei 12.528. Não há qualquer justificativa para tanta demora. Durante o trâmite da lei o governo poderia ter desenhando, ao menos, o perfil dos membros, o que facilitaria a escolha.
Houve, na verdade, um desencontro com a história. O momento para a criação da comissão deveria ter sido outro: em 1985, quando do restabelecimento da democracia. Naquela oportunidade não somente seria mais fácil a obtenção das informações, como muitos dos personagens envolvidos estavam vivos. Mas - por uma armadilha do destino - quem assumiu o governo foi José Sarney, sem autoridade moral para julgar o passado, pois tinha sido participante ativo e beneficiário das ações do regime militar.
O tempo foi passando, arquivos foram destruídos e importantes personagens do período morreram. E para contentar um setor do Partido dos Trabalhadores - aquele originário do que ficou conhecido como luta armada - a presidente resolveu retirar o tema do esquecimento. Buscou o caminho mais fácil - o de criar uma comissão - do que realizar o que significaria um enorme avanço democrático: a abertura de todos os arquivos oficiais que tratam daqueles anos.
É inexplicável o período de 42 anos para que a comissão investigue as violações dos direitos humanos. Retroagir a 1946 é um enorme equívoco, assim como deveria interromper as investigações em 1985, quando, apesar da vigência formal da legislação autoritária, na prática o país já vivia na democracia - basta recordar a legalização dos partidos comunistas. Se a extensão temporal é incompreensível, menos ainda é o prazo de trabalho: dois anos. Como os membros não têm dedicação exclusiva e, até agora, a estrutura disponibilizada para os trabalhos é ínfima, tudo indica que os resultados serão pífios. E, ainda no terreno das estranhezas e sem nenhum corporativismo, é, no mínimo, extravagante que tenha até uma psiquiatra na comissão e não haja lugar para um historiador.
A comissão foi criada para "efetivar o direito à memória e a verdade histórica". O que é "verdade histórica"? Pior são os sete objetivos da comissão (conforme artigo 3º), ora indefinidos, ora extremamente amplos. Alguns exemplos: como a comissão agirá para que seja prestada assistência às vítimas das violações dos direitos humanos? E como fará para "recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional"? De que forma é possível "assegurar sua não repetição"?
O encaminhamento dado ao tema pelo governo foi desastroso. Reabriu a discussão sobre a lei de anistia, questão que já foi resolvida pelo STF em 2010. A anistia foi fundamental para o processo de transição para a democracia. Com a sua aprovação, em 1979, milhares de brasileiros retornaram ao país, muitos dos quais estavam exilados há 15 anos. Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, Miguel Arraes, Leonel Brizola, entre os mais conhecidos, voltaram a ter ativa participação política. Foi muito difícil convencer os setores ultraconservadores do regime militar que não admitiam o retorno dos exilados, especialmente de Leonel Brizola, o adversário mais temido - o PT era considerado inofensivo e Lula tinha bom relacionamento com o general Golbery do Couto e Silva.
Não é tarefa fácil mexer nas feridas. Há o envolvimento pessoal, famílias que tiveram suas vidas destruídas, viúvas, como disse o deputado Alencar Furtado, em 1977, do "quem sabe ou do talvez", torturas, desaparecimentos e mortes de dezenas de brasileiros. Mas - e não pode ser deixado de lado - ocorreram ações por parte dos grupos de luta armada que vitimaram dezenas de brasileiros. Evidentemente que são atos distintos. A repressão governamental ocorreu sob a proteção e a responsabilidade do Estado. Contudo, é possível enquadrar diversos atos daqueles grupos como violação dos direitos humanos e, portanto, incurso na lei 12.528.
O melhor caminho seria romper com a dicotomia - recolocada pela criação da comissão - repressão versus guerrilheiros ou ação das forças de segurança versus terroristas, dependendo do ponto de vista. É óbvio que a ditadura - e por ser justamente uma ditadura - se opunha à democracia; mas também é evidente que todos os grupos de luta armada almejavam a ditadura do proletariado (sem que isto justifique a bárbara repressão estatal). Nesta guerra, onde a política foi colocada de lado, o grande derrotado foi o povo brasileiro, que teve de suportar durante anos o regime ditatorial.
A presidente poderia ter agido como uma estadista, seguindo o exemplo do sul-africano Nelson Mandela, que criou a Comissão da Verdade e Reconciliação. Lá, o objetivo foi apresentar publicamente - várias sessões foram transmitidas pela televisão - os dois campos, os guerrilheiros e as forças do apartheid. Tudo sob a presidência do bispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz. E o país pôde virar democraticamente esta triste página da história. Mas no Brasil não temos um Mandela ou um Tutu.
Pelas primeiras declarações dos membros da comissão, continuaremos prisioneiros do extremismo político, congelados no tempo, como se a roda da história tivesse parado em 1970. Não avançaremos nenhum centímetro no processo de construção da democracia brasileira. E a comissão será um rotundo fracasso.
MARCO ANTONIO VILLA é historiador.
 

Folha de S. Paulo, 22 de maio de 2012.
Vladimir Safatle
Toda violação será castigada

"Toda violação dos direitos humanos será investigada." Com essa frase, Gilson Dipp, um dos integrantes da Comissão da Verdade, procurou constranger setores da esquerda que procuram levar a cabo as exigências de punição aos crimes da ditadura militar.
Trata-se de pressupor que tanto o aparato estatal da ditadura militar quanto os membros da luta armada foram responsáveis por violações dos direitos humanos. É como se a verdadeira função da Comissão da Verdade fosse referendar a versão oficial de que todos os lados cometeram excessos equivalentes, por isso o melhor é não punir nada.
No entanto o pressuposto de Dipp é da mais crassa má-fé. Na verdade, com essa frase, ele se torna, ao contrário, responsável por uma das piores violações dos direitos humanos.
Sua afirmação induz à criminalização do direito de resistência, este que -desde a Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão- é, ao lado dos direitos à propriedade, à segurança e à liberdade, um dos quatro direitos humanos fundamentais.
Digamos de maneira clara: simplesmente não houve violação dos direitos humanos por parte da luta armada contra a ditadura. Pois ações violentas contra membros do aparato repressivo de um Estado ditatorial e ilegal não são violações dos direitos humanos. São expressões do direito inalienável de resistência.
Os resistentes franceses também fizeram atos violentos contra colaboradores do Exército alemão durante a Segunda Guerra, e nem por isso alguém teve a ideia estúpida de criminalizar suas ações.
Àqueles que se levantam para afirmar que "a guerrilha matou tal soldado, tal financiador da Operação Bandeirantes", devemos dizer:
"Tais ações não podem ser julgadas como crimes, pois elas eram ações de resistência contra um Estado criminoso e ditatorial".
O argumento de que tais grupos de luta armada queriam implementar regimes comunistas no país não muda em nada o fato de que toda ação contra um Estado ilegal é uma ação legal. O que está em questão não é o que tais grupos queriam, mas se um Estado ilegal pode criminalizar ações contra sua existência impetrada por setores da população.
Como se não bastasse, integrantes da Comissão da Verdade que dizem querer investigar ações dos grupos de resistência "esquecem" que os membros da luta armada julgados por crimes de sangue não foram anistiados. Eles apenas receberam uma diminuição das penas.
Ou seja, os únicos anistiados foram os militares, graças a uma lei que eles mesmos fizeram, sem negociação alguma com a sociedade civil.