sexta-feira, 8 de junho de 2012

Os heróis também erram

Folha de S. Paulo, 8 de junho de 2012.

Raphael Neves

Os heróis também erram

O Tribunal de Nuremberg, tão citado agora, ignorou estupros cometidos pelos vencedores. Já na África do Sul, até a mulher de Mandela foi investigada 

Na discussão sobre a Comissão da Verdade, frequentemente alguém invoca o precedente do Tribunal de Nuremberg, que condenou os nazistas após a Segunda Guerra.
Nuremberg foi um avanço em termos de justiça de transição quando comparado a tudo o que se tinha feito até então. Mas não se pode esquecer que ele foi uma espécie de "Justiça dos vencedores". Não apurou os crimes cometidos pelos aliados, como os milhões de estupros das tropas soviéticas na Alemanha ou os milhares de civis mortos pelas duas bombas atômicas no Japão.
Em "Duas Mulheres", filme de Vittorio de Sica de 1960, a personagem de Sophia Loren, após ser violentada juntamente com a filha por um grupo de goumiers (resistentes franceses do Marrocos), pergunta aos soldados americanos: "Vocês sabem o que seus heróis fizeram?"
É exatamente essa a pergunta que ficou sem resposta em Nuremberg.
Quais as implicações quando a análise passa para o plano da apuração das responsabilidades individuais? Ao emitir seu juízo sobre as ações individuais, a Comissão da Verdade terá de inevitavelmente lidar com os limites aos quais qualquer ação, mesmo de resistência legítima, está sujeita.
O caso mais notório em que isso ocorreu é o da África do Sul. Antes mesmo da criação de uma comissão da verdade de âmbito nacional, o Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson Mandela, havia criado, em duas ocasiões, comissões para investigar os abusos cometidos por seus próprios militantes nas ações de resistência ao apartheid.
E mesmo na Comissão de Verdade e Reconciliação vários casos envolvendo o Umkhonto we Sizwe, braço armado do CNA, foram apurados.
Um deles, o de Robert McBride, autor de um atentado a bomba em Durban que matou e feriu civis inocentes, voltou a ser destaque recentemente, quando a corte constitucional daquele país declarou que as matérias de um jornal que o chamavam de criminoso não podiam ser consideradas difamatórias, ainda que ele tenha sido anistiado.
A responsabilidade da própria mulher de Mandela na época, Winnie, em relação a mortes e torturas também foi apurada pela comissão. Outro fato notório é o de que o presidente da Comissão, arcebispo Desmond Tutu, ameaçou renunciar em protesto pelas declarações de líderes do CNA afirmando que os atentados e mortes provocadas pela luta contra o apartheid faziam parte de uma "guerra justa" -e que, portanto, não deviam ser analisados pela Comissão da Verdade.
A legitimidade de uma comissão da verdade reside em sua capacidade de emitir juízos imparciais. E isso não é diferente na comissão brasileira, como prevê a lei que a criou.
Ao se debruçar sobre as "graves violações de direitos humanos", a comissão terá também de especificar o que ela julga ser "grave". Um parâmetro possível é considerar grave violação aquilo que é crime no direito internacional.
Nesse caso, os crimes do Estado, tais como torturas, execuções, desaparecimentos e detenções, devem certamente ser apurados. Ainda segundo o direito internacional, ações que decorrem de agentes não estatais só podem ser consideradas "graves violações" se sistemáticas.
É um juízo que a comissão terá de fazer, não ignorando que algumas violações da luta armada podem não ter sido totalmente elucidadas.
Por exemplo: Orlando Lovecchio Filho só teve parcialmente esclarecido o atentado a bomba que o fez perder uma perna porque um dos autores assumiu à Folha, em maio de 1992, a responsabilidade.
Caso os autores de tais violações já tenham sido responsabilizados e punidos, cabe à comissão justificar sua recusa em analisar esses fatos, sempre caso a caso. Assim, a legitimidade do processo estará assegurada -e não restarão dúvidas sobre os limites que os direitos humanos impõem às ações, do Estado e dos cidadãos em geral.
RAPHAEL NEVES, 32, mestre em ciência política pela USP, é professor assistente da mesma universidade. É doutorando na New School for Social Research de Nova York

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