O Estado de S. Paulo,
02 de maio de 2012.
Colegisladores
02 de
maio de 2012 | 3h 05
Conrado
Hübner Mendes, doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo e em Ciência
Política pela USP - O Estado de S.Paulo
Quando o
STF invalida uma lei ou lhe dá nova interpretação, opositores ocasionais da
decisão costumam alegar que o tribunal interferiu indevidamente na esfera
legislativa. Não foi diferente no caso recente sobre antecipação do parto de
fetos anencéfalos: ao reconhecer a constitucionalidade dessa prática, o STF
teria invadido a prerrogativa do Congresso de elaborar normas jurídicas. O
próprio ministro Lewandowski, em voto vencido, argumentou que "não é dado
aos integrantes do Judiciário promover inovações no ordenamento normativo como
se parlamentares eleitos fossem".
Essa
crítica se inspira numa leitura tradicional de dois princípios adotados pela
Constituição brasileira: a separação de Poderes, arranjo pelo qual se busca prevenir
o abuso de poder; e a democracia, ideal político que almeja institucionalizar
um governo do povo. Cartilhas de Direito ensinam que a fusão dos dois
princípios, na prática, confere ao Parlamento eleito, e só a ele, a função de
legislar e aos outros dois Poderes, o papel subordinado de aplicar o Direito.
Portanto, segundo essa sabedoria convencional, um tribunal que legisla romperia
simultaneamente com esses dois princípios - primeiro, porque não lhe caberia
legislar; segundo, porque não é eleito pelo povo.
O
controle judicial de constitucionalidade, é bem verdade, complica um pouco essa
fórmula simples e didática. Afinal, permite que juízes revoguem uma lei quando
a julgam incompatível com o texto constitucional. Para nos tranquilizarem,
aquelas cartilhas dizem que tal ato de insubordinação ao Parlamento é
necessário em nome da supremacia da Constituição. Tal atividade de controle,
defendem, não faria do tribunal um "legislador positivo", que cria
normas, mas apenas um "legislador negativo", que se limita a vetar
certas normas emanadas do Congresso. Estaria preservada, assim, a integridade
da separação de Poderes e da democracia.
A má
notícia é que essa equação, aparentemente tão bem ajustada na teoria, não
funciona. Não por má-fé de juízes, mas por simples impossibilidade prática. E
enquanto usarmos tal equação para observar o controle judicial de
constitucionalidade, essa função continuará a ser uma das mais mal
compreendidas das democracias contemporâneas.
O STF, no
exercício dessa competência, legisla o tempo todo, com maior ou menor
visibilidade e intensidade. Algo comum, diga-se, a toda Corte Constitucional no
mundo. Seja quando revoga uma lei e explica seus parâmetros ao Congresso,
quando estabelece a interpretação válida de uma lei e elimina outras interpretações
plausíveis, ou quando diagnostica a omissão do Legislativo e ocupa o vazio
normativo, está atribuindo significado à Constituição, uma atividade
essencialmente construtiva. Sem eufemismos, cria normas jurídicas e regula os
atos dos outros atores políticos. Não tem outra escolha: é isso que lhe pede a
Constituição e é o que, bem ou mal, vem fazendo, tanto nos casos mais
polêmicos, como o da anencefalia, quanto em outros de menor saliência.
A divisão
de trabalho entre tribunal e Congresso não obedece a uma fórmula estanque,
oscila conforme os movimentos da política. Esse é um fenômeno dinâmico
observado em qualquer regime democrático que, como o brasileiro, reserva espaço
relevante ao controle judicial de constitucionalidade. Portanto, à medida que o
STF se expande na política brasileira, processo gradual e contínuo há pelo
menos 15 anos, torna-se mais urgente perdermos a inocência sobre a natureza do
seu papel.
Nossa
Carta Magna e nossa prática institucional aboliram o monopólio da legislação. A
função de criar normas é compartilhada, não exclusiva do Congresso. Não há que
perguntar, pois, se o STF pode legislar. Ainda giramos em falso ao redor dessa
pergunta e desperdiçamos muita energia crítica nesse custoso debate. Melhor
começarmos a perguntar quando, como, quanto e por que o STF deve legislar.
Obviamente, não deve legislar como se "parlamentares eleitos fossem",
para usar as palavras de Lewandowski. Seu papel é fazê-lo a conta-gotas, de
forma cirúrgica e oportuna, em face das ações e, sobretudo, das omissões
injustificadas do Legislativo.
A
superação do mito de que aplica passivamente a Constituição e o reconhecimento
dessa forma especial de colegislar geram maior responsabilidade para o STF.
Embutido em tal responsabilidade há um dever mais rigoroso de prestar contas e
de construir uma jurisprudência transparente que forneça orientações normativas
inteligíveis para os casos futuros. Essa é a maior dívida pública do tribunal,
mas só poderemos cobrá-la adequadamente se evitarmos aquela confusão conceitual.
A
constatação de que há um "STF legislador" ao lado do "STF
juiz" dá outra magnitude à Corte. É nessa perspectiva que se podem
entender os desafios da gestão do ministro Ayres Brito, que herda uma agenda
explosiva ao tomar posse na presidência do STF. Entre suas várias atribuições,
caberá a ele definir, em negociação com os outros ministros, os casos que
entram na pauta de julgamento e os que devem esperar. Esse poder de agenda
precisa ser exercido com coragem e sensibilidade para os prejuízos sociais
oriundos da demora em cada caso.
Não fará
bem à saúde política do STF, por certo, deixar que o mensalão prescreva. Apesar
de não envolver complexidade jurídica extraordinária, as pressões externas o
tornam o caso mais delicado na história recente do "STF juiz". Mas
isso não pode ofuscar as responsabilidades do "STF legislador", que
promove impactos mais profundos no ordenamento jurídico. Nessa pauta
específica, grande quantidade de casos antigos continua à espera de solução -
uma combinação eclética que reúne de grandes temas de direitos fundamentais a
temas com amplas consequências na economia nacional. Embora lhe reste pouco
tempo na presidência, já que se aposenta no final do ano, Ayres Britto tem a
oportunidade de deixar uma marca histórica na jurisprudência da Corte. A
aprovação unânime do programa de cotas nas universidades, na semana passada,
deu uma amostra disso.
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