terça-feira, 5 de junho de 2012

Comissão da Verdade: visões distintas


Folha de S. Paulo,  5 de junho de 2012.
Rômulo Bini Pereira

O outro lado
Militares, também choramos nossa centena de mortos, sem as generosas bolsas ditadura. Fora outros crimes. Estão bem vivos alguns sequestradores
Com a instauração da Comissão da Verdade, o ciclo de beligerância e de turbulência política do passado recente voltou a ser um tema discutido em nosso país.
É um tema preocupante, que estará presente em debates e artigos nos próximos dois anos, tempo de vigência dos trabalhos da comissão. No período, os principais fraseados das esquerdas brasileiras estarão em evidência, sempre acompanhados de justificativas emocionais.
Agora é possível acrescentar no debate a Lei da Anistia, já chamada de lei injusta, primeiro passo para a sua revogação. Esquecem os críticos que foi essa lei que permitiu quase 33 anos de relativa paz no processo de crescimento democrático do país. Sem ela, o período seria controverso e perturbador.
Na comissão, as Forças Armadas serão o foco principal. Disciplinadas como são, estarão em silêncio obsequioso e sem poder político para interferir nos processos que serão abertos. O seu desgaste será evidente, um objetivo permanente de segmentos minoritários e radicais da esquerda brasileira.
Surge, agora, em artigo publicado neste jornal, de autoria do frade dominicano Libânio, o Frei Betto ("Os dois lados da Comissão da Verdade", em 20 de maio), uma nova designação para a Comissão da Verdade. O novo nome seria Comissão da Vaidade, uma alusão à posição adotada por um dos juristas que integra a comissão, considerada vaidosa pelo frade.
O jurista teria se posicionado, em corte internacional, contra interesses de familiares de vítimas na guerrilha do Araguaia. Em seu artigo, o autor questiona se o jurista teria condições de atuar com imparcialidade.
É surpreendente a posição do frade. Ele considera o jurista parcial por ele ter sido contrário ao posicionamento dos citados familiares. Então sejamos claros: os sete indicados serão imparciais quando analisarem um só lado, de preferência o do frade Libânio. Se analisarem o "outro lado", serão parciais.
Como deverão se sentir os juristas da comissão, indicados com base no seu "notável saber", diante desse claro patrulhamento? Como serão suas "imparcialidades" ao analisarem só um lado, ferindo o contraditório, princípio básico do direito?
Meu professor de história geral, um saudoso frei franciscano, ensinava que a "história tem sempre dois lados". O "outro lado" também tem inúmeras perguntas não respondidas nem esclarecidas.
Também choramos nossa centena de mortos e o mesmo tanto de feridos, muitos inocentes e que nada tinham com os confrontos. Assassinatos a sangue frio, a pauladas, a coronhadas -até esquartejamento houve. Atentados e sequestros com mortes. Sequestro é tortura infame, e alguns sequestradores estão bem vivos.
Há famílias enlutadas que, em sua totalidade, não receberam qualquer apoio indenizatório. Não existia naquela época nenhuma benesse como a atual e generosa "bolsa ditadura". Enumerar outros fatos a esclarecer ultrapassaria nosso espaço jornalístico. Entretanto seria bom se uma pergunta, talvez a mais importante, fosse respondida: que democracia eles lutavam para resgatar?
O ideário das organizações terroristas e os depoimentos insuspeitos de seus ex-integrantes permitem inferir que o objetivo maior, caso vencessem, seria a implantação de uma "ditadura do proletariado" e não uma democracia, como assegura o citado articulista.
Dependendo da organização, seria uma ditadura soviética, maoísta, albanesa ou cubana. Para mim, sem receio de errar, seria a cubana e o seu famigerado "paredón".
Por sinal, os covardes justiçamentos em nosso país, por ordens de tribunais relâmpagos, comprovam a escolha. Caso vingassem tais doutrinas, não poderíamos, hoje, escrever livremente neste ou em outro jornal.
Ao menos eu. Já o frade Libânio escreveria no jornal do partido único. À semelhança de Cuba, no Brasil haveria um só lado. Não existiria o "outro lado".
Não tenho profundos conhecimentos da mitologia grega nem das literaturas portuguesa e espanhola para citações brilhantes como as do eclesiástico. Todavia, fruto da formação franciscana que recebi, encerro com uma citação bíblica, que creio ser válida para o momento sensível pelo qual passa a nação brasileira: "Não julgueis para não serdes julgados, pois com o julgamento com que julgais sereis julgados e com a medida com que medis sereis medidos." (Mt 7,1-2).
ROMULO BINI PEREIRA, 72, é general do Exército da reserva. Foi chefe do Estado-Maior do Ministério da Defesa

Folha de S. Paulo, 29 de maio de 2012.
Vladimir Safatle
A conta dos mortos

No último domingo, esta Folha publicou reportagem a respeito do número de mortos resultantes de ações da luta armada contra a ditadura militar ("Para militares, Estado combatia o terrorismo", "Poder", 27/5).
A reportagem em questão tem sua importância por trazer mais informações que permitem aos leitores tirar suas conclusões a respeito daquele momento sombrio da história brasileira. No entanto ela peca por aquilo que não diz.
Baseando-se nos números de um site de militares defensores da ditadura, o texto lembra como membros da luta armada mataram, além de militares, "bancários, motoristas de táxis, donas de casa e empresários". Não é difícil perceber o esforço do jornalista em induzir a indignação a respeito de tais ações contra "vítimas particularmente vulneráveis", como sentinelas "parados à frente dos quartéis".
Em uma reportagem como essa, seria importante lembrar que os membros da luta armada que se envolveram em tais mortes foram julgados, condenados e punidos. Eles nunca foram objeto de anistia.
A Lei da Anistia não cobria tais crimes. Por isso eles ficaram na cadeia depois de 1979, sendo posteriormente agraciados com redução de pena. Sem essa informação, dá-se a impressão de que o destino desses indivíduos foi o mesmo do dos torturadores.
Segundo, seria bom lembrar que "terrorismo" significa "atos indiscriminados de violência contra populações civis". Nesse sentido, as ações descritas da luta armada não podem ser compreendidas como "terrorismo", já que a própria reportagem reconhece que as vítimas civis não eram os alvos.
Mesmo a ação no aeroporto de Guararapes não era terrorismo, mas um "tiranicídio", que, infelizmente, errou de alvo. Vale aqui lembrar que, no interior da tradição liberal (sim, da tradição liberal), um "tiranicídio" é algo completamente legítimo, a não ser que queimemos o "Segundo Tratado sobre o Governo", do "terrorista" John Locke.
Quando a Comissão da Verdade foi instalada, era de esperar lermos reportagens sobre as empresas que financiaram aparatos de tortura e crimes contra a humanidade, os centros de assassinatos ligados às Forças Armadas, entrevistas com os jovens que organizam atualmente atos de repúdio contra torturadores, crianças que foram sequestradas de pais guerrilheiros assassinados.
No entanto há uma certa propensão para darmos voz a torturadores que se autovangloriam como "defensores da pátria contra a ameaça comunista" e "fatos" que comprovam a teoria dos dois demônios, onde os crimes da ditadura se anulam quando comparados aos crimes da luta armada.

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